1. Se Deus fala, é porque tem boca e diz coisas com sentido. Se tem
boca, tem de ter um rosto. Se tem um rosto, tem uma cabeça. Quem já viu essa
boca a pronunciar palavras? Numa reunião de catequese, a catequista viu-se
surpreendida com essa pergunta de uma criança, já não tão criança. Ela própria
ficou tão embaraçada que lhe disse: ó menina, isso não é pergunta que se faça,
é uma maneira de dizer. A criança insistiu: mas Deus fala ou não fala?
No ambiente litúrgico e
catequético, e até na linguagem corrente, os líderes das comunidades cristãs
não se dão conta, pelo hábito de falar sem se explicarem, dando por sabido o
que nem eles sabem, de que estão a preparar pessoas para confessar um credo e
praticar rituais, mas sem a mínima inteligência do que dizem e fazem. Com o
tempo, estão a preparar descrentes.
Já na Idade Média, Tomás de Aquino
afirmava que, quando se pretende levar alguém à inteligência da raiz da verdade
que confessa, tem muito que investigar para responder à pergunta: como é que é verdade aquilo que confessas ser
verdade? Não basta recorrer a argumentos de autoridade. Nesse caso, o
ouvinte fica sem ciência nenhuma e vai-se embora de cabeça vazia[1]. Não é boa recomendação a
fé ignorante.
No âmbito religioso, estamos tão
habituados a um certo uso da linguagem que julgamos estar sempre perante
comunidades que merecem o elogio de S. Paulo: «tendo recebido a palavra de Deus, que nós vos anunciámos,
vós a acolhestes não como palavra de seres humanos, mas como ela é
verdadeiramente: palavra de Deus, a qual também actua em vós que acreditais»[2].
A criança a que nos referimos
diria ao apóstolo: e como é que sabes que é palavra de Deus, se todas essas
palavras são humanas, criadas por seres humanos?
Responder que, na Bíblia, o uso de
gestos simbólicos, de parábolas e de metáforas, é a forma de dizer o indizível
não basta, pois, se é indizível porque é andam sempre a esforçar-se por dizer? Mas
cuidado, esse é o belo ofício dos poetas.
Estamos perante um tema imenso,
mas não nos podemos esquecer que Jesus também não confiou no amontoado de
explicações dos sábios e entendidos que deixavam nas trevas os que mais
precisavam de uma nova luz. Como filho de Deus, agradece o advento de uma nova
época que varre séculos e séculos de ignorância, como já disse numa destas
crónicas[3]. O que importa é libertar
a catequese, as homilias, a teologia de rotinas que impedem a alegria do
Evangelho para os dias de hoje, isto é, nas mudanças culturais.
2. A liturgia de hoje oferece um dos textos bíblicos que mais tem
dado que falar em todos os tempos[4]. O cenário é de uma
experiência do sagrado, do intocável, do tremendo
e fascinante[5].
Moisés quer aproximar-se de um
espectáculo que o atrai, mas há uma voz que lhe diz: não te aproximes. Tira as
sandálias dos pés porque o lugar que pisas é terra sagrada. E acrescentou, eu
sou o Deus dos teus pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob. Com o
receio de olhar para Deus, Moisés cobriu o rosto.
Mas Deus olhou para o povo oprimido e manifestou a
Moisés as suas intenções libertadoras. No final, Moisés quer saber mais do que
lhe está a ser comunicado e atreve-se: Eis que eu vou ter com os filhos de
Israel e digo-lhes: o Deus dos vossos pais enviou-me a vós. Eles dir-me-ão:
qual é o nome dele? Que lhes direi eu?
Resposta de Deus: Eu sou aquele que sou, yhwh (Iavé). Assim dirás aos filhos de
Israel: Eu sou enviou-me a vós!
De facto, as frases, Eu sou aquele que sou (‘ehyeh
‘axer ‘ehyeh) e Eu sou (‘ehyeh) são explicações etimológicas do
tetragrama, yhwh. O verbo ‘ehyeh,
ser/estar, tanto pode ser dito no presente como no futuro (eu sou-serei/eu
estou-estarei).
Usado mais de 6800 vezes no AT, YHWH (Iavé), o chamado
tetragrama (literalmente, quatro letras), é o mais frequente nome próprio do
Deus Bíblico e está documentado em várias inscrições extra-bíblicas.
Como escreveu o grande exegeta, Francolino J. Gonçalves[6], judeus
e cristãos crêem que as suas respectivas sagradas Escrituras são palavra de
Deus. Os próprios muçulmanos reconhecem a origem divina das ditas Escrituras.
Para o leitor que não usa o projector da fé, porque não o tem ou não se serve
dele, Deus não é o único locutor na Bíblia. No entanto, é o seu protagonista.
Deus desempenha na Bíblia um papel incomparavelmente mais importante do que
qualquer uma outra das numerosíssimas personagens humanas. É sujeito de muitos
discursos e objecto ou destinatário de muitos outros. É um dos narradores e,
com muito mais frequência, objecto das narrativas.
Se, de facto, Deus fala na Bíblia de uma ponta a outra,
só pode fazê-lo pela boca das pessoas humanas que nela intervêm, falando todas
elas, explícita ou implicitamente, em seu nome. Para os leitores crentes, há
uma sinergia entre Deus e os locutores humanos. A Bíblia é ao mesmo tempo palavra
divina e palavra humana ou, melhor dito, palavra
divina em palavras humanas. Nela está em acção o princípio da encarnação,
que culmina no Verbo de Deus feito homem. Para os crentes, a Bíblia não é só
palavra de Deus, mas também palavra sobre Deus. Directa ou indirectamente, ela
fala de Deus de uma ponta a outra. Em geral, não fala de Deus por si mesmo, mas
em relação com a criação e/ou com o seu povo.
3. Quando
se diz, como no título desta crónica, Deus
não sabia o seu nome, não é fazer dele um ignorante. Em certas culturas, conhecer
o nome é tomar posse de uma pessoa, de um animal ou de uma coisa. Tive um
professor de exegese que era alérgico à metafísica elaborada a partir da
Bíblia. Não gostava nada de ouvir falar de metafísica sagrada do Êxodo, incluída
na expressão, Eu sou.
A resposta que Moisés recebeu é uma forma de afirmação
da transcendência divina. Deus não cabe em conceitos, em representações que,
facilmente, resvalam para a idolatria e, por seu lado, a linguagem simbólica
não diz, sugere. O célebre Mestre Eckhart rezava: Deus livra-me de Deus, de representações que pretendem substituí-lo.
Outros místicos falam de Deus como nuvem
luminosa, a luz misteriosa do mundo.
O Deus da Bíblia não é o Deus do silêncio nem o Deus
das definições, mas precisamos de muito silêncio para O escutar nas suas mil
vozes.
24. 03. 2019
[1] Quodlibetum Quartum, q.9, a. 3
[2] 1Ts 2, 13.
[3] Lc 10, 17-24
[4] Ex 3, 1-15
[5] Cf. Rudolf Otto, O Sagrado, Edições 70, 1992
[6] Iavé, Deus de Justiça e de Bênção, ISTA 22 (2009), 107-152. Este
longo texto esteve sempre presente nesta crónica.
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