1. A fonte da realidade, una e múltipla, é sempre oculta para quem
olha de fora. É da experiência mais imediata que há outros e outros. Uns são
acolhidos, outros são rejeitados e outros ainda são vistos com indiferença
pelos nossos afectos e comportamentos. Por pouco que se aprofunde, cada ser
humano é um abismo misterioso.
Quando falamos dos direitos e
deveres humanos, enunciamos um reconhecimento e uma vontade que mais parecem
uma veleidade do que uma energia de acção. Quando invocamos a fraternidade humana designamos apenas um
horizonte e um desejo. Se desistíssemos desse horizonte, teríamos de responder
a uma pergunta inquietante: quem tem direito a excluir os outros da condição
comum? A pena de morte, por exemplo, significa um poder absoluto sobre o outro,
em nome de quê?
Que fazer para alterar aquilo que
ofende a condição humana? É uma pergunta imensa, mas não nos impede de recordar
coisas muito básicas. Parece evidente que existe, na consciência, a noção de
bem e de mal. O bem deve-se praticar e o mal deve-se evitar. Diz-se que no concreto
das tradições culturais e éticas, muitas vezes, aquilo a que uns chamam bem
outros chamam mal. Mas não exageremos. Não pode ser uma apologia do relativismo:
se vale tudo, nada vale!
As sabedorias antigas da
reciprocidade pediam: não faças aos outros o que não desejas que os outros te
façam a ti; ou de forma positiva, faz aos outros o que desejas que os outros te
façam a ti.
Essas generalidades não servem
para construir uma articulação concreta de direitos e deveres que tornem
possível a vida em sociedade. Pertence às normas fundamentadas do Direito e aos
diferentes órgãos legítimos do poder a busca da sabedoria e da arte de governar
para evitar a tirania e a desordem.
2. Estas abstracções não movem montanhas. As religiões não aparecem
sempre, nos grandes meios de comunicação social, pelos melhores motivos e com a
melhor imagem. Umas vezes com muita razão e outras por má-fé, as religiões são
acusadas de todos os males. Jesus Cristo, o homem da intimidade com o divino e
com o humano, era um crítico de certas formas e instituições religiosas, a
começar por aquelas em que foi iniciado. Parece que nunca lhe passou pela
cabeça que esse mundo tivesse caído do céu com as normas e os interditos prontinhos
a servir. Sabia distinguir o que era digno de Deus e do ser humano, daquilo que
era fruto da construção histórica dos interesses do nacionalismo, dos grupos, das
pessoas e do que, abusivamente, era atribuído à divindade.
O diálogo inter-religioso, para
ser eficaz, exige que os intervenientes consintam em pôr em causa aquilo que
estragou o melhor das suas tradições. Não se pode assemelhar a uma falsa e
ridícula passagem de modelos de virtude.
No dia 4 de Fevereiro deste ano,
no Founder’s Memorial, em Abu Dhabi
(Emirados Árabes Unidos), o Papa Francisco e o Grande Imã da Mesquita de
Al-Azhar (Cairo – Egipto), Ahmed Mohamed El-Tayeb, considerado como a
autoridade máxima no mundo muçulmano sunita, assinaram o Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e
da convivência comum[1].
Importa destacar
que vários líderes muçulmanos europeus já apoiaram a declaração de Abu Dhabi.
A posição conjunta assume
a Declaração como um documento-guia «para as gerações futuras promoverem uma
cultura de respeito mútuo na consciência»[2].
É fundamental que os cristãos e os muçulmanos
compreendam a importância do caminho que foi aberto em Abu Dhabi. É o gesto religioso, cultural e político mais importante, não apenas
do começo do séc. XXI, mas desde há muitos séculos. As personalidades que
assinaram o histórico documento não procuram defender as respectivas instituições
religiosas. Estão a envolver as duas grandes religiões em prol do bem de toda a
humanidade. A declaração é fundamentada na fé das duas configurações, mas é uma
fé carregada com o empenhamento de cuidar da Casa Comum e de todas as
pessoas da humanidade.
«A fé leva o crente a ver no outro um irmão que se deve apoiar e
amar. Da fé em Deus, que criou o universo, as criaturas e todos os seres
humanos – iguais pela Sua Misericórdia –, o crente é chamado a expressar esta
fraternidade humana, salvaguardando a criação e todo o universo, apoiando todas
as pessoas, especialmente as mais necessitadas e pobres.
Partindo deste valor transcendente, em vários encontros dominados por uma
atmosfera de fraternidade e amizade, compartilhámos as alegrias, as tristezas e
os problemas do mundo contemporâneo, a nível do progresso científico e técnico,
das conquistas terapêuticas, da era digital, dos mass-media, das comunicações; a nível da pobreza, das guerras e das
aflições de tantos irmãos e irmãs, em diferentes partes do mundo, por causa da
corrida às armas, das injustiças sociais, da corrupção, das desigualdades, da
degradação moral, do terrorismo, da discriminação, do extremismo e de muitos
outros motivos.
De tais fraternas e sinceras acareações que tivemos e do encontro cheio de
esperança num futuro luminoso para todos os seres humanos, nasceu a ideia deste
“Documento sobre a Fraternidade Humana”. Um documento pensado com sinceridade e
seriedade para ser uma declaração conjunta de boas e leais vontades, capaz de
convidar todas as pessoas, que trazem no coração a fé em Deus e a fé na
fraternidade humana, a unirem-se e trabalharem em conjunto, de modo que tal
documento se torne, para as novas gerações, um guia rumo à cultura do respeito
mútuo, na compreensão da grande graça divina que torna irmãos todos os seres
humanos».
3. Na mesma altura, o Papa
Francisco fez um discurso notável[3], de que destaco um ponto: Se acreditamos
na existência da família humana, esta deve ser salvaguardada. Consegue-se
através dum diálogo diário e efectivo. Pressupõe a própria identidade, da qual
não se deve abdicar para agradar ao outro; mas, ao mesmo tempo, requer a coragem
da alteridade. Supõe o pleno reconhecimento do outro, da sua liberdade
e impõe-me o compromisso de tudo fazer para que os seus direitos fundamentais
sejam sempre respeitados, em toda parte e por quem quer que seja. Sem
liberdade, não se é filho da família humana, mas escravo. Entre as liberdades, o
Papa salienta a liberdade religiosa. Esta não se limita à mera liberdade de
culto, mas vê no outro verdadeiramente um irmão, um filho da mesma humanidade,
que Deus deixa livre e, por conseguinte, nenhuma instituição humana pode
forçar, nem mesmo em nome d’Ele.
Isto não se ouve muitas vezes.
24.02.2019
[2]
7Margens, jornal digital, 2019.02.17
[3]
Deus está com o homem que procura a paz, http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2019/february/documents/papa-francesco_20190204_emiratiarabi-incontrointerreligioso.html
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