segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

NÃO NOS PREOCUPEMOS COM OS ANJOS Frei B D, O.P.


1. Não escolhemos as perguntas que nos fazem. Na semana passada, uma senhora muito idosa perguntou-me aflita: os anjos existem ou não? Toda a vida rezei ao meu anjo da guarda, mas a minha neta disse-me que, agora, já nem os padres acreditam nisso.

Deduzi que não era a sua crença que estava abalada, mas a dificuldade em transmiti-la à nova geração. Não vem ao caso a conversa que tivemos. O imaginário da luta entre os anjos bons a quererem salvar as nossas almas e os demónios a fazerem tudo para nos perderem era a representação religiosa da nossa infância. Lembrei-lhe que, na Eucaristia, o louvor divino é sempre associado à música dos anjos e dos santos!

  Quando a ansiedade serenou, lembrei-lhe duas histórias que me divertiram. Em 1961, à saída de Liège, à espera de uma boleia para Colónia, li, no Assimile de alemão, que um pároco pediu a um pintor que enchesse de anjos as paredes de uma capela recém-construída. Quando foi ver as pinturas ficou irritado: quando é que se viram anjos com tamancos? O pintor observou-lhe: e sem tamancos?

Em 1962, era assistente da Juventude da Igreja de Cristo Rei (Porto) – a primeira associação católica mista de jovens, em Portugal – quando um rapaz interessado por teologia veio dizer-me que tinha descoberto as razões do mundo andar tão desorientado. Os Anjos não se reproduzem e os seres humanos são cada vez mais. Resultado: há muita gente sem anjo da guarda!

Os meus anjos preferidos são as criaturas da pura beleza de Fra Angélico, mas há dias, numa celebração da Eucaristia, deparei com uma passagem da Carta aos Hebreus que desloca todas as preocupações com a angelolatria. Reza assim: «Uma vez que os filhos dos homens têm o mesmo sangue e a mesma carne, também Jesus participou igualmente da mesma natureza para destruir, pela sua morte, aquele que tinha poder sobre a morte, isto é, o diabo, e libertar aqueles que estavam a vida inteira sujeitos à servidão, pelo temor da morte. Porque Ele não veio em auxílio dos anjos, mas dos descendentes de Abraão. Por isso, devia tornar-se semelhante, em tudo, aos seus irmãos, para ser um sumo sacerdote misericordioso e fiel no serviço de Deus e assim expiar os pecados do povo. De facto, porque Ele próprio foi provado pelo sofrimento, pode socorrer aqueles que sofrem de provação»[1].

S. Paulo, na Missa deste Domingo, lembra-nos que, pela ressurreição, Jesus venceu a morte. É esse o Evangelho que ele anuncia, fonte de toda a esperança. Não tem explicação para o facto. Usa analogias para dizer que essa Fé está em consonância com os ritmos da natureza. É anti niilista. Por isso, exclama: morte, onde está tua vitória?[2].

O prefácio da impropriamente dita Missa de defuntos é de uma beleza extraordinária: a vida não acaba, apenas se transforma.

2. O medo da morte é absolutamente natural. Há muitos anos que administro a santa unção e celebro missas ditas de corpo presente e de funeral. Lamento vários aspectos do ritual e sobretudo as celebrações nas capelas mortuárias, mas mais ainda os funerais transformados numa competição comercial.

O que me espanta é a recusa de não se fazer ritual nenhum, sejam de crentes ou descrentes. Se fosse o fim de tudo, não tinha sentido qualquer celebração. Morreu, acabou. Usamos uma linguagem simbólica e rituais para evocar o que não podemos descrever. Ninguém sabe nada do que acontece depois da morte. Esquecemos que sabemos pouco do que é mais importante antes da morte. A vida! O mais significativo escapa à linguagem factual e à das ciências. Como disse Nélida Piñon, «tudo o que preside ao humano provém do mistério. Amor, vida, morte, nada disto se explica. O mistério é puro encanto. (…). O que me define talvez seja a teologia do mistério, sim. O mistério roça em Deus, no pecado, em tudo. Não sabemos o que é, sei que somos filhos dele. Deus está sempre presente na minha vida, mas sem questionamentos. Não batalhamos. Deus foi um senhor maravilhoso, gentil, que não me incomodou, porque desde cedo descobri, como Dostoiévski, o peso da consciência. (…). Estive atenta, enquanto pude, aos mistérios da fé. Sorri e chorei diante das adversidades. Amei e fui amada. Deixei que Deus pousasse no meu regaço. Resta-me agora dizer Amém»[3].

3. Precisamos de anjos e de muitos. Acerca das referências do Novo Testamento (NT) recomendo o exegeta Xavier Léon-Dufour[4]. Não são essas referências, essenciais, que importa convocar para esta crónica. Os anjos são mensageiros de boas notícias, mensageiros de esperança.

Foi para mim um anjo! São muitas as pessoas, todos conhecem algumas, a quem apetece dizer esta bendita oração. Muitas famílias têm doentes em casa, que só elas conhecem. Mas nos hospitais, nos lares de idosos, nas cadeias, debaixo das pontes, sem abrigo, sem amigos, imigrantes, mutilados da guerra existem mundos que precisam de quem lhes acuda. De facto, existe também um mundo dos que visitam, atendem, sorriem, ajudam, socorrem pela única razão que essas pessoas precisam. Não fazem propaganda, não aparecem nos meios de comunicação nem nas redes sociais. Não são condecorados. São os anjos da música silenciosa da pura gratuidade.

Essas pessoas, com ou sem referências aos textos NT, seguem a ordem de Jesus: não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita[5]. A nossa vocação humana e divina é a de sermos anjos uns dos outros, mas sem esquecer o aviso do Mestre.

A publicidade, mesmo a do bem, pode não ser um apelo à generosidade de todos, mas apenas um grande negócio da vaidade e do lucro. Uma coisa é o método de envolver cada vez mais pessoas na prática gratuita da generosidade criativa, outra é a táctica hipócrita da autopromoção em nome da virtude.

Não é por acaso que a Bíblia fala de anjos bons e anjos maus.

10.02.19.



[1] Hb 2, 14-18
[2] Cor 1Cor 15,1-11
[3] Nélida Piñon, A vida e a literatura, in JL, págs. 14-18
[4] Cf. Dictionnaire du Nouveau Testament, Seuil, 1975, entrada Anje
[5] Mt.6, 3-4

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