1. É frágil a complexidade humana
perante o erro, mas é também capaz
de se levantar e corrigir as situações
que a ele conduzem. A Igreja
Católica está a atravessar uma grave
crise de imagem e credibilidade
na opinião pública por causa dos escândalos
de pedofilia praticados, em vários países,
por alguns membros do clero. O Papa Francisco
convocou os representantes dos bispos e de
ordens religiosas de todo o mundo para reflectir
e tomar medidas de correcção e prevenção
em relação ao repugnante flagelo da pedofilia
na Igreja. Espera-se que essas medidas não se
limitem apenas a curar e prevenir, mas tenham
também o alcance de renovar. E nesse verbo renovar
está também a necessidade de olhar para
além do estado actual de obrigatoriedade do celibato
do clero. Não me refiro aqui ao aspecto
subjectivo e pessoal do celibato enquanto decisão
carregada de investimento afectivo e religioso,
que faz a diferença psicológica, mas à
realidade biopsíquica que implica privação da
sexualidade. Porque, embora a pedofilia seja
uma tendência patológica que não acontece
apenas em contexto de celibato obrigatório (o
que faz com que, nesses casos, se não possa falar
de relação causa/efeito), estudos demonstram
que situações semelhantes podem potenciá-la
como forma de compensação (1).
Outro facto recente, que a comunicação social
tem divulgado muito, relacionado também
com o celibato obrigatório do clero, foi a
publicação do livro “No armário do Vaticano”,
por altura dessa reunião no Vaticano: é uma
denúncia de alegadas práticas de homossexualidade
por clérigos do Vaticano. Livro que logo
foi traduzido para várias línguas. Embora
se compreenda que falar destes temas ainda
seja psicanaliticamente melindroso para algumas
pessoas, eles devem ser tratados com
rigor científico e prático. E tanto mais quanto
é certo que o celibato obrigatório do clero,
como escreve o teólogo Hans Kung, embora
seja um dos pilares funcionais da organização
da Igreja, não tem nada a ver com questões
de Fé: é apenas uma questão de tradição
disciplinar na prática da Igreja que pode ser
abolida por um simples decreto do Papa, se
assim o entender.
2. Por outro lado, é difícil não associar estes
factos ao longo historial de polémicas e lutas
da repetida imposição do celibato ao clero,
tanto em concílios regionais, como o de
Elvira, em Granada, pelo ano 300, com o conhecido
cânone 33, que talvez estivesse mais
focado em evitar casamentos de idolatria do
que em impor o celibato como tal; os concílios
de Toledo III, no ano 589 e IX em 655;
o I concílio Germânico, em 742; o concílio I
de Sevilha (em 590); o II concílio de Braga,
em 572; a acção repressiva do Papa Gregório
VII; a carta do Papa Gregório IX no tempo de
D. Afonso Henriques a recomendar à Igreja
de Lisboa que “qualquer mulher encontrada a
viver com um clérigo fosse presa…”)… E também
concílios gerais da Igreja, como o II de Latrão
(em 1139) e o de Trento, em 1564... A diferença
substancial do concílio de Trento em relação
aos outros concílios foi que, enquanto estes
apenas impunham penas (e algumas muito severas
e desumanas), ele foi mais longe: para além
das penas, criou também uma escola de formação
para os candidatos a clérigos, os seminários,
que visavam a instrução e a formação da
personalidade, desde pequenos. Sinal dos tempos
é que, desde há várias décadas para cá, os
seminários (e conventos) foram ficando desertos
e fechando... Quer isto dizer que os caminhos
que eles simbolizavam já não passam unicamente
por esses modelos de vida? Cada tempo
tem a sua cultura, as suas realidades simbólicas,
os seus caminhos. Assim, por exemplo,
porque não admitir, para já, homens casados
com probidade reconhecida para desempenharem
essas funções? Porque não apostar a
sério na formação das comunidades de base,
mas não com uma teologia clericalizada?
3. Foi anunciado pelo Vaticano que era preciso
afastar os culpados e prevenir mais abusos
de pedofilia na Igreja. Dentro do quadro
actual, não havia outra solução. Mas, será que,
nada se alterando, essa estratégia vai resolver as
seculares polémicas do celibato obrigatório? A
lição da História e os actuais ensinamentos das
Ciências Humanas deixam-nos dúvidas, tanto
mais que a consciência social de hoje a respeito
da corporalidade e da sexualidade e o saber
actual das Ciências Humanas estão nos antípodas
das ideias da Gnose e do Monaquismo
de outros tempos… E mesmo que não se preveja
a probabilidade de, por decreto do Papa,
o celibato obrigatório ser abolido, há caminhos
de erosão das instituições que o adop tam que
vão levar a essa mudança. O que não quer dizer
que o celibato deixe de continuar a existir
como opção pessoal. A Igreja não deve ter receio
de se inovar em questões secundárias como
esta, sob pena de se autoexcluir da confiança
dos Homens; pelo contrário, deve assumir
uma nova antropologia cristã da sexualidade
humana, realçando a transcendência da sua
beleza e do seu sentido na construção da relação
humana. A Humanidade espera ansiosamente
esse passo; se o não fizer, outros o farão,
com riscos de aproveitamento enviesado.
Para além disso, há condenações de hoje, vidas
perdidas sem glória para ninguém, que a
História julgará como vítimas de falta de visão
de futuro e de não ter procurado entender os
meandros da psicologia humana nestes constrangimentos,
que podem levar a erros deploráveis.
Não se devem esquecer as sábias palavras
do poeta Bertolt Brecht: “toda a gente está
pronta para condenar as cheias do rio (os culpados
de hoje), mas poucos olham para as margens
que o comprimem” (a opressão da sua humanidade,
em nome de nada).
(1) J. de Ajuriaguerra, Psychiatrie de L’Enfant, 2.ª edição,
1974, Paris 6).
(Nota: o autor não escreve de acordo com o chamado
Acordo Ortográfico).
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