terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Pe MANUEL JOÃO - Entrevista

Caros Colegas e Amigos
Permitam que partilhe convosco os votos de Natal do nosso querido Pe. Manuel Augusto.

Desejo-lhe Feliz Natal!
O meu abraço de amizade fraterna e comboniana, com os meus votos de um feliz Natal do Senhor. Desejo-te dias iluminados pela presença do Senhor e transformados pela alegria da Sua vinda.
Como prenda de Natal, mando-re copia de uma conversa com o P. Manuel João (um missionário combonaino doente de Esclerose lateral amiotrofica, Ela) que será publicada na Família Comboniana de Janeiro.
Felicidades.
Manuel Augusto
Here’s a link to “Manuel João Entrevista E.docx” in my Dropbox:
https://www.dropbox.com/s/qoqfaai1qfu2r7x/Manuel%20Jo%C3%A3o%20Entrevista%20E.docx?dl=0

A Vida é bela, mas curta para realizar os nossos sonhos



“Estou totalmente imobilizado, mas sinto e vivo uma plenitude de mente e coração e sonho uma realização que antes desconhecia. Esta cadeira de rodas tornou-se para mim o melhor púlpito.”



O ano de 2010 marca uma mudança na vocação e missão do padre Manuel João Pereira Correia, missionário comboniano português, natural de Penajoia, Lamego. Ordenado sacerdote a 15 de Agosto de 1978, ele vive os primeiros anos de sacerdócio na comunidade comboniana de Coimbra, dedicando-se à animação missionário e à pastoral juvenil. Em 1985 é destinado ao Togo, na África ocidental, onde trabalha até 1993, ano em que é chamado a Roma para coordenar a formação no instituto comboniano. Regressa ao Togo no ano de 2002 e é eleito superior provincial, dos combonianos no Togo, Ghana e Benin.

No fim do ano de 2010 vem a reviravolta inesperada, assim descrita por ele aos amigos: “No próximo dia 28 de Dezembro deixarei o Togo e regressarei à Europa, sem saber o que me espera. A doença que me foi diagnosticada (esclerose lateral amiotrófica) segue o seu curso, levando-me com ela (de bom ou de mau grado!), convidando-me a um olhar diferente sobre a vida. Revisitando lugares e pessoas, a mente foge-me, por vezes, para o passado, recordando o que foi a primeira vez da minha chegada à missão como jovem missionário de 34 anos, cheio de sonhos e entusiasmo. Já lá vão quase 25 anos! Tudo então era novo para mim. Lancei-me de corpo, alma e coração, nesta aventura. As dificuldades iniciais de adaptação ao clima, o esforço para aprender a língua e os costumes, o empenho exigido pela nova cultura... não esmoreceram o meu entusiasmo. Hoje muita coisa mudou. Mudou a África, as suas gentes, o rosto da igreja e dos missionários... E mudei eu também, naturalmente!”

A mudança em acto vai afastá-lo para sempre da África. Ele interpreta-a como uma passagem de testemunho:É grande sem dúvida a satisfação de ver outros recolherem a tocha do ideal missionário que animou a nossa existência, prontos a continuar agora a nossa tarefa. Mas regressar para ficar é sempre um momento doloroso para um missionário cuja pátria e vida é a missão.”

Olha para este regresso forçado à Europa como uma nova oportunidade e um recomeço, assim descrito aos amigos: “Regresso sereno, convencido que o Senhor continuará fiel à promessa que me fez: Eu estarei sempre contigo para dar sentido à tua vida! Regresso convencido que... o melhor está ainda para vir! Como o vinho do milagre de Jesus nas núpcias de Cana! Por isso termino a minha missão em África louvando o Senhor e acolhendo o seu convite a ... repartir de novo! Com o meu passo incerto, da doença, revejo-me criança a aprender a caminhar. Aonde me levará o caminho não sei. Mas sinto que Deus me convida à confiança, a abandonar-me nas Suas mãos.”

