1. Na última quinta-feira,
a Igreja católica celebrou a festa do Corpo de Deus, feriado nacional. As
origens desta festa estão envolvidas em histórias de muita fantasia. A chamada Lenda
Rigaldina (séc. XIV) é a mais divertida. Estava Santo António a pregar, em
Toulouse, sobre a presença real
de Cristo sob as espécies do pão e do vinho, quando um ateu, chamado Bonillo, o
enfrentou com um desafio: só acreditaria no que acabava de ouvir se a sua mula
se ajoelhasse diante do ostensório eucarístico. Frei António aceitou e ampliou o
desafio. Mandou que deixassem o animal sem comer três dias e, no final, lhe
fosse apresentado um monte de erva e, ao lado, o ostensório.
No fim do terceiro dia, a mula esfomeada foi solta e, passando por um monte
de feno e aveia, foi ajoelhar-se em frente da Custódia. Esta lenda deu origem a
outra: uma freira agostiniana, Juliana de Mont Carnillon, terá conhecido ecos
da pregação do Santo e teve visões de que era o próprio Cristo a manifestar-lhe
o desejo de que o mistério da Eucaristia fosse celebrado com mais solenidade.
Terá revelado esse desejo ao futuro Urbano IV. Entretanto, na cidade de
Bolsena, perto de Orvieto, residência do Papa, aconteceu um espantoso milagre:
um padre, ao celebrar a Eucaristia e ao partir a Hóstia consagrada, viu cair
sobre a toalha gotas de sangue!
O Papa determinou que fossem levados para Orvieto, em grande procissão, os
objectos envolvidos nesse prodígio, o que aconteceu a 19 de Junho de 1264. Terá
sido esta a primeira procissão da festa
Corpus Christi promulgada por Urbano IV.
De vários textos em concurso para a celebração da festa, foi preferido o de
S. Tomás de Aquino. É uma grande peça poética e teológica de que faz parte o Tantum Ergo Sacramentum cantado até aos
nossos dias.
A insistência na chamada presença
real tornou-se um problema, sobretudo a partir do séc. XI, em resposta às
negações do teólogo Berengário de Tours. História longa e complexa. Quando não
se entende que não existe oposição entre presença simbólica e presença real,
todos os equívocos são possíveis.
As narrativas sobre a Eucaristia evocam todas a Quinta-Feira Santa, que só
a partir do séc. IV foi solenizada. São todas festas do Corpo de Deus, do Deus
connosco, do Deus humanado.
O excesso de ritualização, no cristianismo, tende a esquecer o verdadeiro
alcance dos seus símbolos fundadores. É o que passamos a procurar.
2. Este ano, os textos escolhidos para a celebração do Corpo de Deus, são dos
mais antigos e dos mais provocadores para a nossa contemporaneidade, a nível
local e global: a persistência das escandalosas desigualdades sociais e da
fome, cuja erradicação é sempre anunciada para continuar sempre adiada. Que
pode a missa contra isto?
Pelos vistos, é uma questão com a qual S. Paulo, no texto mais antigo sobre
a Eucaristia, se viu confrontado[1].
Observou divisões sociais inaceitáveis na comunidade cristã de Corinto. Alguns
serviam-se da própria reunião eucarística para exibir a sua superioridade
económica e social. Levavam consigo boa comida e boa bebida que não
partilhavam. S. Paulo fica indignado: será que não tendes casas para comer e
beber ou vindes desprezar a Igreja de Deus e envergonhar aqueles que nada têm? Não
esperem o meu louvor.
Vale sempre a pena regressar a um texto que ele próprio recebeu do Senhor e
que, ainda hoje, é norma em todas as celebrações. Quando Jesus diz Isto é o meu corpo, evoca o sentido que
deu a toda a sua vida e que deve ser o sentido da vida dos discípulos, de cada
cristão: gastar suas energias para que todos tenham vida e vida em abundância. Nós,
ao comungarmos, recebemos essa missão. Cada um tem de se examinar sobre o que
pode fazer pelo bem dos mais marginalizados e marginalizadas.
Quando acrescenta: este cálice é a
nova aliança no meu sangue, todas as vezes que o beberdes fazei-o em memória de
mim, Jesus não estava a erguer um monumento à sua memória, como se tivesse
receio de ser esquecido. O que ele procura é que o Evangelho seja continuado,
que o seu percurso, pelo qual foi morto, não seja esquecido. A nova Aliança é o
compromisso de Deus com as populações mais pobres, que não pode ser adulterado. Ao insistir, em memória de mim, é para não esquecermos a vida perigosa em que
Jesus se envolveu: o caminho da fidelidade cristã, ao longo dos séculos, nas
situações mais imprevisíveis.
Quem vai às celebrações eucarísticas sem este compromisso está a iludir-se:
come e bebe a sua própria condenação.
Uma Eucaristia é uma convocatória para alterar o rumo do mundo desumanizado e
responsabilizar as Igrejas: como é possível missa após missa, rito após rito,
continuar tudo na mesma?
O texto do Evangelho escolhido para essa celebração é uma parábola provocatória:
os discípulos imaginam Jesus distraído. Falou e falou muito, mas fez-se tarde e
parecia que Jesus não se apercebia da situação real. O melhor era que desse por
encerrada a sessão e que cada um procurasse onde poderia ir comer. Tentaram
descartar-se. Jesus intima-os: dai-lhes
vós mesmos de comer[2].
Tinham pouco: 5 pães e 2 peixes para cinco mil pessoas? Jesus mostra uma lei
universal. O que existe no mundo ou pode ser produzido, se for bem repartido,
dá para todos e ainda sobra: é o sentido da parábola da multiplicação dos pães
e dos peixes.
Não se pode pensar em partilha dos bens quando está tudo organizado para
que os que têm, tenham cada vez mais e os que não têm fiquem ainda mais longe
da mesa que deveria ser comum, o destino universal dos bens[3]. Como
diz o Papa Francisco, cada vez há menos ricos, menos ricos com a maioria da
fortuna do mundo. E cada vez há mais pobres com menos do mínimo para viver[4].
Quando celebramos a Eucaristia, a grande preocupação não pode ser, apenas,
a de não faltarem hóstias para os fregueses. A pergunta é outra: desta
Eucaristia vai sair gente empenhada em que a ninguém falte o pão, a casa e o
trabalho? Quando Jesus diz isto é o meu
corpo é também a esse corpo social que se refere.
3. Há duas boas notícias sobre a Eucaristia. No documento de trabalho para o
Sínodo da Amazónia, está aberta a discussão sobre a ordenação de homens casados
e a revisão dos ministérios das mulheres na Igreja. Este tabu acabou. Os sinos tocaram na Ribeira Seca e ela floriu. Não
creio que Jesus Cristo estivesse de acordo com a suspensão a divinis, há 40 anos, do padre Martins Junior. Parece que o novo
Bispo também não acreditou nisso.
23. Junho. 2019
[1]
1Cor 11, 16-34
[2]
Lc 9, 11-17
[3]
Discurso aos juízes do continente americano reunidos em congresso no Vaticano.
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