1. A
palavra igreja é uma complicação. Começou
por significar, no grego profano, assembleia política do povo. No grego
bíblico, a palavra traduz diversos termos hebraicos e foi a preferida para
designar as comunidades cristãs. Era nesse sentido que se dizia: a Igreja que
está em Jerusalém, em Antioquia, em Éfeso, etc.[i].
Eram comunidades que
reconheciam, em Jesus de Nazaré testemunhado pelos seus discípulos, o Caminho que
alterava todas as dimensões da vida humana.
Jesus nasceu e cresceu num
judaísmo de várias tendências. Quando se tornou adulto, depois de tentar seguir
o caminho reformista de João Baptista, teve uma experiência espiritual de tal
intensidade que mudou radicalmente o rumo da sua vida[ii]. Pelas suas atitudes,
gestos e parábolas introduziu uma revolução radical, teológica e antropológica,
no judaísmo em que tinha sido formado.
Deus tinha sido metido na prisão
das prescrições religiosas que, por sua vez, escravizavam os mais pobres e
doentes através das suas intermináveis e sofisticadas interpretações. O
Nazareno tentou destruir toda aquela casuística mediante duas evidências
soberanas: Deus não quer sacrifícios, quer misericórdia; o Sábado – o dia
sacralizado do judaísmo – é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado.
No entanto, a revolução das
revoluções vem apontada em S. Mateus: Ouvistes o que foi dito: «Amarás o teu próximo e odiarás o teu
inimigo». Eu, porém, digo-vos: Amai os
vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem[iii]. A lei da violência interminável pode ser vencida!
Foi por isso que o primeiro
horizonte da missão de Jesus e dos seus discípulos não foram os gentios, mas «as
ovelhas perdidas da casa de Israel»[iv]. A revolução devia
começar por casa. As grandes polémicas de Jesus com os dirigentes do seu povo são
motivadas pelo Espírito das referidas evidências: não havia direito de carregar
o povo com obrigações e proibições, quando eles dispunham de escribas e
doutores que torciam as normas segundo os seus interesses.
Jesus não escreveu nada nem
encarregou ninguém de escrever as suas memórias. Os primeiros escritos cristãos
nem sequer se interessavam pelo itinerário que o condenou. O próprio S. Paulo –
judeu fervoroso e cidadão romano – só queria testemunhar que Cristo não foi
vencido pela crucifixão. Atribuiu a sua viragem, de perseguidor dos discípulos
do Messias para se tornar o seu incansável apóstolo, a uma intervenção directa
do Ressuscitado[v].
O centro da fé e do
Evangelho que anunciava era este: Cristo crucificado ressuscitou. Está vivo e garante
a esperança que vence a própria morte. O que o movia nas viagens mais
perigosas, até aos limites do mundo conhecido, era precisamente anunciar a
judeus e gentios esta convicção. Era deste anúncio que nasciam mais comunidades
cristãs que, por sua vez, suscitavam ainda outras. Os seus escritos são cartas
para alimentar o fogo e resolver problemas e contendas que estavam sempre a
surgir.
2. Os
quatro Evangelhos nasceram, pelo contrário, no seio de várias comunidades com
problemáticas e estilos de vida bastante diferentes. Era preciso figurar o
itinerário terrestre de Jesus Cristo, pois, cada vez haveria menos pessoas que
pudessem dizer: eu vi, eu sei como
ele era, como vivia, como anunciava o Reino de Deus e como foi traído por
discípulos, adversários e inimigos. Era fundamental deixar testemunhos para o
presente, para o futuro, para todos aqueles que acreditassem mediante o
testemunho dos discípulos.
O Quarto Evangelho termina,
precisamente, com uma cena dedicada ao apóstolo Tomé, com estas espantosas
palavras: «porque me viste, acreditaste; felizes os que não viram e acreditaram».
Esta foi, é e será a condição dos cristãos de todos os tempos e lugares.
João, ao concluir a sua
narrativa, não podia se mais claro: «Jesus fez, diante dos seus discípulos,
muitos outros sinais ainda, que não se encontram escritos neste livro. Estes,
porém, foram escritos para acreditardes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus,
e para que, acreditando, tenhais a vida eterna em seu nome»[vi].