O caminho é determinado pela natureza da doença, que avança e lhe retira os movimentos, a começar pelos membros inferiores. O P. Manuel João é destinado a Roma, para fazer parte da equipa que coordena a formação permanente do instituto. Ele resiste ao percurso da doença, movimentando-se com muletas e cadeira de rodas, superando os prognósticos médicos. Mas em 2016 tem que deixar Roma para, como ele diz “ser transferido para uma comunidade onde possa ter uma assistência melhor” já que a sua “inseparável companheira, a Ela (esclerose lateral amiotrófica) não o deixa.” Vai para Verona para, nas suas palavras “responder a mais uma chamada de Deus a deixar as minhas seguranças e partir, mais uma vez, em missão. Trata-se da penúltima missão, já que a última ser-nos-á conferida no Paraíso. Disponho-me a vivê-la com o empenho e a generosidade dos trabalhadores da última hora da parábola evangélica.” Aos amigos, assegura: “Não parto sozinho, levo-vos no coração. Estou-vos agradecido pela amizade e oração, que me obtiveram o milagre da serenidade e da alegria, que me têm acompanhado na doença.”

No ano de 2018 outro momento de viragem marca o seu caminho, assim descrito aos amigos: “Há seis meses, tive uma crise respiratória, fui hospitalizado de urgência, durante quatro longas semanas, e foi-me feita a traqueotomia. Agora respiro ligado a uma máquina e é com dificuldade que consigo fazer-me compreender. De todos os modos, não perdi o bom humor e, apesar dos transtornos próprios da doença, estou bem! Encontro-me sereno, um dom que Deus me concede graças a vós. É verdade que me encontro sempre mais limitado no meu corpo, agora praticamente paralisado, mas não me falta o sorriso e a boa disposição, louvando a Deus cada dia pelo dom da vida. Não podendo usar os dedos para escrever, ou a voz para ditar, tive que aprender a usar o puntador ocular, isto é, estou a escrever-vos... com os olhos! Maravilhas da técnica!”

A esclerose lateral amiotrófica (ELA) é uma doença neurológica, ao momento, incurável. Paulatinamente retira à pessoa os movimentos musculares, reduzindo o corpo a uma prisão do espírito. Mas o espírito voa e o coração continua a alargar-se á medida dos sonhos, confidencia o P. Manuel João: “Quem não sentiu renascer no seu coração a criança que continua a acreditar nos sonhos? O nosso coração é um poço inesgotável de desejos! Pena é que neles acreditemos apenas por alguns momentos.” É pelos sonhos e desejos que começamos esta nossa conversa, numa tarde de fim de verão, em Verona.



P- Costumas dizer que a vida é bela, mas é curta para realizar os nossos sonhos. Qual é a importância do sonho?

R- “Para mim, o sonho dá uma orientação, o sonho é algo que está diante de nós e nos faz crescer. É uma meta. Naturalmente, do ponto de vista humano, e também do ponto de vista da fé, o sonho é a vontade de crescer, de ir adiante, de não se contentar com a banalidade, de alimentar o desejo de crescer na aventura da vida. O sonho é, assim, um respiro de futuro.

Do ponto de vista humano, o sonho é um projecto, algo que nos colocamos diante como meta. Do ponto de vista da fé, há uma transformação porque o sonho é apelo de Deus, que nos chama a mudar de perspectiva, a passar do nosso projecto à sua promessa... Não sou eu que ponho diante de mim uma meta (com o meu sonho...); mas é Deus que pro-mete, põe diante de mim o seu projecto, o seu sonho. Eu passei a olhar para a minha doença e situação, como um projecto, uma promessa que Deus me pôs diante... A vocação missionária é sempre uma promessa de Deus.”



P- Para muitas pessoas a doença põe em crise a relação com Deus. Como te relacionas com Deus, no processo da tua doença?

R- “Deus concedeu-me a graça de aceitar esta prova, e com a aceitação, a graça da serenidade, que sempre me acompanha e que mantenho ao fim de cada dia. Mas claro, também me perguntava: porque é que isto aconteceu a mim? Mas também sempre me respondia: e porque é que não devia acontecer a ti? Porque é que acontece a outros e a ti não devia acontecer? Nesse sentido, percebi que não sou privilegiado, sou como todos os demais e também a mim aconteceu. Isto faz-me percorrer um caminho de comunhão e solidariedade com todos aqueles que sofrem, de uma maneira especial com os doentes da esclerose lateral amiotrófica.”



