1.
Se,
como foi noticiado, o cardeal Burke tiver dito, perante as ameaças do covid-19, «que devemos poder orar nas
nossa igrejas e capelas, receber os sacramentos e participar em actos de oração
pública», espero que alguém o convença a despir-se das pompas cardinalícias, a
envolver-se em saco e cinza para pedir perdão, através dos meios de comunicação
social, a crentes e não crentes por essa pouca vergonha[1].
Passemos ao título desta crónica. É a proposta
mais séria para não alimentar ilusões para depois do presente pesadelo
colectivo. Antes, porém, importa lembrar algumas evidências esquecidas para nos
situarmos, com lucidez, neste tempo de agendas suspensas ou alteradas.
O ser humano surgiu na
terra como um dos menos equipados e mais desarmados do reino animal. Os seus
instintos são rudimentares e parcas as suas defesas.
Essa situação escondia um tesouro único no seu
corpo revelado pela palavra que o singulariza. É o tesouro da inteligência
emocional, da razão discursiva, do afecto desinteressado, da liberdade criadora
e destruidora, da imaginação, a louca da casa para o bem e para o mal.
São recursos inesgotáveis. A partir de
elementos preexistentes, possibilitam o gosto de estabelecer conexões mentais
surpreendentes, de inventar, de inovar, de criar e recriar. Como escreveu Einstein,
a criatividade é a inteligência a divertir-se[2].
Desde a revolução
paleolítica até à chamada quarta revolução industrial, muito se andou na marcha
multimilenária da humanidade. Continuamos a caminho, sem que saibamos bem para
onde. Este percurso está semeado de realizações admiráveis e de criminosas destruições.
Não podemos prever o futuro. Confia-se
demasiado no poder da tecnologia, mas ela não é determinista. Pode levar-nos ao
melhor e ao pior. Como escreve Y. N. Harari, «a ascensão da Inteligência
Artificial e da biotecnologia irá certamente mudar o mundo, o que não significa
que haja apenas um único desfecho possível»[3].
Somos natura e multifacetada cultura
científica, técnica, estética, metafísica e ética. A razão instrumental responde
ilimitadamente, com eficácia surpreendente, a perguntas limitadas que ocultam as
incómodas.
Existem perguntas que nunca
têm resposta adequada, mas que ajudam a manter o espírito em alerta, perante o
irredutível mistério de que somos feitos. Brotam talvez das fontes da grande
música, da literatura, da filosofia, da religião, da mística, da criatividade
inesperada de novas linguagens. Manifestam-se em obras que nos emocionam,
provocam e alimentam uma abertura sem fim: o sentimento de infinito, o
pressentimento de Deus.
2.
Depois,
um miserável vírus semeia o pânico global e regressa a estafada questão do mal,
da responsabilidade de Deus, dos seus castigos ou da sua não existência[4]. Prefiro, no seu aparento exagero,
o que Dostoiewski escreveu em Os irmãos
Karamazov: «todos somos culpados de tudo, culpados por todos, diante de
todos e eu mais do que os outros».
Talvez seja útil escutar a
voz de S. Tomás de Aquino, voz de um outro tempo, em que o mundo voltava a
estar em efervescência. Tinha uma ideia muito optimista quanto ao progresso do
conhecimento, mas reticente quanto ao progresso humano no seu conjunto. Dizia
que na natureza, na maior parte dos casos, tudo corre bem. Com os seres
humanos, na maior parte dos casos, acontece precisamente o contrário. Porquê?
Porque estes não orientam a sua vida segundo as exigências da humanidade, a
humanidade de todos, mas segundo a desagregação dos seus apetites[5].
Perante tantas catástrofes
na natureza, isto pode parecer ingenuidade. Diz-nos, no entanto, que a harmonia
da natureza do tempo de S. Tomás foi gravemente afectada. A questão mais actual
é, precisamente, a desagregação dos apetites nas intervenções sobre a natureza
que torna a nossa Casa Comum
inabitável. Em vez de cuidar o nosso paraíso terrestre, destruímo-lo pela
vontade de dominação e exploração económica, política e religiosa. É o ser
humano que, ao desumanizar-se, corrompe a natureza. As dimensões da questão
ética são globais.
Nietzsche suprime a
questão ética, ao suprimir o ser humano: «o homem é algo que deve ser superado…
que é o macaco para o homem? Uma coisa ridícula ou uma vergonha dolorosa. É
isso o que deve ser o homem para o super-homem: uma coisa ridícula e uma
vergonha dolorosa».
3. A
Quaresma cristã não é nietzscheana. É mais modesta e mais radical. Procura
vencer as tentações que acompanham a história da humanidade: o espírito
diabólico de dominação que sonhou e criou impérios. Nenhum se aguentou. As
novas tentativas estão possessas do mesmo espírito. Será possível enfrentá-lo?
No século XX e nos começos
do século XXI, depois das catástrofes, os poderosos têm-se reunido muitas vezes
e ainda não mostraram grande vontade de mudar de rumo. Reafirmam, sobretudo, as
metamorfoses dos seus velhos apetites e desígnios. A espantosa construção da
União Europeia está ameaçada porque não é o espírito de cooperação que a
orienta, mas um regateio de perdas e de vantagens. Os cristãos tiveram um
grande papel no sonho europeu. E agora?
O Evangelho de S. João
conta uma história que intrigou uma destacada figura do Sinédrio da antiga
Jerusalém, Nicodemos, e que não deixa margens a subterfúgios[6]. Foi, de noite, ter com
Jesus e começou com muito boa retórica religiosa: Rabi, sabemos que vieste da
parte de Deus como Mestre, pois ninguém pode realizar os sinais que tu realizas
se Deus não estiver com ele. Jesus não cede a lisonjas: só quem nascer do alto
pode ver o Reino de Deus. Nicodemos quer fugir a essa proposta radical: como
pode um homem velho nascer de novo? Poderá ele entrar no ventre da sua mãe
segunda vez e nascer?
Jesus convida-o a não
mudar de conversa: aquele que nasce da carne é carne e aquele que nasce do
espírito é espírito. Não te admires por eu ter dito que é preciso nascer do alto.
O sopro sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes nem de onde vem nem
para onde vai. Assim é aquele que nasceu do espírito.
Nicodemos não contradiz o
Nazareno, mas procura não se enfrentar com a proposta de ter de nascer de novo, fazendo perguntas sobre
o que já sabe. Jesus não aceita fugas ao confronto essencial.
Nicodemos é o nosso
retrato.
29. Março. 2020
[2] Cf. Alexandre Castro Caldas, Criatividade: a função cerebral improvável,
UCP, 2017
[3] Yuval Noah Harari, Homo Deus. História Breve do Amanhã,
Elsinore, 2017, 442-443
[4] Cf. Adolphe Gesché, O Mal, Rei dos Livros, 1996
[5] Suma Teológica, I, q. 91, a. 3 ad
2; q. 49, a. 3 ad 5
[6] Jo
3
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