domingo, 9 de junho de 2019

PENTECOSTES: SÓ A MUITAS VOZES! Frei Bento Domingues, O.P.


1. É muito bela a narrativa mítica da Torre de Babel e, a meu ver, muito mal interpretada. A diversidade das línguas e a dificuldade que ela representa, para a chamada comunicação, é um dado da experiência universal. O desejo/sonho de uma só língua, para ser realizado, precisa de um poder dominador universal que elimine todas as outras. No referido mito, é a intervenção de Deus que se opõe a esse imperialismo de destruição da diversidade linguística para a realização de projectos megalómanos[1]. Muitas vezes se contrapôs o mito do Pentecostes[2] ao da Torre de Babel quando, de modo diferente, são ambos a apologia da diversidade. No Pentecostes, cada qual os ouvia falar na sua própria língua. Estupefactos e surpreendidos diziam: Não são todos galileus, esses que estão a falar? Como é que cada um de nós os ouve na sua própria língua materna?

O universalismo do movimento cristão não é uma razia da diversidade cultural e linguística. O desejo de catecismos universais e de um direito canónico, onde está tudo previsto, são incapazes de se converterem à diversidade na História da Igreja. Apesar do Vaticano II, a unicidade nas expressões da Fé cristã continua a contrariar a pluralidade cultural, mesmo dentro de um só país.

2. Este Pentecostes foi preparado por alguns acontecimentos significativos em relação ao desejado pluralismo.

O célebre historiador, José Mattoso, ao receber o Prémio Árvore da Vida, reconheceu que um conjunto de personalidades tem feito da fé cristã o fundamento da sua obra cultural. «Em vez de oporem a fé à racionalidade, inspiram-se nela para produzir cultura. Houve tempos e lugares em que esta associação se considerava impossível. A fé opunha-se à ciência, à razão e à cultura. Hoje o diálogo tornou-se pacífico, e a crença é, para muitos, fonte verdadeira de inspiração cultural».

Lembrou ainda que «a obsessão uniformizadora do catolicismo quinhentista e seiscentista persistiu durante os séculos seguintes e levou, por exemplo, a proibir a leitura de Erasmo, a condenar Copérnico, a criar a Inquisição, a legitimar a tortura, a proibir a leitura da Bíblia em língua vulgar, a fazer abortar os primeiros ensaios do Liberalismo Católico.

«Creio que temos alguma coisa a aprender com a História, sobretudo com a história da espiritualidade e das ordens religiosas. Tal como no século XV, procuramos conciliar a pluralidade das iniciativas e experiências, com a necessária firmeza e unidade da Igreja. Creio que só um pluralismo de raiz evangélica, fruto da Palavra única de Jesus Cristo, pode conciliar a imensidade e a multiplicidade das suas incarnações, no tempo e no espaço»[3].

Realizou-se, em Lisboa, na Faculdade de Letras, na Universidade Nova e no Convento de S. Domingos, de 20 a 22 de Maio de 2019, um Simpósio Internacional de exegetas, em Homenagem a Frei Francolino Gonçalves, O.P. (1943-2017), investigador e professor da Escola Bíblica de Jerusalém. Só um simpósio deste nível podia celebrar o seu contributo inovador na exegese bíblica. A sua teoria dos dois Iaveísmos – o universalista e o nacionalista – permite uma leitura libertadora, do Antigo Testamento, com novas perspectivas, tanto no campo da exegese bíblica como no da teologia e da acção pastoral da Igreja.

Eduardo Lourenço, autor de uma imensa obra inaugurada pela publicação de Heterodoxia (1949), recebeu, no seu dia de anos, o Prémio Livraria Lello. O papel desta obra, para a sociedade portuguesa, foi incomparável. Se a nossa hierarquia eclesiástica a tivesse acolhido, muitos dos Vencidos do Catolicismo, evocados por Ruy Belo, teriam sido vozes múltiplas do Pentecostes que muitos esperaram em vão.

Quem poderia imaginar, nesse tempo, o que o actual Bispo do Porto disse no funeral de Agustina Bessa-Luís? São palavras suas: «Obrigado, Deus, porque nos deste uma pessoa de tão alta categoria intelectual, religiosa, cristã; e obrigado Agustina, por esta extraordinária lição de teologia que a tua vida acabou por nos dar»[4].

3. No âmbito da programação desenhada para 3º Ciclo, do Núcleo Parque dos Poetas |Templo da Poesia, da Câmara Municipal de Oeiras, depois de os anteriores dedicados a Camões e a Fernando Pessoa, chegou a vez de Sophia de Mello Breyner Andresen. Entre as múltiplas perguntas, acerca desta grande poeta, fui convidado para responder a uma pouco usual: Sophia foi crente?

No longo Prefácio [Pórtico] aos Contos Exemplares, o célebre Bispo do Porto, António Ferreira Gomes, escreveu: «Cristã e mesmo quase litúrgica é a vivência poética de Sophia nos seus Contos (dizemos bem, poética, porquanto de prosa aqui não há mais que o aspecto gráfico, íamos a dizer tipográfico). (…) E que melhor liturgia natalícia da Palavra se poderia desejar do que essa extraordinária parábola de Os Três Reis do Oriente?[5]

Na sua notável obra, Helena Malheiro dedicou um capítulo à Viagem Sagrada de Sophia[6]. Eu próprio me referi, em dois pequenos textos, à dimensão original da sua concepção religiosa e cristã[7].

Não disponho de espaço para mostrar, através dos seus poemas, a originalidade da sua fé. Não era panteísta nem ateia. A grande tarefa de Sophia foi a de não desqualificar a realidade imanente em nome da transcendência de Deus. Não eclipsar o mundo para encontrar o divino: Senhor sempre Te adiei/ embora sempre soubesse que me vias / Quis ver o mundo em si e não em ti / E embora nunca te negasse te apartei.

O seu longo poema, A casa de Deus, assume as ciências, as técnicas, as artes: Os homens a constroem na terra/ Situada no tempo/ Para habitação da eternidade.

Como ela própria diz, nesta casa celebramos a Páscoa porque Deus nos criou para a alegria.



09. Junho. 2019



[1] Gn 11, 1-9
[2] Act 2 1-13
[3] Ver o texto na íntegra no site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.
[4] Quem desejar conhecer a sua atitude de católica militante, algo heterodoxa, veja A Educação na Fé, in Agustina Bessa-Luís, Contemplação carinhosa da Angústia, Guimarães Editores, 2000, 335-348; Maria Luiza Sarsfiel Cabral, A dimensão religiosa na obra de Agustina Bessa-Luís, in Frei Bento Domingues e o Incómodo da Coerência, 419-445.
[5] Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos exemplares, Figueirinhas, 35ª edição, 2004 (1962), pág. 35
[6] Helena Malheiro, O Enigma de Sophia. Da Sombra à Claridade, Oficina do Livro, Lisboa, 2008, 239-274.
[7] Frei Bento Domingues, O.P., Sophia: Uma poesia do limiar, in Homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen. Actas. 3 e 4 de maio de 2000, Areal Editores, 12-16; Não eclipsar o mundo para encontrar o divino, in JL de 8 a 21 de Maio. 2019, 11

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