1.
Li
comovido e meditei a homilia do Papa Francisco, do dia 27 de Março, na Praça
vazia de S. Pedro, cheia do mundo inteiro. Dou graças a Deus pela presença
activa desta voz que congrega as energias de todas as pessoas que tecem redes de
esperança, neste tempo ferido de guerras, fomes, exclusões e agora pelo
devastador covid-19.
Essa voz de um corpo fragilizado
reúne, no mesmo cuidado, os povos do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul,
crentes e não crentes, a começar pelos mais pobres, doentes e desprotegidos,
acompanhados pelas pessoas que arriscam a própria vida para não deixarem esse
vasto mundo sem protecção e consolo.
São estas pessoas que estão a incarnar, de
forma heróica, nestes meses de Março e Abril – e não sabemos por quanto tempo
ainda serão indispensáveis – a ética
samaritana a que me referi nesta coluna[1].
Esta pandemia está a
precisar de muitas redes de cirineus que ajudem a levar a cruz das suas
inumeráveis vítimas, agora e no futuro. Também elas precisam da manifestação da
solidariedade agradecida de todos os cidadãos de alma magnânima.
Hoje, é Domingo sem Ramos
das muitas comunidades cristãs de todos os continentes. Pode-se falar de Semana
Santa por causa do infinito perdão pedido por Jesus Cristo, do alto da cruz, para
todos os que colaboraram no seu assassinato legalizado com apoio popular. É uma
celebração que nasce das narrativas do Novo Testamento, acerca das quais dispomos
de excelente produção de crítica histórica, exegética, teológica e litúrgica, bastante
ignorada[2].
Como escreveu Frederico Lourenço, na sua introdução
aos Evangelhos, é provável que estes quatro textos nem merecessem, ao leitor
culto da época, o alto estatuto de literatura. No entanto, estes textos
conquistaram o mundo antigo, tanto grego como romano.
Lendo-os dois mil anos
depois, acrescenta, não é difícil perceber porquê. Sobre um desses textos já se
escreveu que se trata do «mais divino de todos os livros divinos»: na verdade,
essa descrição assenta a qualquer um deles. São textos que – com a sua mensagem
sublime veiculada por palavras cuja beleza desarmante ainda deixa arrepiado
quem os leu e releu ao longo da sua vida inteira – estão simplesmente numa
categoria à parte.
São textos insubstituíveis, confessa o tradutor de tantas obras-primas
da nossa Antiguidade, porque a verdade é esta: tanto crentes como não crentes
andaremos às voltas com Jesus nas nossas cabeças, enquanto houver seres humanos
sobre a Terra[3].
2.
Neste
Domingo, é proclamada a Paixão de Jesus Cristo segundo S. Mateus. Quem se
deixar iluminar pela música que ela provocou, em J.S. Bach, talvez possa
descobrir o que nenhuma teologia pode conseguir.
Sob acção dessa luz, Eduardo
Lourenço escreveu um texto, sem data, que é preciso ler e reler e do qual não
resisto a deixar aqui alguns recortes: «no abismo intemporal onde a música me
mergulhou, sumiu-se a luz monótona da lâmpada, a nitidez da hora nocturna, o
meu próprio peso terrestre e mortal. “O céu não será o céu se lá não se tocar João
Sebastião”.
«(…) A mim próprio, o dialecta
incurável da conciliação dos contrários, o sofista triste da esperança terreste
pregada aos outros, a magia humana de João Sebastião Bach arranca-me por
momentos da árida e solitária planície da Insignificação, de que sou
caminheiro sem tréguas. As lágrimas correm sem vergonha na minha face de homem
rendido e humilde e o canto imortal rasga a minha carne até lá onde eu gosto de
imaginar que está o mais profundo que me sustenta com o grito inexpiável do
chamamento à única presença que desde a
infância eu sei que importa à minha vida.
«(…) Entre tantas formas
de tentação, e só aqueles que nada têm a perder não sabem o que é a tentação, a tentação de Deus é a mais perigosa, a mais irresistível, porque Deus é a
forma que em absoluto convém à nossa alma»[4].
3.
Numa
das anáforas mais usadas na liturgia Eucarística, a evocação da Última Ceia é
introduzida por uma expressão arrepiante:
Na hora em que Ele Se entregava, para voluntariamente sofrer a morte, tomou o
pão... Quem compôs esta anáfora e os que a usam não se dão conta do seu
horror?
Os romanos usavam os três
tipos mais cruéis de executar os condenados: agonizar na cruz, ser devorado
pelas feras e ser queimado vivo.
A crucifixão não era uma
simples execução, mas uma lenta tortura. Ao crucificado não se danificava
nenhum órgão vital. Por isso, a sua agonia podia prolongar-se durante longas
horas e até dias. Cícero chamou-lhe o suplício mais cruel e terrível.
Era normal combinar o
castigo básico da crucifixão com humilhações e tormentos. Os dados são
arrepiantes. Não era invulgar mutilarem o crucificado, vazarem-lhe os olhos,
queimarem-no, flagelarem-no e torturarem-no de diversas formas, antes de o
suspenderem da cruz. O modo de levar a cabo a crucifixão ficava entregue ao sadismo
dos verdugos. Morto era pasto dos abutres[5].
Dizer que Jesus se
entregou voluntariamente a este tipo
de crueldade é blasfemar. Quando S. João põe na boca de Cristo, «ninguém me
tira a vida, sou eu que a dou» refere-se a uma realidade completamente diferente[6].
Jesus não foi obrigado a seguir a missão libertadora que empreendeu adulto, livremente,
como graça do Espírito Santo. Foi escolha
sua e, quando o prenderam, não renegou o caminho que escolhera, de alma e
coração: dar vida e esperança às vítimas da injustiça e de todas as formas de
opressão.
Nunca desejou a morte.
Lutou contra ela e chorou a morte de um grande amigo. Não traiu. Nenhuma
ameaça, nenhuma tortura o levou a trair, nem mesmo a da morte, o seu projecto libertador[7].
Jesus não encarou a morte
como Sócrates: Sócrates mandou oferecer um galo ao deus da medicina, Asclépio,
porque finalmente o envenenamento libertava-o da prisão do corpo. Jesus Cristo
sentiu todo o horror da morte a ponto de perguntar por Deus: meu Deus, Meu Deus porque me abandonaste?
No entanto, não encarou a morte como um niilista: nas tuas mãos entrego o meu espírito.
A morte não podia ser a
última palavra porque, na sua morte, Jesus deu futuro àqueles que o matavam.
05. Abril. 2020
[1] Público, 22. 03. 2020
[2] Em José Antonio Pagola, Jesus. Uma abordagem histórica, Gráfica
de Coimbra 2, 2008 e Michel Quesnel, Jesus.
O Homem e o Filho de Deus, Gradiva, 2005, podem encontrar a bibliografia de
referência.
[3] Frederico Lourenço,
Bíblia. Novo Testamento. Os Quatro Evangelhos, Vol. I, Quetzal, 2016
[4] Eduardo Lourenço, Tempo da
Música. Música do Tempo, Gradiva, 2017, 50-51; 124; 147; 157
[5] José Antonio Pagola, Op. cit., 387-426
[6] Jo 10, 16-18
[7] Lc 4, 16-30
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