Nos últimos dias de um Novembro opressivo, com seus persistentes céus de chumbo e chuvas implacáveis, duas denúncias surgidas na imprensa lembraram, quais relâmpagos de lucidez, a realidade bem mais deprimente, alarmante até, da intolerância humana.
Num recente encontro com os media estrangeiros, mencionado pelo jornal El Mundo, Michel Aupetit, Arcebispo de Paris, a propósito da posição da Igreja Católica no debate sobre a nova e muito polémica legislação bioética francesa, assinalou: “Na França, a palavra não é tão livre quanto se diz. Se alguém pensa diferente, é rotulado como reacionário, homofóbico, etc. Não é que eles nos impeçam de falar, mas desacreditar o nosso discurso rejeitando o diálogo inteligente é censura.” Poucos dias depois, no Observador, o colunista Gabriel Mithà Ribeiro, reflectindo sobre a ostracização da direita no espaço mediático, sublinhou que “do rol de milagres da esquerda faz parte a transformação das democracias em disseminadoras da censura à liberdade de pensar, dizer, escrever, publicar, votar, decidir, criticar.” Na linha das declarações de Michel Aupetit, o colunista afirma que esta censura – palavra que os visados, orwelianamente convictos da sua superioridade, acham dever ser aplicada apenas à direita – constitui, de facto, “o banimento do espaço público da dignidade de determinadas sensibilidades sociais.”
Os sinais são inescapáveis há muito e auguram níveis cada vez mais profundos de perversão da liberdade, implementados por minorias ululantes, que tratam de se impor às maiorias tímidas, porque demasiado tolerantes e ocupadas. É que não se trata “apenas” de impedir actos públicos que envolvam figuras do outro lado do espectro ideológico, como ocorreu recentemente com Jaime Nogueira Pinto, deixando a impressão – surreal num país que há poucas décadas fez uma revolução pelas “amplas liberdades” – de que se quer impedir liminarmente a existência de contraditório. Ou, na mesma linha, do ataque cerrado aos partidos de direita, e sobretudo ao Chega, apontado nos media como extremista e perigoso, enquanto a extrema esquerda associada ao poder – e que parece preferir a palavra “radical”, por ser mais vegetariana – é vista como cool e “fofinha”. Bem mais perigoso é que se proceda à imposição de um pensamento único, à censura da realidade, presente e passada, e ao revisionismo histórico. Com efeito, quem não concordar com a agenda woke, plena de medidas legislativas fracturantes, de que a mais recente é a eutanásia, é visto como um obscurantista perigoso e remetido à posição de pária.
O ataque furioso ao estudo de Maria de Fátima Bonifácio e à “ousadia” de pôr em paralelo os horrores que os extremismos, de esquerda e direita, causaram durante o século XX revela outro nível preocupante: a anexação da ciência. Sociologia e História só interessam se as suas análises baterem certo com as ideias “certas”; tudo o que, no presente, as contradisser, deve ser escondido; a análise do passado é feita retroactivamente, sem qualquer receio de anacronismos ridículos; tudo o que nele estiver contra o ponto de vista politicamente correcto deve desaparecer dos estudos históricos; como portugueses devemos, obviamente, pedir desculpa por existirmos. Pior ainda, toda esta wokeness e consequentes interpretações da realidade vão sendo introduzidas no âmbito escolar, de modo a formatar o pensamento das gerações futuras.
Contudo, nihil novi sub sole: esta deriva censória e esta adoração de ídolos com pés de barro não são novas; tal como se repete a submissão, mais ou menos imposta ou tácita, à opinião dominante. De novo, o passado fornece ao presente lições inestimáveis, que reiteradamente se torna essencial recordar.
Perante isto, os media, na sua generalidade, optaram pela perspectiva politicamente correcta, e dirigem os seus ataques invariavelmente aos mesmos, com laivos de hipocrisia. Dominados por uma ignorância tão profunda como pouco ética, claramente “não sabem o que fazem”. Quem os lê fica a pensar que só na Igreja Católica ocorrem certos crimes, e todas as outras instituições são virtuosas, mesmo que testemunhos em contrário apareçam. Quando o escândalo atinge os ídolos da wokeness, optam por esconder as denúncias ou, pelo menos, reduzi-las à quase invisibilidade: Clinton não pode ser abusador, pelo que as mulheres que assediou são catalogadas pelas feministas que o protegem como sendo culpadas; Trudeau não pode ser racista, pelo que as suas múltiplas blackfaces têm de ser remetidas para debaixo do tapete. Donald Trump, alvo por demais fácil, mas também um símbolo dos males da América profunda, tornou-se no Bei de Túnis universal, excelente distração para as caravanas passarem.
Contudo, nihil novi sub sole: esta deriva censória e esta adoração de ídolos com pés de barro não são novas; tal como se repete a submissão, mais ou menos imposta ou tácita, à opinião dominante. De novo, o passado fornece ao presente lições inestimáveis, que reiteradamente se torna essencial recordar.
