terça-feira, 18 de dezembro de 2018

TUDO POR CAUSA DA ALEGRIA Frei Bento Domingues, O.P.


1. Não sei se Bergoglio conhece a literatura portuguesa. Espero que Tolentino Mendonça não deixe de lhe recomendar algumas leituras essenciais antes de voltar a Portugal, pátria dos antepassados do argentino J. L. Borges. O Cardeal G. Ravasi, esse conhece, de certeza, Fernando Pessoa. Não pode ignorar o sonho piedosamente blasfemo de Alberto Caeiro. Este viu Jesus Cristo aproveitar o dia em que Deus estava a dormir, o Espírito Santo andava a voar e a Virgem Maria a fazer meia, para fugir do céu, onde tudo é convencional e aborrecido, e tornar-se outra vez menino, uma criança tão humana que é divina, a Eterna Criança, o Deus que faltava, que sorri e brinca, o Menino Jesus verdadeiro que veio viver para aldeia com o nosso poeta.

Lembrei-me desse sonho ao ler a mensagem que o Papa Francisco enviou ao referido Cardeal italiano, manifestando o seu agrado por verificar que a eternidade, o outro lado da vida, tivesse sido escolhida para tema da XXIII Sessão das Academias Pontifícias. Confesso que, no primeiro momento, achei algo despropositada aquela mensagem. Terá a recitação dominical do Credo, por milhões de fiéis, perdido a sua esperada eficácia? Será verdade que, nos últimos tempos, a convicção central da fé cristã terá sido negligenciada, tanto na investigação teológica como no anúncio e na formação dos fiéis?[1]. Poderá a teologia universitária e dos seminários, a doutrina dos catecismos, da pastoral e da nova evangelização esquecer-se do Céu?

A observação do Papa é, no entanto, mais do que um desabafo de circunstância. Ele próprio colocou o dedo na ferida: «ao proclamar, hoje, essa verdade de fé, ela pode parecer quase incompreensível e, às vezes, transmitir uma imagem pouco positiva e "atraente” da vida eterna.  O outro lado da vida pode ser percebido como monótono e repetitivo, chato, triste ou totalmente insignificante e irrelevante para o presente». Esta descrição papal não está longe do sonho de Alberto Caeiro, heterónimo de F. Pessoa. Nem o menino Jesus pode aguentar esse aborrecimento.

Muitas das representações homiléticas e rituais acerca da vida eterna encenam uma eterna chatice e as especulações sobre a visão beatífica são uma cegueira teológica. Só por medo do inferno se podia suportar aquela interminável monotonia. O que mata a esperança de uma juventude eternamente renovada, coração da fé cristã, é a lenga-lenga ritual dos funerais e das missas de corpo presente, do sétimo dia, do trigésimo dia, etc.

As preocupações farisaicas com a ortodoxia das fórmulas e dos gestos levam, muitas vezes, a esquecer, nas horas enlutadas e dolorosas, a esperança da vida exuberante sugerida pela simbólica da tradição cristã. A linguagem religiosa não se destina a dar informações sobre as ocupações depois da morte, mas a criar ilhas de resistência ao niilismo. É preciso ir até ao fim da noite para encontrar outra aurora, escreveu Bernanos. Quem senão Deus nos poderá dar a mão? A Palavra de Deus não é um som, mas a pura voz do amor que nos chama. É preciso continuar a dizer e a cantar com frei José Augusto Mourão: Ao pé de Deus hei-de sempre viver, com Deus cheguei e com Ele vou partir!

O Deus escondido, da pura gratuidade, da infinita misericórdia, não pode ser profanado pela ideia mundana da meritocracia e dos seus tribunais. Deus é servido ou ofendido apenas pelas nossas atitudes quotidianas de serviço ou desprezo, em relação aos que se encontram em necessidade[2].

2. Dada a descontinuidade entre a linguagem dos rituais, que procuram mostrar que a morte não é a última palavra sobre a vida humana, e os novos fenómenos culturais e sociais, como será possível responder às preocupações manifestadas pelo Papa Francisco? Como transmitir a certeza de que os mortos vivem hoje na memória viva e criadora de Deus?

Importa, antes de mais, dar-se conta das dificuldades e saber que não há soluções prontas a servir. Os teólogos, os catequistas, os pregadores precisam de trabalhar com os praticantes das ciências humanas para avaliar as atitudes, os gestos e a linguagem que configuraram as expressões litúrgicas do passado e os caminhos para as alterações mais adequadas[3].

Tendo isso em conta, é preciso não esquecer que o coração da fé cristã é irrigado pelo desejo, alma da esperança. No fim da viagem Alguém, mais forte do que o abismo da morte, nos acolherá. A megalomania do desejo é tão essencial ao psiquismo humano que é dela que todas as outras faculdades recebem a energia. A missão dos cristãos consiste em tornar a vida eterna o horizonte mais desejado de tudo quanto vivemos e fazemos. Estamos polarizados por novos céus e nova terra. O olhar não vê, mas Deus transborda em tudo. Em Deus vivemos, nos movemos e existimos em liberdade criadora, pois é falsa a rivalidade entre o humano e o divino. Como diz Santo Agostinho, em Cristo, caminhamos no Caminho. Não há  separação entre a viagem e o encontro com o infinito do amor.  

3. As celebrações do Advento vivem da convicção de que não estamos condenados a repetir o passado. Quando os costumes nos dizem que sempre assim foi, é sinal de que já é tempo de mudar de rumo. Tudo o que vem nas Escrituras cristãs, nos sacramentos, na liturgia, na pregação, na organização da Igreja, é para que a nossa alegria seja completa[4]. Esta afirmação, da 1ª Carta de João, devia ser o critério de avaliação dos nossos investimentos vitais.

Conheço alguns testemunhos de cristãos, testemunhos de pura fé, escritos pouco antes da morte, a serem lidos às famílias e aos amigos, para lhes dizerem que não toquem a Finados. Já chegaram a Porto Seguro.

Escrevi este texto a pensar naqueles que, na noite de Natal, vão sentir a falta de quem, nessa noite, esteve sempre à mesa, a trocar presentes, alegrias e gargalhadas. Era a noite das boas memórias.

Pensando no que recebemos de Jesus Cristo, tenho de supor que do Oriente e do Ocidente, do Norte e no Sul, de todos os tempos, de todas as religiões e sem religião, cada um com os seus sonhos, ou sem sonhos nenhuns, os que morreram apenas partiram e encontraram na memória e no coração de Deus a mesa posta para a festa de todos. Nada menos é digno do ser humano e muito menos da louca alegria de Deus de continuar a ver os seus filhos reunidos dos dois lados da vida. Ele que é Deus dos vivos não da morte.

16. 12. 2018



[1] Mensagem do Papa Francisco ao Cardeal G. Ravasi por ocasião da XXIII sessão pública solene das Academias Pontifícias, 04. 12. 2018
[2] Mt 25
[3] Por analogia com o Baptismo e a Eucaristia, cf. Joris Geldhof, Être et devenir chrétien dans les cultures postmodernes, in «La Maison-Dieu», 278, 2014/2, 13-50 ; ver também Revue des sciences philosophiques et théologiques 95, 2011,129-145.
[4] 1Jo 1, 1-4

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