P- Tiveste um sonho missionário, na tua adolescência e juventude, um sonho cheio de acção. Como vives a vocação nesta situação de imobilidade?

R- “Às vezes vem-me de pensar no que podia fazer se não tivesse esta doença que me conduziu à imobilidade total. Mas eu penso que esta é a condição, este é o lugar, onde eu vivo a minha vocação missionária e que a minha vida é mais fecunda. Com esta doença estou num pequeno espaço, mas posso semear e viver com fecundidade apostólica. Deus pode fazer, e faz, coisas grandes mesmo neste pequeno espaço em que vivo. Experimento que, pequenas coisas que eu antes pouco valorizava, como a palavra, o sorriso, a serenidade, a capacidade de escuta e empatia... me surpreendem também a mim como meios de graça que Deus usa para tornar a minha vida fecunda. Esta cadeira de rodas tornou-se para mim o melhor púlpito.”



P- O que é que faz um missionário que nada pode fazer, além de pensar?

R- “Graças a Deus, a doença comigo foi muito benévola, porque apesar da minha situação de imobilidade posso continuar a ler e escrever através do computador. Ao início, pensei que a minha vida seria breve, estando às estatísticas. Mas a verdade é que já superei a média e já vou quase em dez anos.

Foi uma surpresa, e nos primeiros anos pensei que tinha que aproveitar bem a vida, qualificar bem o meu tempo, com o desejo de pensar e aprofundar valores. O tempo permitiu-me revisitar o passado e transformar tudo ... como se fosse uma sementeira em que a semente semeada morre para dar fruto. Então a revisitação da minha vida foi ocasião para eu agradecer a Deus tudo o que eu pude fazer com a Sua ajuda ...”



P- O sonho e a realidade ... como é que se vê o mundo da altura de uma cadeira de rodas, o teu lugar de observação?

R- “Uma coisa que me acompanhou desde o início, certamente como graça, foi descobrir que toda a circunstância na vida pode ser uma oportunidade. Este pensar foi uma graça, a chave que me abriu a porta a uma vida motivada, especialmente nos primeiros anos da doença.

No início, a doença é como um muro que corta completamente todas as perspectivas de vida, os sonhos que se tinham, as realizações que se queriam fazer. A doença, de certo modo, cancela toda a promessa. Pouco a pouco entrou-me a convicção que, em qualquer circunstância, a vida oferece-nos sempre novas oportunidades. Talvez possa parecer que a doença nos rouba as possibilidades que sonhávamos. Mas a vida apresenta-nos outras possibilidades, oportunidades que, no final, se revelam muito mais fecundas.

Para mim, foi como se uma porta se abrisse neste muro negro, impenetrável, que era a doença ... um muro que à direita, à esquerda, por cima ou por baixo, parecia um obstáculo não superável. A descoberta desta porta, na obscuridade do muro, foi uma graça, a descoberta de um mundo de oportunidades que nunca tinha sonhado e que me permitiu olhar a vida de uma outra perspectiva, viver num horizonte cheio de surpresas.”



P- Podes voar com o espírito, mas no corpo estás dependente dos outros em tudo. Como vives esta dependência?

R- “Às vezes cansa-me um pouco esta situação. Mas ajuda-me muito o pensar que Jesus viveu trinta anos de vida escondida e só três de vida activa. E o momento supremo da sua fecundidade apostólica foram os três dias da sua paixão e morte, quando ele se consignou, se abandonou nas mãos dos outros. Ao culminar a sua vida pública, o momento supremo e definitivo foram dias de passividade... que pode ser fecunda e mais eficaz que a actividade.

A vida do homem está cheia de actividade, orgulhamo-nos do que fazemos. Mas não podemos ignorar que é quando deixamos que Outro faça através de nós, que somos realmente fecundos, de uma fecundidade que nos ultrapassa. Na nossa passividade, ajudamos, também, os outros a crescer na sua capacidade de serviço e de amor.”



