1. Nietzsche (1844-1900), um dos primeiros filósofos que estudei, é
uma figura de contrastes desmedidos. Tem tanto de visionário fascinante como de
classificador irritante. Disse o pior do Sermão
da Montanha, uma das peças mais belas e revolucionárias do Novo Testamento[1], proposto, hoje, como
desafio às comunidades eucarísticas. Classificou-o como um atentado contra a
natureza: a vida acaba quando começa o Reino de Deus e a prática da Igreja aí está
para o confirmar[2].
Deixemos, para já, o sermão de
Nietzsche, sermão da morte de Deus em
nome da exaltação da vida e do Super-
Homem, aproveitado pelos nazis para a
glorificação do crime nacionalista, anti-semita e racista.
No entanto, as religiões estão em maus lençóis
por razões mais óbvias e imediatas. A embriaguez criada pelas revoluções,
agrícola, científica, industrial e cultural ainda não serenou. Tornou-se mais
aguda. Entrou em delírio. O império da tecnociência
em todos os domínios e, agora, as promessas do reino prometido da inteligência
artificial, nas suas infindáveis aplicações, estariam a deixar Deus cada vez
mais desempregado. Por outro lado, diz-se que a extensão da robótica se
encarregará de dispensar aqueles que a criaram. Depois da morte de Deus viria,
não a emancipação, mas a morte do ser humano. Já há muito tempo que desconfio
de tanta promessa e de tanta ameaça.
Yuval Noah Harari escreveu um
livro sedutor[3].
Termina o posfácio de um modo pouco entusiasmante: «Estamos mais poderosos do
que alguma vez estivemos, mas não fazemos a mínima ideia do que fazer com todo
esse poder. Mas pior ainda é que os humanos parecem mais irresponsáveis do que
nunca. Deuses autoproclamados, com apenas as leis da física para nos fazerem
companhia, não somos responsabilizados por ninguém. Estamos, assim, a espalhar
o caos sobre os nossos companheiros animais e o ecossistema envolvente, em
busca de pouco mais do que o nosso próprio conforto e divertimento, sem, no
entanto, nos darmos por satisfeitos».
Estar insatisfeito é a maior graça
humana. Significa que o ser humano ainda não está acabado. Mas pergunta o
citado autor: «Existirá algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e
irresponsáveis que não sabem o que querem?»
2. Há várias formulações para esses entusiasmos e medos. Nesse
primeiro ponto, fica a ideia de uma rivalidade radical entre Deus e o ser
humano. Antigamente, essa rivalidade tinha a formulação de uma espiritualidade
conflitual: se damos muito a Deus, tiramos ao ser humano; se damos muito ao ser
humano, roubamos a Deus. Esta forma de falar de Deus nada tem a ver com a que
S. Paulo descobriu em poetas gentios: na
divindade temos a vida, o movimento e o ser[4]. Nessa perspectiva, os dois entendem-se bem: um recebe o outro como
pura graça existencial. Não há clima para um antagonismo entre as descobertas e
criações humanas e a presença divina vivificante. Estão mutuamente implicados
com regozijo recíproco. Ao pensar num, surge a apreciada diferença do outro.
A persistência da ideia de
rivalidade tem razões históricas bem documentadas, resultado de uma
antropologia e de uma teologia que não podiam conviver. A beleza da própria
ética de que fala o Génesis[5] – não vale tudo – é diabolicamente interpretada como a ordem de um
deus assustado com o alargamento da ciência humana. É o índice de uma
persistente e falsa rivalidade entre o divino e o humano. Não são capazes de
viver na alegria recíproca.
Com a simbólica narrativa da morte
de Abel pela inveja do seu irmão Caim alarga-se o mito da rivalidade. Este mundo,
na diferença humana, é de todos e para todos, de todos os povos e culturas, é a
vocação de irmãos. Não há duas humanidades, a nossa e a dos outros! A ficção narrada
pretende mostrar que uns são de Deus e outros do diabo. O outro, se não nos
ajudar, é o nosso inferno que é preciso destruir.
Nessa concepção não há lugar para
todos. Ao falar de Abel e Caim como irmãos, o conto fratricida do Génesis não
perdeu actualidade. O mundo de hoje é completamente diferente daquela sociedade
de pastores e agricultores, mas a tentação de julgar que este mundo não dá para
todos é a mesma.
Os avanços científicos e técnicos
dos últimos tempos conseguiram resultados espectaculares em todos os âmbitos do
progresso aplicável ao ser humano e ao seu ambiente. Apesar dos conflitos
locais e globais, de guerras declaradas e latentes, seria ridículo não
reconhecer os avanços espectaculares alcançados.
Existe um pequenino senão: as desigualdades entre países e continentes, e
dentro de muitos países, acentuaram-se. Não se pensa na arte de construir
pontes entre os seres humanos, mas no dinheiro que é preciso para levantar
muros físicos ou simbólicos. O destino universal de todos os bens do planeta é
uma afirmação de generosidade.
Entretanto, as vítimas das
guerras, da pobreza imposta, da miséria e das doenças que provoca, não
manifestam grande vontade de filosofar ou de fazer exercícios de
espiritualidade zen.
As obras que se escreveram e
escrevem a anunciar as datas do fim da pobreza imposta, com certo aparato
científico, parecem seguir a lógicas das Testemunhas de Jeová a anunciar o fim
do mundo.
Como apontámos, as estatísticas
vão mostrando avanços e recuos, segundo os países e os continentes, das medidas
para erradicar essa vergonha. As estatísticas não podem contabilizar os pobres
que vão tendo a morte, antes de tempo, como solução.
Para além disto, as desigualdades
entre ricos e pobres acentuam-se. A distância entre o que certas pessoas ganham
e o mínimo que outras conseguem para sobreviver, no seu dia-a-dia, poderia ser
um pecado que bradaria aos céus se neles acreditassem.
Consta que existe uma
espiritualidade para consumidores neoliberais. Diz-se que os seus exercícios
espirituais são engenhosos. Usam receitas de marca individualista/consumista,
corporativa/capitalista.
A homilia que o Papa Francisco fez
em Abu Dhabi diz que há outras formas de ser feliz. São paradoxais como as do
Evangelho, mas nunca tornaram ninguém desgraçado. Assinou com o Grão Imame de
Al-Azhar um notável documento sobre a Fraternidade
Humana.
Que fazer para o não deixar nos
arquivos religiosos?
Fica para a próxima crónica.
17.02.2019
[1] Lc 6, 17-26; Mt 5, 1-12
(ver os contrastes entre as duas versões)
[2] A moral como
contra-natureza, in Nietzsche. O
Crepúsculo dos Ídolos, Prisa Innova, 2008, 511-518
[3] Sapiens. De
Animais a Deuses. História
Breve da Humanidade, Elsinore, uma chancela da 20/20 Editora, 2018. Depois
deste já saiu o Homo Deus. História Breve
do Amanhã.
[4] Actos 17, 27-28
[5] Gn 3
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