Como escreveu Frederico
Lourenço, «Na segunda metade do século I da era cristã, o manancial (já de si
tão rico) de textos em língua grega veio a enriquecer-se ainda mais com o
aparecimento de quatro textos que mudaram para sempre a História da Humanidade»[vii]. Este exímio tradutor considera
que «são textos insubstituíveis porque falam de Jesus de Nazaré, a figura mais
admirável de toda a História da Humanidade». No entanto, Jesus nasceu fora de
portas, não teve onde reclinar a cabeça e foi morto fora das portas de
Jerusalém.
3. O
ressuscitado não abandonou o mundo. Prometeu uma presença actuante até ao fim
dos séculos, em qualquer lugar: «Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria,
até aos confins da Terra».
É consensual que, a partir
sobretudo do século IV, a orientação da Grande Igreja instalou-se no poder. De
perseguida tornou-se perseguidora. João Paulo II teve a coragem de dizer que os cristãos assumiram métodos em
contradição com a verdade de Cristo e com o seu Espírito. Em vez do diálogo,
praticámos a exclusão; em vez da escuta das diferenças, a condenação; em vez da
compreensão ou da tolerância, a perseguição de quem era “outro”: os judeus, os
“heréticos” e, mais em geral, quem quer que mostrasse uma diversidade de
opiniões, de ética, de fé.
Era uma síntese de muitos erros em muitas épocas. Tornou-se uma
banalidade referir o desencontro com a modernidade, com o iluminismo, com a
revolução francesa, com a laicidade, o confronto com a hostilidade dos grandes
i
[i] C. 1 Tes 1, 1: Paulo, Silvano e Timóteo à igreja de Deus Pai e do Senhor Jesus
Cristo, que está em Tessalónica. A vós, graça e paz.
[ii] Mt 3, 11-17 e par.
[iii] Mt 5, 43-45
[iv] Mt 10, 5-16
[vii] Bíblia,
Volume I, Quetzal, 2016, p. 21
rico) de textos em língua
grega veio a enriquecer-se ainda mais com o aparecimento de quatro textos que
mudaram para sempre a História da Humanidade»[1]. Este exímio tradutor considera
que «são textos insubstituíveis porque falam de Jesus de Nazaré, a figura mais
admirável de toda a História da Humanidade». No entanto, Jesus nasceu fora de
portas, não teve onde reclinar a cabeça e foi morto fora das portas de
Jerusalém.
3. O
ressuscitado não abandonou o mundo. Prometeu uma presença actuante até ao fim
dos séculos, em qualquer lugar: «Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria,
até aos confins da Terra».
É consensual que, a partir
sobretudo do século IV, a orientação da Grande Igreja instalou-se no poder. De
perseguida tornou-se perseguidora. João Paulo II teve a coragem de dizer que os cristãos assumiram métodos em
contradição com a verdade de Cristo e com o seu Espírito. Em vez do diálogo,
praticámos a exclusão; em vez da escuta das diferenças, a condenação; em vez da
compreensão ou da tolerância, a perseguição de quem era “outro”: os judeus, os
“heréticos” e, mais em geral, quem quer que mostrasse uma diversidade de
opiniões, de ética, de fé.
Era uma síntese
de muitos erros em muitas épocas. Tornou-se uma banalidade referir o
desencontro com a modernidade, com o iluminismo, com a revolução francesa, com
a laicidade, o confronto com a hostilidade dos grandes impérios e das
ideologias totalitárias. Aconteceu, entretanto, o inesperado: veio o Papa João
XXIII, veio o Concílio Vaticano II, mas também a turbulência das confusões[2]. De
modo ainda mais inesperado, surgiu Bergoglio de fora de portas da Roma imperial
e não se instalou no Vaticano.
John L. Allen Jr. avisa: para compreender o Papa
Francisco, esqueça Roma e aponte para Lampedusa porque foi o local escolhido
para a primeira viagem do Papa fora de Roma, a 8 de Julho de 2013. Durou apenas quatro horas e meia, mas raramente um mero meio-dia na
vida de um papado foi tão repleto de simbolismo e substância. Esta ilha
tornou-se globalmente evocativa porque é o ponto de entrada na Europa de vagas e
vagas de migrantes e refugiados que fogem de África, Médio Oriente e Ásia[3].
Nascia a Igreja de saída, a Igreja fora de portas.
19. 07. 2020
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