1. É muito bela a
narrativa mítica da Torre de Babel e, a meu ver, muito mal interpretada. A
diversidade das línguas e a dificuldade que ela representa, para a chamada
comunicação, é um dado da experiência universal. O desejo/sonho de uma só
língua, para ser realizado, precisa de um poder dominador universal que elimine
todas as outras. No referido mito, é a intervenção de Deus que se opõe a esse
imperialismo de destruição da diversidade linguística para a realização de
projectos megalómanos[1]. Muitas vezes se contrapôs
o mito do Pentecostes[2] ao da Torre de Babel
quando, de modo diferente, são ambos a apologia da diversidade. No Pentecostes,
cada qual os ouvia falar na sua própria língua. Estupefactos e surpreendidos
diziam: Não são todos galileus, esses que
estão a falar? Como é que cada um de nós os ouve na sua própria língua materna?
O universalismo do movimento cristão não é uma razia da
diversidade cultural e linguística. O desejo de catecismos universais e de um
direito canónico, onde está tudo previsto, são incapazes de se converterem à
diversidade na História da Igreja. Apesar do Vaticano II, a unicidade nas
expressões da Fé cristã continua a contrariar a pluralidade cultural, mesmo
dentro de um só país.
2. Este
Pentecostes foi preparado por alguns acontecimentos significativos em relação
ao desejado pluralismo.
O célebre historiador, José Mattoso, ao receber o Prémio Árvore da Vida, reconheceu que um conjunto de personalidades tem feito da
fé cristã o fundamento da sua obra cultural. «Em vez de oporem a fé à
racionalidade, inspiram-se nela para produzir cultura. Houve tempos e lugares
em que esta associação se considerava impossível. A fé opunha-se à ciência, à
razão e à cultura. Hoje o diálogo tornou-se pacífico, e a crença é, para
muitos, fonte verdadeira de inspiração cultural».
Lembrou
ainda que «a obsessão uniformizadora do catolicismo quinhentista e seiscentista
persistiu durante os séculos seguintes e levou, por exemplo, a proibir a
leitura de Erasmo, a condenar Copérnico, a criar a Inquisição, a legitimar a
tortura, a proibir a leitura da Bíblia em língua vulgar, a fazer abortar os
primeiros ensaios do Liberalismo Católico.
«Creio
que temos alguma coisa a aprender com a História, sobretudo com a história da
espiritualidade e das ordens religiosas. Tal como no século XV, procuramos
conciliar a pluralidade das iniciativas e experiências, com a necessária
firmeza e unidade da Igreja. Creio que só um pluralismo de raiz evangélica,
fruto da Palavra única de Jesus Cristo, pode conciliar a imensidade e a
multiplicidade das suas incarnações, no tempo e no espaço»[3].
Realizou-se, em Lisboa, na Faculdade de Letras, na
Universidade Nova e no Convento de S. Domingos, de 20 a 22 de Maio de 2019, um
Simpósio Internacional de exegetas, em Homenagem a Frei Francolino Gonçalves,
O.P. (1943-2017), investigador e professor da Escola Bíblica de Jerusalém. Só
um simpósio deste nível podia celebrar o seu contributo inovador na exegese
bíblica. A sua teoria dos dois Iaveísmos – o universalista e o nacionalista –
permite uma leitura libertadora, do Antigo Testamento, com novas perspectivas,
tanto no campo da exegese bíblica como no da teologia e da acção pastoral da
Igreja.
Eduardo Lourenço, autor de uma imensa obra inaugurada pela
publicação de Heterodoxia (1949),
recebeu, no seu dia de anos, o Prémio
Livraria Lello. O papel desta obra, para a sociedade portuguesa, foi
incomparável. Se a nossa hierarquia eclesiástica a tivesse acolhido, muitos dos
Vencidos do Catolicismo, evocados por
Ruy Belo, teriam sido vozes múltiplas do Pentecostes que muitos esperaram em
vão.
Quem poderia imaginar, nesse tempo, o que o actual Bispo do
Porto disse no funeral de Agustina Bessa-Luís? São palavras suas: «Obrigado, Deus,
porque nos deste uma pessoa de tão alta categoria intelectual, religiosa,
cristã; e obrigado Agustina, por esta extraordinária lição de teologia que a
tua vida acabou por nos dar»[4].
3. No âmbito da
programação desenhada para 3º Ciclo,
do Núcleo Parque dos Poetas |Templo da Poesia, da Câmara
Municipal de Oeiras, depois de os anteriores dedicados a Camões e a Fernando
Pessoa, chegou a vez de Sophia de Mello Breyner Andresen. Entre as múltiplas
perguntas, acerca desta grande poeta, fui convidado para responder a uma pouco
usual: Sophia foi crente?
No longo Prefácio [Pórtico] aos Contos Exemplares, o célebre Bispo do Porto, António Ferreira
Gomes, escreveu: «Cristã e mesmo quase litúrgica é a vivência poética de Sophia
nos seus Contos (dizemos bem, poética, porquanto de prosa aqui não há mais que
o aspecto gráfico, íamos a dizer tipográfico). (…) E que melhor liturgia
natalícia da Palavra se poderia desejar do que essa extraordinária parábola de Os Três Reis do Oriente?[5]
Na sua notável obra, Helena Malheiro dedicou um capítulo à Viagem Sagrada de Sophia[6]. Eu próprio me referi, em
dois pequenos textos, à dimensão original da sua concepção religiosa e cristã[7].
Não disponho de espaço para
mostrar, através dos seus poemas, a originalidade da sua fé. Não era panteísta
nem ateia. A grande tarefa de Sophia foi a de não desqualificar a realidade
imanente em nome da transcendência de Deus. Não eclipsar o mundo para encontrar
o divino: Senhor sempre Te adiei/ embora
sempre soubesse que me vias / Quis ver o mundo em si e não em ti / E embora
nunca te negasse te apartei.
O seu longo poema, A casa de Deus, assume as ciências, as
técnicas, as artes: Os homens a constroem na terra/ Situada no
tempo/ Para habitação da eternidade.
Como ela
própria diz, nesta casa celebramos a Páscoa porque Deus nos criou para a
alegria.
09. Junho. 2019
[1]
Gn 11, 1-9
[2]
Act 2 1-13
[3]
Ver o texto na íntegra no site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.
[4]
Quem desejar conhecer a sua atitude de católica militante, algo heterodoxa,
veja A Educação na Fé, in Agustina
Bessa-Luís, Contemplação carinhosa da
Angústia, Guimarães Editores, 2000, 335-348; Maria Luiza Sarsfiel Cabral, A dimensão religiosa na obra de Agustina
Bessa-Luís, in Frei Bento Domingues e
o Incómodo da Coerência, 419-445.
[5]
Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos
exemplares, Figueirinhas, 35ª edição, 2004 (1962), pág. 35
[6]
Helena Malheiro, O Enigma de Sophia. Da
Sombra à Claridade, Oficina do Livro, Lisboa, 2008, 239-274.
[7]
Frei Bento Domingues, O.P., Sophia: Uma
poesia do limiar, in Homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen. Actas. 3
e 4 de maio de 2000, Areal Editores, 12-16; Não
eclipsar o mundo para encontrar o divino, in JL de 8 a 21 de Maio. 2019, 11
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