P- Felizmente consegues acompanhar a vida da Igreja e do mundo. Como é que vês a vida da igreja do nosso tempo, de modo particular a igreja missionária?

R- “A primeira palavra que me vem à mente é crise. Vivemos um momento de crise, incluso na vida missionária. Mas este momento é também uma nova oportunidade. Os tempos são ainda de obscuridade e de alguma confusão. Mas eu creio que esta crise, que é de purificação, será de regeneração, de primavera para a Igreja.”



P- O teu primeiro trabalho foi com os jovens. Os jovens parecem ter medo da doença, do sofrimento, do empenho de uma vocação para toda a vida, como a missionária... Como os vês?

R- “Nessa altura, a seguir à minha ordenação sacerdotal, eu era também jovem. Foi um tempo (os anos 70 do século passado) de muito entusiasmo. Eu acho que os jovens que encontrei nessa primeira experiência apostólica, se encontravam, de certo modo, numa situação diferente da actual. Jovens com entusiasmo, com garra, que sonhavam a transformação das suas vidas e da sociedade, que sentiam a fascinação da vocação missionária, embora com as debilidades e incertezas de todos os jovens, dúvidas que também eu tinha experimentado na minha vida e na minha história.

A situação actual é diferente: os jovens vivem num contexto social, das redes sociais, mais individualista, amorfo e dispersivo, que não os ajuda a identificar-se com um projecto. A vida e a sociedade de hoje apresentam uma variedade infinita de possibilidades. Não se trata de projectos que se materializem... São possibilidades que permanecem ao nível de ilusões e os jovens não conseguem agarrar-se a um projecto concreto e perseguir um objectivo de vida.

Há uma grande dispersão e isso, junto à falta de uma perspectiva de fé, leva a que a vocação missionária, como qualquer outra vocação que implique um compromisso para toda a vida, se tornem, de certa maneira, projectos inconcebíveis. Eu creio que hoje só se pode colocar a proposta da vocação num contexto de fé, tanto a vocação missionária como a vocação ao matrimónio cristão.

Os jovens hoje têm medo do empenho, como nós também tínhamos... só que nós tínhamos mais pontos de referência, no entusiasmo e nas motivações da sociedade da igreja do nosso tempo. Os jovens que conheci em África vivem em contextos mais difíceis, e nesse sentido têm mais capacidade para abraçar o sofrimento e lutar.”



P- Sentes-te realizado, como pessoa, como sacerdote e missionário?

R- “No Evangelho, Jesus diz-nos que Deus nos visita de três maneiras.

Em primeiro lugar, como noivo / esposo das nossa vidas, Aquele que realmente pode colmar a nossa sede de amor e felicidade. O bonito e desafiante da vida é viver na sua expectativa, prontos para O acolher como Amor da nossa vida.

Em segundo lugar, como senhor / patrão, que nos confia os dons da vida para os fazermos crescer e frutificar, para nossa felicidade e para a felicidade dos outros. É generoso connosco, mas vem para nos pedir contas. O desafio, e o bonito da vida, é vivermos com sentido de responsabilidade, com mãos abertas e operosas, para receber e compartir, acolher e fazer crescer os nossos dons.

Em terceiro lugar, o Senhor visita-nos como ladrão que nos pode surpreender e roubar-nos o que temos ou pensamos ter. Esta imagem sugere vigilância e acentua a surpresa da Sua vinda e sempre me provocou medo quando reflectia sobre ela.

Com a doença, o Senhor visitou-me revestido de ladrão, que me foi roubando os movimentos, primeiro os membros inferiores, depois os superiores, os movimentos da cabeça... Mas Ele é bom e actua como bom ladrão, que tira uma coisa para deixar outra ainda maior. Desde o começo, tive o dom de aceitar a doença com serenidade e, pouco a pouco, descobrir que, se o Senhor me tirava alguma coisa, deixava-me outra maior; esvaziava-me de algo para me encher D’Ele mesmo, dos Seus dons. Agora estou totalmente imobilizado, mas sinto e vivo uma plenitude de mente e coração, de afecto e espírito, e sonho uma realização que antes desconhecia.”



Entrevista de: Manuel Augusto Lopes Ferreira, missionário comboniano


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