sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Porque adoro o Natal -Raquel Varela

Cresci com Natais de sonho, com reencontros de uma grande família, afectos, e presentes na lareira. Entre ateus ou agnósticos, e uma minoria de religiosos. Mais tarde, já adulta, e vendo a depressão tornar-se uma doença endémica, compreendi, entre outras coisas, o papel do Natal, da família e, sobretudo, dos rituais. Precisamos de estar juntos para sermos felizes, mas sem organização não nos encontramos. Sem que alguém tenha a ideia de nos juntar estamos cada vez mais sós. Os feriados religiosos jogam esse papel, cada vez mais há poucas instituições associativas que tenham essa dimensão humanizadora, sobretudo porque vivemos a crise de organizações fora do Estado como sindicatos, clubes locais, associações, etc. Ainda que rodeadas de multidões, no trabalho, nos transportes, no trânsito, na cidade, a solidão é endémica porque os mecanismos associativos não são naturais. Ou melhor, são naturais (enquanto espécies selvagens), não são é compatíveis com um modelo económico cujo sucesso depende da quantidade de pessoas que eliminamos no caminho.
O Natal não é só nem principalmente uma festa religiosa, é uma festa humana. Que celebra a vida, muito antes das religiões o terem sacralizado ou o liberalismo o ter desnatado com a mercantilização, a que vulgarmente chama consumismo. O Natal não é uma propaganda desnecessária da Igreja, para perpetuar o poder, embora possa ter esse significado para algum sector. O Natal é acima de tudo a ritualização de uma necessidade vital para a nossa felicidade e sobrevivência da espécie – a organização da vida em sociedade. A Igreja tem milhares de anos dedicada a organizar a vida social. Precisamos de estar juntos, e de celebrar a vida. O Natal foi ritualizado nesta época pela Igreja porque o paganismo já celebrava o solstício de inverno: é nesta época que os dias começam a crescer. E os dias mais longos significam mais agricultura, mais vida, mais cultura (cultura vem da palavra culto, cultivar a terra). Tudo pode agora crescer – daí o nascimento associado a esta época. A figura do presépio é uma metáfora dessa verdade – vivemos porque os outros existem. Precisamos dos outros. A ideia de uma família unida em paz que olha com amor um ser mais frágil não tem nada de errado em si, é uma belíssima imagem de amor. Por conservadorismo muitos olham esta imagem como a única possível de vida em família, por sectarismo outros deitaram fora o bebé com a água do banho, deixando de celebrar a união das pessoas.Embora eu fosse tão ligada à minha família paterna como à materna os Natais eram com a família da parte da minha mãe, perto de Alcobaça. Éramos 8 primos com sólidas relações de amizade construídas em anos de férias juntos, que solidificaram relações de confiança, construída a brincar, e afectos, tios e tias e uma avó. Só depois da minha avó morrer, quando eu tinha 16 anos, percebi o que ela queria dizer com a minha prenda «é ter-vos cá e bem, com saúde». A minha avó tinha vivido a dramática experiência de um acidente que muito cedo matou o meu avô. Para ela o Natal era nós chegarmos, e bem. Doce, terna, recebia-nos com broas, filhoses e arroz doce, tudo da sua mão. O ritual de amassar e levedar a massa; o de mexer o arroz doce, de fazermos juntos a árvore de Natal, e de irmos repor a lenha; de abrirmos o armário do serviço especial de Natal e pôr a mesa, em conjunto, tudo isso nos juntava e aproximava – foi à volta deste ritual que nos conhecemos, rimos, abraçamos. Fomos ficando melhores, uns e outros, juntos.


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