1.
Por
mais paradoxal que isso possa parecer, no Evangelho de S. Marcos, considerado o
mais antigo dos quatro Evangelhos, não há
Natal! Por opção, começo pelo desfecho abrupto deste «livro de intenso
encanto literário e um dos mais arrebatadores que alguma vez foi escrito».
Desfecho tão abrupto que o seu tradutor, Frederico Lourenço, pergunta: é
concebível que um livro em língua grega possa terminar com a palavra ”pois”?
Mas é um facto. Vou transcrever esta tradução de ritmo grego em português.
Conta S. Marcos que, «passado o sábado, Maria
Madalena, Maria mãe de Tiago e Salomé compraram perfumes para irem
embalsamá-lo. E muito cedo de manhã, no primeiro dia da semana, elas vão ao
sepulcro tendo já nascido o sol. E diziam entre si: Quem rolará para nós a pedra
da entrada do sepulcro? E tendo olhado à sua volta, vêem que a pedra tinha sido
rolada para o lado; e era muito grande. E entrando elas no sepulcro, viram um
jovem sentado à direita, vestido com uma túnica branca, e ficaram apavoradas.
Ele diz-lhes: é Jesus, o Nazareno que procurais, o crucificado? Ressuscitou.
Não está aqui. Vede o lugar onde o depuseram. Mas ide e dizei aos seus
discípulos e a Pedro: Ele vai à vossa frente a caminho da Galileia; lá o
vereis, tal como ele vos disse. E elas, saindo, fugiram, pois domina-as um
tremor e um êxtase. E nada disseram a ninguém: tinham medo, pois»[1].
Este texto concentra algo que pode ser
historicamente testado e algo que só pode ser interpretado como uma gloriosa confissão
de fé: a vida de alguém que foi truncada pela morte mais cruel, mas não aniquilada.
Aquela que parecia a última palavra é, afinal, a primeira de um começo novo: o
crucificado está mais vivo do que nunca! São as mulheres as encarregadas de dar
essa notícia, de última hora, aos discípulos. Estes, decepcionados com a
crucifixão da velha esperança messiânica que os seduziu e enganou, tinham caído
em depressão.
O sábado já é passado. O primeiro dia da
semana é o Domingo, o primeiro da mobilidade ilimitada do Espirito de Deus, invisivelmente
presente a tudo e a todos, em liberdade, propondo um natal inédito a quem se
sentir seduzido por esse caminho: nascer
de novo, renunciando a velhas e novas ilusões de desejos loucos que sacrificam
o futuro de todos no altar egoísta do presente. É um movimento espiritual sem
relíquias do fundador e sem lugares privilegiados de encontro com o novo
sentido da caminhada humana na história dos povos.
Na vida terrena e limitada do Nazareno, manifestou-se
uma tal forma de Deus ser Deus e do ser humano se tornar verdadeiramente
humano, que os maravilhosos e indispensáveis textos do Novo Testamento (NT)
confessam que o seu autêntico sentido só se realiza, quando suscita inéditas
formas de transfigurar a vida dos que se julgam os esquecidos da terra e do
céu.
2. Depois do velho messianismo ter sido
trucidado na crucifixão do Nazareno, acabaram os receios em confessar que Jesus
é Cristo. Paulo sublinha que ninguém pode pôr um alicerce diferente do que já
foi posto: Jesus Cristo[2]. Daí
resultou que, por volta do ano 44, em Antioquia, pela primeira vez, os
discípulos receberam o nome de cristãos[3].
Desde os finais do século XIX e
durante várias etapas do século XX, tornou-se habitual distinguir o Jesus da
história e o Cristo da fé. Não é que haja dois, mas duas abordagens: a que
segue as exigências do método da exegese histórico-crítica e a das exigências
da interpretação teológica, cristológica. São numerosas as obras sérias que
estudam esta problemática[4].
As fontes principais para essa dupla
perspectiva são as narrativas dos Evangelhos e os escritos de S. Paulo.
Esquecemos que a devoção popular alimentou-se, ao longo dos tempos, também dos
chamados Evangelhos Apócrifos[5].
Por volta do ano 200, estava praticamente
formado o cânone actual do NT, embora ainda com algumas vacilações. No entanto,
o Evangelho de S. João afirma: «muitas outras coisas fez Jesus que não estão
escritas neste livro. Se fossem escritas uma por uma, penso que os livros sobre
elas não caberiam no mundo»[6].
A curiosidade popular queria saber,
precisamente, o que não vinha escrito nos Evangelhos canónicos. Supõe-se que surgiram
várias tradições orais sobre Jesus que não tiveram a sorte de serem
reconhecidas e aceites pelo comum dos crentes. A verdade é que os escritos, que
pretendiam dizer o que não vinha nos textos do NT – os chamados Evangelhos
Apócrifos –, nasceram demasiado tarde, pelos finais do século II até ao século
IV e ainda depois[7].
3. Celebramos
o nascimento de Jesus a 25 de Dezembro. Qual é o fundamento desta data? Nenhum.
Também aqui, importa continuar com a distinção entre a contagem histórica e a
estratégia de levar os cristãos a não alinhar com as celebrações de cultos
gentios, por exemplo, do sol invencível, imposto pelo imperador Aureliano, a 25
de Dezembro de 274. Nessa altura, a Igreja de Roma tomou a decisão de designar essa
data como a do nascimento de Jesus, pois é Ele, e não Mitra, o verdadeiro sol da
vida. Como era algo incerta a história do nascimento de Jesus, esta
substituição parecia a mais indicada para os cristãos não se sentirem atraídos
por aquilo que os trairia.
Antonio Piñero fez uma exposição
cuidadosa, tanto acerca do dia do nascimento de Jesus como acerca do lugar em
que nasceu. Concluiu que nem o dia nem o lugar têm base histórica suficiente[8]. São
opções legítimas de inculturação da fé em Jesus, o Cristo da nossa alegria.
O nascimento de Jesus não pode ser um
mito. Se teve a actuação que teve e o desenlace que lhe impuseram, tinha de ter
nascido. Por outro lado, a fé das comunidades cristãs de que Ele continuava
vivo e actuante tinha de se manifestar, segundo as novas circunstâncias de
tempo e lugar. As chamadas narrativas da sua infância, diferentes em Mateus e
Lucas, são magníficas criações de teologia literária. Isso fica para próxima
crónica, assim como a carta do Papa Francisco sobre o Presépio.
15. 12. 2019
[1]
Mc 16,1-8
[2]
1Cor 3, 11
[3]
Actos 11, 25-26
[4] Cf. John P. Meier, Um
Judeu Marginal. Repensando o Jesus Histórico, Imago, Rio de Janeiro, 1992; E.P. Sanders, A verdadeira história de Jesus, Editorial Notícias, 2004; Antonio Piñero,
Jesus. A vida oculta, Esquilo, Lisboa
2007; Aproximación al Jesús
histórico, Trotta, Madrid, 2019; José Antonio Pagola, Jesus. Uma abordagem histórica, Gráfica
de Coimbra 2, 2008 (com bibliografia classificada).
[5]
QUÉRÉ, France (introdução). Evangelhos apócrifos. Lisboa: Editorial
Estampa, 1991. É uma literatura que foi descoberta casualmente, em 1945, na
chamada biblioteca Nag Hammadi (Egipto), além dos Manuscritos do Mar Morto
descobertos no deserto da Judeia, entre 1947 e 1956.
[6]
Jo 21, 25
[7]
Cf. nota 5
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