1. A
crónica projectada para este Domingo – a última antes das férias – inspirava-se
numa passagem bíblica do Primeiro Livro dos Reis. É muito bela. Salomão
reconhece os seus limites para ser um bom governante. Pede a Deus um coração cheio de entendimento para governar o Seu povo,
para discernir entre o bem e o mal. Esta oração agradou ao Senhor, que lhe
disse:
«Já que me pediste não uma longa vida,
nem riqueza, nem a morte dos teus inimigos, mas sim o discernimento para
governar com rectidão, vou proceder conforme as tuas palavras: dou-te um
coração sábio e perspicaz, tão hábil que nunca existiu nem existirá jamais
alguém como tu»[i].
Quem dera que não só D. Trump e Bolsonaro, mas muitos outros governantes,
renunciando ao espírito de dominação, fossem guiados por um coração sábio, perspicaz
e hábil!
Quando ia começar a crónica deste
Domingo, tive de mudar o seu rumo. Morreu, na passada segunda-feira, um
confrade do Convento de S. Domingos que nos acolhe, o Frei Mateus Cardoso Peres
(1933-2020). Pelo muito que lhe devo, vou deixar, aqui, algumas palavras de
agradecimento.
2.
Nasceu em Lisboa numa família profundamente cristã. Tinha 9 irmãos e
licenciou-se em Direito, em 1956. Nesse mesmo ano, entrou na Ordem dos
Pregadores, no Convento dos Dominicanos de Fátima que já frequentara como
estudante. Estudou filosofia e teologia no Centro Sedes Sapientiae de Fátima e teologia em Otava (Canadá). Foi
ordenado presbítero em 1962.
Com o seu consentimento, permito-me
seguir o esboçou do seu itinerário feito por Luiza Sarsfield Cabral [ii].
Foi membro activo de um grupo de grande relevo na
renovação do catolicismo português. Figura internacional da Ordem dos
Pregadores, é um dos teólogos de contribuição mais original na renovação da
teologia moral na Igreja portuguesa no pós-Concílio Vaticano II.
Pertenceu a uma geração de católicos que, marcada por
preocupações políticas e sociais, constituiu uma referência obrigatória na
década de cinquenta-sessenta em Portugal. João Bénard da Costa retracta-a do
seguinte modo: «Na JUC, entre os “contestatários” havia dois ramos distintos: o
dos “sociólogos” (mais bem “comportados” e menos “intelectuais”) e o dos “vanguardistas”,
quer em posições políticas, quer no interior da Acção Católica, quer numa
predominante atenção aos fenómenos estéticos mais inconformistas. Esses eram
(éramos) [...] o Nuno Peres (Frei Mateus Cardoso Peres OP), o Nuno Portas, o
Nuno Bragança, o Luís Sousa Costa, o Pedro Tamen, o Alberto Vaz da Silva, o M.
S. Lourenço, o Cristóvão Pavia, o José Escada, o Manuel de Lucena, o José
Domingos Morais, o Duarte Nuno Simões – o Mário Murteira e o Carlos Portas eram
a charneira entre os dois grupos»[iii].
Com alguns entusiastas desse grupo, Frei Mateus Peres participou
na criação do CCC (Centro Cultural de Cinema – Cineclube de Universitários para
uma Cultura Cinematográfica Cristã), que teve o seu início em Novembro de 1956.
Foi colaborador em O
Tempo e o Modo, Revista de Pensamento e Acção – importante espaço de
diálogo e confronto de diferentes sensibilidades culturais, políticas e
religiosas –, tratando do significado histórico e impacto do Concílio Vaticano II
(1963-1965), no aggiornamento interno
da Igreja e na sua relação com o mundo contemporâneo. A problematização teológica,
introduzida em Portugal por Frei Mateus, nos seus textos de O Tempo e o Modo[iv],
é hoje considerada, pelos analistas dessa época, como um contributo único para
a compreensão da novidade doutrinal e pastoral do Vaticano II[v].
O recurso ao pseudónimo Manuel Frade, com que assinou o último destes artigos,
revela as dificuldades e limitações que existiam na Igreja portuguesa, então muito
à margem desse acontecimento mundial.
Fez parte da primeira direcção internacional da famosa
revista teológica Concilium, editada
em português pela Livraria Morais Editora (1965), devido ao empenhamento de A.
Alçada Baptista. Era esta a forma de Portugal e o Brasil terem acesso à grande
renovação teológica pós-conciliar.
Pertenceu ainda à equipa que, no âmbito das actividades
dessa revista, lançou entre nós os «Colóquios para Assinantes», destinados
sobretudo a equacionar as questões da Igreja portuguesa à luz de um Concílio
por ela praticamente ignorado.
Frei Mateus Peres dedicou muito da sua vida à renovação
da teologia moral, na investigação e no ensino: a partir de 1963, no Studium Sedes Sapientiae dos
dominicanos, em Fátima; de 1967 a 1972, na Faculdade de Teologia de Otava
(Canadá). Regressado a Portugal, continuou a sua dedicação à teologia, no campo
da Moral, no Porto (ISET, ICHT, UCP) e, finalmente, na UCP, em Lisboa.
É autor de alguma colaboração em obras colectivas e de
inúmeros estudos na área da teologia moral, em revistas como Humanística e Teologia, Communio, Cadernos ISTA e outras. Muito apreciado como professor e
conferencista, investigou as razões históricas e teóricas que contribuíram para
a «má reputação da moral» (sic).
Ao
fazer da ética uma construção do sujeito – em «uma visão teológica que faça
justiça ao sujeito» –, deu um contributo decisivo para a superação de dois
persistentes dilemas da teologia e filosofia moral,
subjectivismo/objectivismo e autonomia/teonomia. Esta proposta encontra-se na
sua obra fundamental, apresentada como tese de doutoramento em 1987, O Sujeito Moral: Ensaio de Síntese Tomista, 1992.
3. A
nível dos Dominicanos, viveu em várias comunidades em Portugal e no
estrangeiro. Assumiu vários cargos institucionais para que foi eleito: provincial
em 3 mandatos, várias vezes prior conventual, mestre de estudantes, sócio do Mestre
Geral para a vida intelectual, o que o obrigava a viver em Roma e a visitar
vários países, de vários continentes.
Acompanhou o Mosteiro das Monjas do Lumiar, onde se
desenvolveram as célebres Conferências do
Lumiar. No mundo das congregações religiosas, foi presidente de CNIR.
Tendo desempenhado várias funções de relevo, ao nível da
Ordem dos Pregadores, para ele, assumir o poder era o encargo de servir. Não
apenas de servir segundo o seu critério individual, mas segundo as instituições
democráticas que podem ser adaptadas e nunca postas em causa.
Compreendeu, na prática, a resposta de Deus à oração de
Salomão: exerceu o poder com um coração sábio, perspicaz
e muito hábil.
26. 07. 2020
[i] Cf. 1Rs 3, 1-15
[ii] Dicionário
Cronológico de Autores Portugueses, Volume VI, pp. 211-213
[iii] João B. da Costa, «Meus tempos, meus modos» in
Diário de Notícias, «Revista de Livros», 9/11/83,1
[iv] A Igreja entre Duas Guerras (TM, 16-17, 1964), Tradição e Progresso (TM, 18, 1964), A 4ª Sessão: O Concílio e a Igreja (TM, 32, 1965).
[v] Cf. tese de licenciatura em
Teologia de Nuno E. Ferreira, in Lusitania
Sacra, 2.ª série, 6, 1994, pp.129/294
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