1. Escrevi este texto para introduzir uma conversa com este título, na Livraria Arquivo de Leiria. É, por isso, anterior à conversa e não o seu reflexo. É um atrevimento que só me compromete a mim.
A palavra poder evoca realidades muito contrastadas. Tanto pode designar uma pessoa cheia de saúde, capaz de enfrentar os múltiplos desafios da vida quotidiana, como exprimir a debilidade extrema: não poder falar, não poder andar, não poder ver, não poder ouvir, não poder respirar, não poder trabalhar e sentir essas dolorosas ausências. Um hospital mostra esse contraste entre as pessoas que cuidam e os doentes que a elas recorrem porque reconhecem nelas o poder de conseguir remédio para superar o mal que as atingiu.
Fala-se, noutro sentido, da conquista do poder, seja ele económico, político ou religioso, por vias democráticas, legítimas ou, então, do acesso a esses mundos através da violência física e psicológica ou da astúcia fraudulenta. Quando é competente e é conseguido por caminhos eticamente legítimos, acaba por se traduzir em formas de serviço público. Quando segue as vias da fraude e da violência, não se destina a servir e a libertar, mas a dominar. A dominação pode ser económica, política, militar ou religiosa ou agregar todas essas formas, como acontece com o poder totalitário.
2. Perguntam-me qual é o poder de uma obra de arte. Não se confunde com nenhuma das formas já referidas. Não se mede pelo seu alcance utilitário. Não serve para outra coisa melhor do que ela própria. Não é catalogada nas obras de misericórdia, de beneficência ou da maldade. Não copia a natureza, não a duplica nem a representa.
Diz-se que o poder da arte resulta da capacidade enigmática de certas obras provocarem a ruptura com as evidências convencionais da realidade e de criarem um novo e inconfundível mundo de experiências de fruição estética, pela densidade das emoções que desperta.
Quando se insiste que essas obras não copiam a natureza, não a duplicam, não a representam, procura-se destruir as ilusões que as próprias reconfigurações das obras artísticas podem ocasionar e que impedem o acesso à criação que as torna únicas, inconfundíveis.
A
experiência da fruição estética é uma participação no mundo da imaginação criadora
do artista, imaginação liberta e libertadora. Subversiva por ser o que é.
Numa entrevista a Ai Weiwei, artista
chinês, activista, dissidente, preso e exilado, foi-lhe perguntado: a arte pode
ser uma ameaça para o poder totalitário? «Acho que sim. Eles passam o tempo
todo a dizer às pessoas que são poderosos. No entanto, só são poderosos porque
utilizam a violência, recorrendo à força do Exército. É um poder feito de
armas. Não são poderosos de pensamento, não são poderosos de espírito. Não são
sequer capazes de nos olhar na cara ou ir a uma escola de arte. Não têm
qualquer capacidade argumentativa. Que poder podem ter? Quão poderosos podem
ser? É por isso que a arte é importante. Fala pelo e através do pensamento das
pessoas e não quer saber da violência para nada. A arte tem mais poder do que
eles. A arte mostra o poder do pensamento humano, o poder da nossa imaginação»[1].
3. A arte questiona o mundo das aparências e suscita obras que
testemunham o poder da imaginação criadora, provocando emoções de pura beleza. Onde
havia apenas uma pedra de mármore, Michelangelo extraiu a sua Pietà, que não
estava na pedra, mas no poder da sua imaginação transfiguradora, presente em
todas as formas de arte, seja no campo da música, da literatura, do teatro, da
pintura, da escultura ou da arquitectura.
Todas essas formas tiveram, ao logo da história dos povos e das culturas, as expressões mais surpreendentes e todas suscitam a mesma pergunta: o que há de especial nessas expressões que as torna autênticas obras de arte e lhes dá um poder de sedução inconfundível?
Essa resposta deveria surgir daquilo que se chama estética, mas esta lida com o enigma. Não existe uma ciência objectiva para discernir o que é e o que não é uma obra de arte. Quando é que o arranjo dos sons produz uma música sublime? Quando é que o arranjo das palavras produz um poema, um romance, um conto aos quais se volta sempre? Quando é que o arranjo das cores produz uma pintura que desloca multidões para a contemplar? Quando é que o trabalho sobre a madeira ou a pedra produz uma escultura? Quando é que a construção de um espaço constitui uma obra de arquitectura?
Entre os muitos arranjos das palavras, dos sons, das cores, dos trabalhos em madeira, pedra ou metal uns são considerados obras de arte impressionantes e outros são considerados irrelevantes, banais, para não dizer pirosos ou foleiros. A divulgação da mediocridade encadernada, pintada ou musicada, servida por alguns meios de comunicação, tem o enorme poder de poluir o gosto, impossibilitando uma autêntica experiência estética.
De matérias banais podem ser feitas obras geniais e de matérias nobres podem sair produtos que só o mau gosto pode consumir.
Sem evocar, aqui, os grandes monumentos da Ásia, da Índia, das Américas, da Europa, podemos perguntar o que seria, por exemplo, da Itália sem o poder das suas imensas obras de arte? Que seria de Paris sem a catedral de Notre Dame? Mais perto de nós, que seria de Lisboa sem os Jerónimos, de Alcobaça sem o seu mosteiro, da Batalha sem o convento de Nossa Senhora das Vitórias, de Tomar sem o convento de Cristo?
Qual é o poder de todas essas obras, para além do lucro económico que o turismo consegue? Não sei responder. Verifico, apenas, que testemunham de uma beleza que, se os seus suportes materiais pudessem, seria eterna. Os seus autores morrem, elas não. Toda a grande obra de arte, a começar pela música, levanta sempre a questão da sua humana e divina transcendência, sem a nomear. Provocam emoções que nenhum mundo pode conter, porque são a reconfiguração de um mundo que excede todos os mundos. A sua materialidade sugere o imaterial, porque a sua linguagem é sempre metafórica, de múltiplas significações, inesgotáveis e resistentes a qualquer comentário.
Deixo, para uma próxima oportunidade, o comentário de uma obra apresentada, na passada quinta-feira[2], que testemunha, o poder que a arte moderna tem de evocar, na sua imanência, a transcendência humana e divina.
20. 10. 2019
[1]
Por Alexandra Carita, Revista do Expresso, 12. Outubro, 2019, pp.34-40
[2]
João Alves da Cunha e João Luís Marques (Coord.), Dominicanos. Arte e arquitectura portuguesa. Diálogos com a
Modernidade, Edição de CEHR UCP e do ISTA, 2019.
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