1. O panorama dos estudos sobre a religião na sociedade portuguesa
continua a enriquecer-se. Segundo um Inquérito recente[1], o pluralismo religioso,
no território português, está a concentrar-se na Área Metropolitana de Lisboa. Nasce
a pergunta: este pluralismo é vivido como diálogo que vai alterando e
fecundando os comportamentos de cada grupo ou limita-se a garantir que possam coexistir
de forma tolerante ou até indiferente?
A liberdade religiosa está
legalmente garantida em Portugal. Segundo um Relatório de 2018[2], não se registaram casos
significativos de discriminação por razões religiosas ou abusos de liberdade
religiosa que possam ser imputáveis ao Estado ou a outras entidades, nem se
perspectivam, num horizonte temporal próximo, tensões sociais, económicas ou
políticas que façam prever uma alteração desta situação.
Importa robustecer este clima porque,
hoje, tudo é muito frágil. Mas persiste a pergunta: esta coexistência pacífica está
a ser activada para alargar e aprofundar a qualidade espiritual das religiões e
as suas responsabilidades sociais ou é sinal de crescente indiferença?
Não se pode confundir o diálogo
inter-religioso com uma passagem de modelos na qual cada um exibe a sua imagem
convencional retocada para ficar bem na fotografia. Sabemos que um confronto é
amistoso e crítico quando cada grupo reconhece com verdade: em relação ao
passado, nós mudamos muito e vós também.
Com isto não se pretende a
abolição das identidades dos diversos movimentos e instituições, desenhadas
pela história de fidelidades, inovações e traições, de verdadeiras e falsas
reformas[3]. As religiões são
construções simbólicas, rituais e organizativas do ser humano, sem garantias de
infalibilidade, para configurar o sentido da vida e alimentar a esperança nos
bons e nos momentos em que tudo parece perdido.
Como dizia Frei José Augusto
Mourão, a era das definições unívocas de religião acabou. Prevalece uma
concepção liberal que vai obrigar a que se aceite conviver segundo a ideia de
que não há uma saturação do espaço da verdade. O espaço da verdade partilha-se.
Há posições, há valores que diferem de religião para religião, de grupo para
grupo, de instituição para instituição. Desde que isso não colida com o
inegociável, com o indisponível, é possível às pessoas conviverem em paz, sem
guerras de religião.
O mito de Babel era a ideia
concentracionária de uma única língua, da abolição das diferenças. Era a
violência de uma única linguagem. O simbólico derrube da Torre aponta para um
valor que nos há-de congregar: se não chegarmos ao diálogo, que cheguemos, no
mínimo, à negociação das diferenças[4].
2. Mesmo sem uma definição unívoca de religião, há quem não goste
de abrigar o fenómeno cristão sob esse nome. Eduardo Lourenço, por exemplo, tem
observações pertinentes acerca deste ponto: «É mais do que discutível que o
cristianismo seja uma mística, embora haja, naturalmente, uma mística cristã. É
mesmo mais do que discutível que o cristianismo seja uma religião, no sentido antigo e clássico do termo ciceroniano de religare, embora fosse esse o que,
exceptuando o horizonte da teologia negativa, se impôs culturalmente».
Explica porquê: «A religio, segundo Cícero, denota a
dependência, o laço que ata o homem a Deus. Mas de algum modo esse laço não ata
menos Deus ao homem. O cristianismo está aquém ou além desta mútua
interdependência. O nome de “Pai”, dado a Deus, não é uma mera antropologização
destinada a nomear o que não tem nem pode ter nome – como se fosse “criado”
pela nossa nomeação –, mas a pura metáfora do sentimento de pura gratuidade que
é a essência do laço que não nos ata a Deus – e muito menos Deus a nós –, mas
nos desata de todo o império da
necessidade. Deus não é a nossa “propriedade” nem nós a de Deus»[5].
3. O filósofo espanhol, José Antonio Marina, escreveu um ensaio
desafiado por outro de sinal contrário, o de Bertrand Russell[6]. Não cabe nesta crónica a
discussão que merece. Defende que a religião é a experiência que acompanhou,
desde o princípio, a irrupção da criatividade do mundo. O despertar da
inteligência humana aconteceu quando um animal peludo bípede compreendeu um signo: o visto converteu-se em símbolo
do não visto. Foi, porém, com Jesus que este filósofo percebeu que, apesar de
todos os horrores na história humana, o amor de pura generosidade, de pura
gratuidade (agapé), acabará por
vencer. Confessa que é uma posição individual, optimista e megalómana, mas se
Jesus tem razão, «vai ser possível o meu grande sonho: transformar, em todos os
registos da nossa vida, o esforço em graça, em agapé». Se o ser humano é um animal simbólico – vendo o que não vê,
trazendo para perto o que está longe - a sua fé desafia, mas não contradiz, a
razão. Tem olhos e coração que a razão desconhece.
O Cristianismo, nas suas múltiplas
expressões, nas suas realizações históricas de pura generosidade e de traições
sem nome, está ligado a uma realidade histórica incontornável: Jesus de Nazaré. Tendo em conta a sua
prática, as suas parábolas, o dom da sua vida pelos mais abandonados e a recusa
de todo o poder de dominação, testemunhou que o Deus de quem se fiou em tudo,
até no momento mais dramático da sua existência truncada, é abertura universal
a todos os seres humanos, de todos os povos, culturas e religiões.
Jesus não tentou fundar uma nova
religião. Indicou a Fonte do seu modo novo de viver para os outros, em
liberdade e suscitando vidas em processo contínuo de liberação. É nosso
contemporâneo.
Nessa Fonte todos podem beber,
banhar-se e renascer criaturas novas[7]. Vidas nascidas do puro
Amor (Agapé), para que a sua lei seja
a graça do Espírito da liberdade, suprema responsabilidade para que todos
tenham vida em abundância. Como? Deixou tudo aberto, em todos os âmbitos, à
criatividade humana. Com uma condição: que tudo seja feito, com sabedoria, para
servir e nunca para dominar. Avisou: o amor do dinheiro é uma idolatria.
14. Julho. 2019
[1] Alfredo Teixeira, Coord.,
Inquérito Identidades religiosas em
Portugal, CERC-CESOP (2011); Identidades
religiosas na Área Metropolitana de Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos
Santos, 2019 (edição integral online); Alfredo
Teixeira, Religião na Sociedade
Portuguesa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019.
[2] Liberdade Religiosa no Mundo, Fundação AIS.
[3] Cf. Revista de
Espiritualidade, Itinerários espirituais,
nº 106-107, 2019; ver também, José María Mardones, As novas formas da religião, Gráfica de Coimbra, 1996. Desde esta
obra, o panorama já é mais diversificado.
[4] Cf. José Augusto Mourão,
in O Regresso do Sagrado, Livros e
Leituras, Lisboa, 1998, 131.
[5] Cf. Público, 26 de Agosto
de 2018.
[6] José Antonio Marina, Por qué soy cristiano, Anagrama, Barcelona, 2005. Bertrand
Russell, Por qué no soy cristiano. A
tradução em português é da Brasília
Editora, Porto.
[7] Cf. Romanos 8; Gálatas 5;
Jo 3
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