segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

VEM ESPÍRITO SANTO CRIADOR! Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Quando se pretende desqualificar as intervenções e os escritos do Papa Francisco, diz-se que lhe falta um pensamento estruturado por grandes princípios de alcance universal. Deixa-se levar pelas urgências da pastoral marcada pelo tempo, pelo lugar, pelas circunstâncias e pela vida e aflições das comunidades.

Parece-me uma observação bastante ridícula. Bergoglio não foi eleito para reitor de uma universidade pontifícia, mas para cuidar, segundo o Espírito e o método do irmão Jesus de Nazaré, das fraternidades cristãs, de modo que estas sejam o fermento de um mundo de irmãos[1].

Para caracterizar a sua tarefa, Jesus usou a palavra pastor porque, na sua cultura, era a que melhor designava aquele que vai à frente e cuida de todos. João XXIII, na Mensagem inaugural ao Vaticano II, observou que importa ter em conta, «medindo tudo nas formas e proporções do magistério de carácter prevalentemente pastoral». Não opunha Teologia e Pastoral. Ele próprio nomeou alguns dos teólogos mais famosos pela sua abertura ao devir do mundo concreto. Ele não desprezava o contributo dos teólogos, antes pelo contrário. O que não lhe interessava era teólogos descolados do mundo em mudança.

K. Rahner e E. Schillebbekx, no primeiro número da revista Concilium, marcaram o que deve ser a nova orientação da Teologia: a necessidade de uma análise da hodierna experiência da existência humana à luz da revelação. Por toda a parte onde há vestígios da existência humana, essa existência é atingida e chamada pelo Deus vivo da salvação. Assim, a experiência existencial do ser humano, em qualquer parte onde se encontre, é sempre um locus theologicus, um lugar de descobertas para a convicção vital religiosa. O P. Chenu, o teólogo dos sinais dos tempos e dos mais influentes no desenrolar do Vaticano II, caracterizou bem a complementaridade entre teologia e magistério pastoral[2].

O Papa Francisco dirigiu-se, várias vezes, a algumas Faculdades de Teologia e à Comissão Teológica Internacional, para que as suas investigações e práticas cheirassem a “ovelhas”, a “povo”. Não era para diminuir a necessidade de rigor na investigação, mas para que esta não viva descolada do mundo real em contínua mudança.

Repetiu-se que a doutrina social da Igreja não se devia meter com situações concretas, sujeitas à mudança. Para manter as mãos limpas acabava por não ter mãos. A Igreja viria do eterno e caminharia para a eternidade, mas sem dizer por onde passava e com quem caminhava. De facto, o Papa Francisco situa-se num plano muito diferente: o abstrato paralisa-nos, mas focar-nos no concreto abre caminhos de possibilidades. É esta a posição que defende no seu novo livro, Sonhemos Juntos[3]. O 7Margens fez uma pré-publicação do início do primeiro capítulo: «Tem de se ir às periferias se se quer ver o mundo como ele é». Segue o conhecido método da Acção Católica: ver, julgar e agir.

2. Jesus de Nazaré não deixou nada escrito. Os primeiros escritos cristãos, os de S. Paulo, oferecem a sua experiência do Ressuscitado e as implicações que a sua experiência teve, para mostrar as superações da Lei antiga e a inclusão do mundo todo na graça universal de salvação. Esta deixou de ser o exclusivo do povo de Israel.

Se ficássemos só com os textos de S. Paulo, não sabíamos nada de concreto acerca do itinerário do Nazareno. A construção das narrativas dos quatro Evangelhos permite ter imagens e discursos retrabalhados do seu itinerário: as suas opções, os colaboradores que escolheu, as atitudes, as intervenções e as parábolas que elaborou para vencer o mundo das muitas formas de exclusão. De facto, encontrou-se com a exclusão criada pela religião oficial em que tinha sido formado: cegos, surdos, leprosos, possessos, publicanos e, mais radicalmente, as mulheres. Sobre essas situações concretas, não fez declarações abstractas: viu, julgou e agiu.

Como não foi Ele que escreveu essas narrativas, o que temos são as interpretações dos autores dos quatro Evangelhos e dos Actos dos Apóstolos e das comunidades em que se inscreviam, muitos anos depois do que aconteceu a Jesus. Mas todas as narrativas, ditas canónicas, têm o mesmo assunto e o mesmo propósito, realizados segundo a significação que revestiam para as comunidades em que surgiram. Não falam de um mito, mas de alguém muito humano situado numa época e num mundo que, hoje, pode e é estudado com bastante verosimilhança.

Os escritos tiveram o cuidado de referir tudo a Jesus Cristo e ao seu Espírito criador. Para Ele, o Espírito de Deus não era a sua propriedade privada, mas a sua presença criativa no mundo e na Igreja.

As comunidades, na sua criatividade, nunca prescindiram dessa referência explícita ao Nazareno e ao seu Espírito.

Eram, no entanto, conscientes de que o Espírito de Cristo não se esgotou na criatividade da época apostólica, quer na referência ao número simbólico dos Doze – as 12 tribos de Israel –, como aos 72 discípulos enviados em missão – número simbólico das nações gentias.

3. Uma questão que está sempre em estudo, sem nenhuma conclusão, é o papel das mulheres na Igreja e nos chamados ministérios ordenados como, por exemplo, o da presidência da Eucaristia.

O Papa Francisco acaba de publicar uma Carta Apostólica sob a forma de «Motu Proprio», Spiritus Domini. É tão breve que se pode chamar um bilhete cheio de ironia. Diz que «Os leigos que tiverem a idade e as aptidões determinadas com decreto pela Conferência Episcopal, podem ser assumidos estavelmente, mediante o rito litúrgico estabelecido, nos ministérios de leitores e de acólitos; no entanto, tal concessão não lhes atribui o direito ao sustento ou à remuneração por parte da Igreja».

Posso estar muito enganado, mas esta Carta é um exercício magnífico de ironia pastoral. Bergoglio tem-se esforçado por realçar que o lugar das mulheres na Igreja está muito desfasado em relação ao papel que desempenham na vida social, cultural, económica e política em muitos países. Homens e mulheres gozam cada vez mais, ainda com muitas distorções, dos mesmos direitos e deveres cívicos.

No entanto, o Papa Francisco esbarra com a Carta Apostólica de João Paulo II, Ordinatio Sacerdotalis (22.05.1994): «A ordenação sacerdotal, mediante a qual se transmite a função confiada por Cristo aos apóstolos, de ensinar, santificar e reger os fiéis, foi reservada sempre, na Igreja Católica, exclusivamente aos homens». Esta Carta precisa de uma hermenêutica rigorosa que mostre que ela continua com as imagens de um mundo que está condenado a desaparecer.

Ao publicar um Motu Próprio sobre o que já não precisava de nenhuma publicação, o Papa Francisco manifesta o ridículo da situação actual.

Rezemos: Vem Espírito Santo Criador!

 

 

17. Janeiro. 2021



[1] Hb 2; Mt 23, 8. O Papa Francisco recordou tudo isto na Fratelli Tutti

[2] Cf. Concilium, Janeiro de 1967, 82-91

[3] Sonhemos Juntos. O Caminho para um futuro melhor, edições Planeta

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