Há exactamente sessenta anos (de 8 a 12/07/1959), num congresso realizado no castelo de Lourmarin, junto a Aix-en-Provence, Agustina Bessa Luís juntou-se a um grupo de intelectuais e escritores europeus para debater o papel destas elites supostamente sábias na sociedade europeia do pós-guerra. Julián Marías, que compunha a delegação espanhola com Pedro Laín Entralgo e Camilo José Cela, relatou pouco depois que “a los diez minutos se estaba ya en lo más vivo de los más vivos problemas – la condición de intelectual, su posible coincidencia con el escritor o sus diferencias, su relación con el público y con los Poderes, la censura y su realidad; y, naturalmente, empezábamos a conocernos de prisa.” Com efeito, mal abriu a boca, Agustina sentiu-se ostracizada, juntamente com os seus colegas espanhóis, por outros intelectuais europeus – de tendência comunista … – que achavam que só as suas ideias estavam certas. Alguns deles negavam mesmo o cumprimento – o ponto limite da desumanização do Outro. Que intelectuais são estes que recusam a humanidade dos desconhecidos e dos que não partilhavam das suas ideias?
Motivada pela longa viagem de carro através de uma Europa pontuada pela herança de Roma, Agustina vê em alguns deles a imagem de um César, com toda a inerente simbologia de poder e carisma; e o seu próprio isolamento humilhante remeteu-a para a experiência de Fílon de Alexandria, o intelectual e religioso judeu que deixou o sossego exemplar do seu retiro para defender a dignidade do seu povo perante um César de carne e osso, o problemático Caio Calígula. Nasceu assim, para Agustina, o livro Embaixada a Calígula, replicando de algum modo a Legatio ad Gaium do sábio judeu.
A embaixada histórica de Fílon teve motivos graves e imediatos: as perseguições e massacres a que a colónia judaica de Alexandria estava a ser submetida desde o ano 38, no contexto do aproveitamento político do desejo de divinização de Calígula. Este ordenara a colocação de uma estátua sua em todos os templos, sinagogas incluídas, o que constituía um acto sacrílego para o judaísmo. Quando a delegação presidida por Fílon foi recebida pelo imperador, já era pública a intenção de colocar uma estátua no templo de Jerusalém, sacra sacrorum do povo judeu. Porém, o que estava em causa – e um intelectual dedicado à verdade profunda da sua gente, como Fílon, procurava alcançar, mesmo pondo a vida em risco – era muito mais do que obviar a um sacrilégio: importava, acima de tudo, “preservar o carácter de um povo e fazer com que ele resistisse a si mesmo”. Fílon sabia que as estátuas de Calígula poderiam acabar por ser aceites, em troca de uma segurança aparente, o que significava a rendição do ser profundo do seu povo a interesses transitórios. Era essencial olhar mais longe e mais fundo: “presta atenção a ti mesmo”, repete ele.
Mas também necessitamos de líderes. Onde estão os intelectuais cuja vida irrepreensível se equipara ao seu esforço de descobrir e divulgar o que realmente faz de nós humanos, cristãos e portugueses, e à sua coragem de arrostar com as dificuldades do espaço público? Quem será o nosso Fílon?
A embaixada foi um risco contínuo e uma desconsideração constante: sucessivos adiamentos culminaram numa audiência na primavera de 40 d.C, onde Fílon, sozinho, defrontou um Calígula que vistoriava obras, lhe fez perguntas humilhantes, e, em vez de o ouvir responder, lhe virou as costas. O César não cumpriu os seus deveres de hospitalidade e obrigações de governante: desrespeitou a dignidade humana dos seus súbditos judeus, deixando Fílon à mercê dos gracejos ululantes das delegações adversárias e dos cortesãos que intuíam estarem assim a afagar o ego do cruel e caprichoso imperador. A morte violenta de Calígula, ocorrida menos de um ano depois, solucionou o problema, mas Fílon persistiu na sua posição de explorar a identidade profunda do seu povo e registá-la para memória futura.
Rodeados de Calígulas disfarçados sob a máscara de políticos, intelectuais ou celebridades; constantemente invadidos por estátuas fracturantes – o que fazer, então, perante “o banimento do espaço público da dignidade de determinadas sensibilidades sociais.”? À semelhança de Fílon e Agustina, persistir na fidelidade à nossa identidade, individual e histórica, apesar de todas as dificuldades de um presente em que as redes sociais e os media parecem replicar os cortesãos sabujos e imorais de Calígula. Mas também necessitamos de líderes. Onde estão os intelectuais cuja vida irrepreensível se equipara ao seu esforço de descobrir e divulgar o que realmente faz de nós humanos, cristãos e portugueses, e à sua coragem de arrostar com as dificuldades do espaço público? Quem será o nosso Fílon?
Sem comentários:
Enviar um comentário