1. Não sei se
Bergoglio conhece a literatura portuguesa. Espero que Tolentino Mendonça não
deixe de lhe recomendar algumas leituras essenciais antes de voltar a Portugal,
pátria dos antepassados do argentino J. L. Borges. O Cardeal G. Ravasi, esse conhece,
de certeza, Fernando Pessoa. Não pode ignorar o sonho piedosamente blasfemo de
Alberto Caeiro. Este viu Jesus Cristo aproveitar o dia em que Deus estava a
dormir, o Espírito Santo andava a voar e a Virgem Maria a fazer meia, para
fugir do céu, onde tudo é convencional e aborrecido, e tornar-se outra vez
menino, uma criança tão humana que é divina, a Eterna Criança, o Deus que
faltava, que sorri e brinca, o Menino Jesus verdadeiro que veio viver para
aldeia com o nosso poeta.
Lembrei-me desse sonho ao ler a mensagem que o Papa
Francisco enviou ao referido Cardeal italiano, manifestando o seu agrado por verificar
que a eternidade, o outro lado da vida, tivesse sido escolhida para
tema da XXIII Sessão das Academias Pontifícias. Confesso que, no primeiro
momento, achei algo despropositada aquela mensagem. Terá a recitação dominical
do Credo, por milhões de fiéis, perdido a sua esperada eficácia? Será verdade
que, nos últimos tempos, a convicção central da fé cristã terá sido
negligenciada, tanto na investigação teológica como no anúncio e na
formação dos fiéis?[1].
Poderá a teologia universitária e dos seminários, a doutrina dos catecismos, da
pastoral e da nova evangelização esquecer-se do Céu?
A observação do Papa é, no entanto, mais do que um desabafo
de circunstância. Ele próprio colocou o dedo na ferida: «ao proclamar, hoje, essa verdade de fé,
ela pode parecer quase incompreensível e, às vezes, transmitir uma imagem pouco
positiva e "atraente” da vida eterna. O outro lado da vida
pode ser percebido como monótono e repetitivo, chato, triste ou totalmente
insignificante e irrelevante para o presente». Esta descrição papal não está
longe do sonho de Alberto Caeiro, heterónimo de F. Pessoa. Nem o menino Jesus
pode aguentar esse aborrecimento.
Muitas
das representações homiléticas e rituais acerca da vida eterna encenam uma eterna chatice e as especulações sobre a
visão beatífica são uma cegueira teológica. Só por medo do inferno se podia
suportar aquela interminável monotonia. O que mata a esperança de uma juventude
eternamente renovada, coração da fé cristã, é a lenga-lenga ritual dos funerais e das missas de corpo presente, do
sétimo dia, do trigésimo dia, etc.
As
preocupações farisaicas com a ortodoxia das fórmulas e dos gestos levam, muitas
vezes, a esquecer, nas horas enlutadas e dolorosas, a esperança da vida
exuberante sugerida pela simbólica da tradição cristã. A linguagem religiosa
não se destina a dar informações sobre as ocupações depois da morte, mas a
criar ilhas de resistência ao niilismo. É preciso ir até ao fim da noite para
encontrar outra aurora, escreveu Bernanos. Quem senão Deus nos poderá dar a mão?
A Palavra de Deus não é um som, mas a pura voz do amor que nos chama. É preciso
continuar a dizer e a cantar com frei José Augusto Mourão: Ao pé de Deus hei-de sempre viver, com Deus cheguei e com Ele vou
partir!
O Deus
escondido, da pura gratuidade, da infinita misericórdia, não pode ser profanado
pela ideia mundana da meritocracia e dos seus tribunais. Deus é servido ou
ofendido apenas pelas nossas atitudes quotidianas de serviço ou desprezo, em
relação aos que se encontram em necessidade[2].
2. Dada a descontinuidade entre a
linguagem dos rituais, que procuram mostrar que a morte não é a última palavra
sobre a vida humana, e os novos fenómenos culturais e sociais, como será
possível responder às preocupações manifestadas pelo Papa Francisco? Como
transmitir a certeza de que os mortos vivem hoje na memória viva e criadora de
Deus?
Importa, antes de mais, dar-se conta das dificuldades e
saber que não há soluções prontas a servir. Os teólogos, os catequistas, os
pregadores precisam de trabalhar com os praticantes das ciências humanas para
avaliar as atitudes, os gestos e a linguagem que configuraram as expressões
litúrgicas do passado e os caminhos para as alterações mais adequadas[3].
Tendo
isso em conta, é preciso não esquecer que o coração da fé cristã é irrigado pelo
desejo, alma da esperança. No fim da viagem Alguém, mais forte do que o abismo
da morte, nos acolherá. A megalomania do desejo é tão essencial ao psiquismo
humano que é dela que todas as outras faculdades recebem a energia. A missão
dos cristãos consiste em tornar a vida
eterna o horizonte mais desejado de tudo quanto vivemos e fazemos. Estamos
polarizados por novos céus e nova terra. O
olhar não vê, mas Deus transborda em tudo. Em Deus vivemos, nos movemos e
existimos em liberdade criadora, pois é falsa a rivalidade entre o humano e o
divino. Como diz Santo Agostinho, em Cristo, caminhamos no Caminho. Não há separação entre a viagem e o encontro com o infinito
do amor.
3. As celebrações do Advento vivem
da convicção de que não estamos condenados a repetir o passado. Quando os
costumes nos dizem que sempre assim foi,
é sinal de que já é tempo de mudar de rumo. Tudo o que vem nas
Escrituras cristãs, nos sacramentos, na liturgia, na pregação, na organização
da Igreja, é para que a nossa alegria
seja completa[4].
Esta afirmação, da 1ª Carta de João, devia ser o critério de avaliação dos
nossos investimentos vitais.
Conheço alguns testemunhos de cristãos, testemunhos de pura
fé, escritos pouco antes da morte, a serem lidos às famílias e aos amigos, para
lhes dizerem que não toquem a Finados. Já chegaram a Porto Seguro.
Escrevi este texto a pensar naqueles que, na noite de Natal,
vão sentir a falta de quem, nessa noite, esteve sempre à mesa, a trocar
presentes, alegrias e gargalhadas. Era a noite das boas memórias.
Pensando no que recebemos de Jesus Cristo, tenho de supor
que do Oriente e do Ocidente, do Norte e no Sul, de todos os tempos, de todas
as religiões e sem religião, cada um com os seus sonhos, ou sem sonhos nenhuns,
os que morreram apenas partiram e encontraram na memória e no coração de Deus a
mesa posta para a festa de todos. Nada menos é digno do ser humano e muito
menos da louca alegria de Deus de continuar a ver os seus filhos reunidos dos
dois lados da vida. Ele que é Deus dos vivos não da morte.
16. 12. 2018
[1]
Mensagem do Papa Francisco ao Cardeal G. Ravasi por ocasião da XXIII
sessão pública solene das Academias Pontifícias, 04. 12. 2018
[2] Mt 25
[3] Por analogia com o Baptismo e a
Eucaristia, cf. Joris Geldhof, Être et
devenir chrétien dans les cultures postmodernes, in «La Maison-Dieu», 278,
2014/2, 13-50 ; ver também Revue des
sciences philosophiques et théologiques 95, 2011,129-145.
[4]
1Jo 1, 1-4
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