1.
No solstício de inverno – o momento preciso em que a duração do dia ultrapassa
a duração da noite – os antigos romanos celebravam o Sol invictus, quer dizer, a vitória do deus Sol sobre a noite e
sobre a morte. A Igreja de Roma resolveu designar essa data como a do
nascimento de Jesus, o verdadeiro sol da vida: foi Ele que enfrentou a morte e
a venceu! Como vimos na crónica do Domingo passado, o Natal tornou-se a cristianização
inculturada de uma festa gentia.
Em regime de Cristandade, passou a ser uma
celebração de cristãos para cristãos. Hoje, evoca uma bela festa de família, mesmo
quando esta instituição está a passar por crises de vária ordem. No entanto, o
centro da prática e da mensagem de Jesus consiste em procurar fazer família com
quem não é da família biológica. Só nessa dimensão o Natal se pode tornar
cristão.
Jesus, o Nazareno, teve uma
intervenção na história humana, a partir de Israel com poucas saídas ao
estrangeiro, embora muito significativas da sua mensagem universalista. Como
diz o filósofo, André Comte-Sponville, os melhores especialistas discutem,
desde há muito tempo e ainda hoje, acerca da historicidade de Jesus, mas ele não
aceita que o tratem como uma personagem mitológica: «gosto de pensar que um
homem, de há dois mil anos, tenha manifestado – não só por palavras, mas pelos
seus actos – o essencial, que não é nem a força nem a riqueza, mas o amor, a
justiça e o cuidado com os mais frágeis»[1].
Muito se tem escrito sobre Jesus como
judeu marginal e como judeu central. Nem judeus nem muçulmanos o podem
esquecer, seja qual for a história das relações entre cristãos, judeus e
muçulmanos.
Alguns judeus têm estudado, com rigor
e simpatia, a figura de Jesus[2]. É também
uma figura muçulmana importante[3]. Como
é evidente, no seio do cristianismo, continua não apenas a ser investigado e
interpretado, mas sobretudo a manter com Ele uma relação viva e actual. Na
crónica do Domingo passado, deixei algumas indicações bibliográficas. Alguns
leitores pediram-me que apresentasse, também, livros de fácil acesso em
Portugal[4].
Na figura de Jesus de Nazaré, surgiu
uma relação com Deus e com os seres humanos, que não faz de Deus reserva
privada de nenhum povo e não propõe um caminho humano que exclua qualquer
pessoa, de qualquer etnia, de qualquer religião ou sem religião. O amor
incondicional a todos e a recusa da exclusão, seja de quem for, é a sua marca.
Fica para sempre o seu exemplo: evitar o mal que estraga a vida e dedicar-se às
pessoas, sobretudo às mais abandonadas.
Este Jesus não escreveu nada. Os
textos do Novo Testamento sem Ele seriam acerca de nada. É verdade que são
textos de retrospectiva, elaborados alguns muito perto dos acontecimentos, como
os de S. Paulo, e outros de segundas e terceiras gerações de cristãos. Quando
dizemos Evangelho segundo S. Mateus, S. Lucas, S. Marcos e S. João, não
significa que tenham sido estas personalidades que os escreveram. Foi
importantíssimo que se tenha resistido a não eliminar as diferenças entre eles
para fazer o evangelho único. Os cristãos têm, desde a origem, uma imagem
multifacetada de Jesus Cristo. Hoje ainda, há preferências legítimas por alguns
textos sem exclusão dos outros. É um Jesus Cristo plural no pluralismo que se
deve viver na Igreja e na sociedade.
2. Bergoglio
escolheu para o seu pontificado – arte de
fazer pontes – a figura de S. Francisco de Assis, o amante da natureza, o
aberto a todos, a começar pelos mais pobres, e a querer conversar com
dirigentes muçulmanos. É a figura da paz, do perdão irrestrito e da
reconciliação ecológica.
Esta escolha podia ser, apenas, um
gesto simpático para anunciar um desígnio que as circunstâncias da vida fariam
esquecer. Nada disso. Tornou-se cada vez mais evidente que essa escolha do nome
era a própria marca da maneira de ser que gostava de incarnar.
Tinha pela frente questões muito vivas
e agudas que levaram o Papa anterior a demitir-se. Antes de mais, era preciso
levar a sério a reforma da cúria e da gestão do banco do Vaticano. Os
escândalos multiplicaram-se. A pedofilia de padres, bispos e cardeais lançou,
em muitos países, o descrédito em relação aos líderes da pastoral da Igreja. Esta
era a exigência de uma reforma ad intra.
A relação da Igreja tem a ver, essencialmente, com a sociedade em que está
inserida, como o tinha afirmado o Vaticano II, na Gaudium et Spes, a Igreja no mundo contemporâneo, em mudanças
vertiginosas. Nesta relação, ela não pode alimentar qualquer sonho de
dominação. Pertence-lhe escolher os modos de servir e de levar as lideranças
mundiais a pensar e a agir em termos de serviço.
Pela sua forma de actuar, o Papa
Francisco mostrou uma relação nova da Igreja com a sociedade a partir dos mais
abandonados e castigados por uma economia que mata. A Igreja só pode existir
como um hospital de campanha, em saída para todo o género de periferias.
Criou, deste modo, um estilo que se
tornou contagiante para alterar o diálogo inter-religioso que, muitas vezes, se
alimenta de conversas inconsequentes, ou melhor dito, que não levam a nada. Pelo
seu exemplo, os encontros com as outras Igrejas cristãs e com as outras
confissões religiosas nunca deram a imagem de que estava, apenas, a cumprir
exigências de boa diplomacia. Nesses contactos, ele mudou e os outros também.
3. Este
Natal recolhe frutos de uma caminhada, de poucos anos, mas que parecem séculos.
Dou apenas um exemplo: o Papa Francisco e o
Grão Imame de Al Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, uma figura com grande influência no
mundo muçulmano sunita, propuseram à ONU uma data para celebrar o Dia da
Fraternidade Humana e participar na organização de um Encontro Mundial sobre a
mesma. Isto segue a um grande trabalho de casa. Estas duas personalidades ao
serviço da reconciliação entre povos e religiões tinham assinado, em Abu Dhabi
(Emirados Árabes Unidos), a 4 de Fevereiro de 2019, o notável Documento sobre a
Fraternidade Humana pela Paz Mundial e a Convivência Comum.
Jesus de Nazaré não nasceu apenas de um povo. Nasceu de toda a
humanidade, como diz S. Lucas, e para que os povos não esqueçam que têm, todos,
de construir uma grande família.
15. 12. 2019
[2] Daniel Boyarin, The Jewish Gospel. The Story of the Jewish
Christ (existe tradução para francês com o título: Le Christ Juif. À la recherché des origins, Cerf, Paris, 2013.
[3]
Tarif Khalidi, Jesus Muçulmano. Máximas e
Histórias da Literatura Islâmica, Tágide, Lisboa, 2002.
[4]
Anselmo Borges (Coord.), Quem foi Quem é
Jesus Cristo?, Gradiva, 2012; Joseph Doré, Jesus explicado a todos, Paulinas, 2017
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