1.
Algumas pessoas telefonaram-me para dizer que o 3º ponto da minha crónica do
Domingo passado não respeitava nem o Papa Francisco nem João Paulo II. Chamava
bilhetinho desnecessário e, por isso, irónico à Carta Apostólica, Spiritus
Domini, do Papa Francisco. Insinuava que Bergoglio recorria a esse estilo por
causa da Carta Apostólica de João Paulo II, Ordinatio Sacerdotalis
(22.05.1994), da qual deixei apenas a conclusão: «A ordenação sacerdotal, mediante a qual se transmite a função confiada por
Cristo aos apóstolos, de ensinar, santificar e reger os fiéis, foi reservada
sempre, na Igreja Católica, exclusivamente aos homens».
Poderia ter sido útil avisar que esta
referência se inscreve nas declarações de Paulo VI, de João Paulo
II e nos comentários dos Prefeitos da Congregação para a Doutrina da Fé, J.
Ratzinger e L. Ladaria. No entanto, o sentido eclesial
das minhas intervenções exige o exercício responsável da liberdade, sem o qual,
o debate teológico não tem qualquer sentido.
Exprimi uma preocupação que é também um
desafio. As mulheres lutam, na sua diferença, por um estatuto igual ao dos
homens na vida familiar, profissional, cívica, cultural e política. Muitas queixam-se
de que, no interior da Igreja católica, a sua diferença é afirmada pela exclusão.
Por serem mulheres não são chamadas para exercer os ministérios ordenados que,
na organização actual, resultam do sacramento da Ordem e do qual dependem os
diáconos, os presbíteros e os bispos.
É na Igreja, a
comunidade dos baptizados, que tanto homens como mulheres podem ser convocados para
determinados serviços e encargos. Não são nem as mulheres nem os homens que podem
atribuir-se, a si próprios, essas funções como se fosse um direito. É apenas o
acolhimento da graça de servir.
Pela decisão
de João Paulo II, as mulheres nunca foram nem serão chamadas ao presbiterado e,
com maior razão, ao episcopado. Esta clareza, do ponto de vista da
interpretação do Novo Testamento, não é tão clara como parece. Não é apenas em
relação a outras Igrejas cristãs, também não é uma questão tranquila no seio da
Igreja católica. Há quem julgue que Roma deu por terminado, demasiado depressa,
um debate (1976/1994) que está muito longe de ter esgotado os caminhos de um desejável
consenso. O próprio conceito de apostolicidade continua em discussão, no
Movimento Ecuménico[i].
Kevin Madigan e
Carolyn Osiek publicaram uma obra, bastante abrangente, sobre as mulheres
ordenadas na Igreja primitiva. É uma história documentada e que recomendo
vivamente.
Nessa
história, trabalhada com rigor, aparece uma passagem curiosa que nos diz
directamente respeito. Bento VIII (1012-1024) escreveu uma
carta ao bispo do Porto, em 1017. Nessa carta, confirma algumas concessões e
certos privilégios a esse bispo, entre os quais se encontram os seguintes: «Do
mesmo modo, vos concedemos e te confirmamos e aos teus sucessores para a
eternidade toda a ordenação episcopal (ordinationem episcopalem), não só
de presbíteros, mas também de diáconos ou diaconisas (diaconissis) ou
subdiáconos».
Os editores
da obra referida anotaram: Apesar de todos os esforços anteriores dos Concílios
do Ocidente de eliminar as diaconisas, é surpreendente encontrar um papa, nos
inícios do século XI, que não só reconhece o ofício das diaconisas, mas que
admite que o rito da iniciação é uma ordenação[ii].
O livro Mulheres diáconos – Passado, presente, futuro
observa que João Paulo II e Bento
XVI não fizeram nada para restaurar o diaconado ordenado das mulheres. Só em
2016, é que o Papa Francisco começou a agir, convocando uma Comissão para
estudar a questão em seu nome[iii].
2. Não devemos ficar, apenas, com a
problemática do acesso das mulheres ao diaconado, embora se tenha realçado: o
diaconado das mulheres tem de ser inferior ao dos homens. A
grande dificuldade, no entanto, é acerca da ordenação presbiteral das mulheres.
Sobre esta pesa uma sentença imobilizadora.
A tentação de respostas
definitivas, a questões sujeitas ao devir imprevisível dos acontecimentos, é de
quem se situa fora do tempo ou usurpa a visão de um Deus desencarnado que não
é, propriamente, o Deus de Jesus Cristo, o Emmanuel, companheiro da viagem dos
seus irmãos e irmãs.
As definições dogmáticas, as
decisões dos concílios, as orientações da pastoral, são sempre pronunciamentos
marcados pelo tempo e pelos desafios que tiveram e têm de enfrentar. Pretendem
ser orientações para que os cristãos não se percam na viagem. Não podem
pretender substituir o Espírito Santo Criador, que sopra quando quer, como quer
e onde quer, sem pedir licença a ninguém e sem qualquer arbitrariedade.
3. António
Marujo conta que, num seminário
internacional promovido pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica,
sobre a figura do Jesus histórico, o biblista Joaquim Carreira das Neves
afirmou que as mulheres eram discípulas de Jesus «em grau de igualdade com
outros homens e mulheres que acreditavam em Jesus como profeta messiânico».
A nossa actualidade não se pode desligar do estudo crítico da vida das
primeiras comunidades cristãs. Os exegetas concordam cada vez mais em dizer que
as mulheres acompanharam os dois ou três anos de vida pública de Jesus. No
mesmo seminário, Frédéric Manns, investigador e ex-director do Studium
Biblicum Franciscanum, de Jerusalém, afirmou uma evidência: «havia mulheres
no grupo de permanentes que acompanhava Jesus. Esta era, porém, uma atitude
tanto mais ousada quanto, no judaísmo da época, as mulheres eram marginalizadas
ao ponto de não servirem como testemunhas».
Nesse mesmo seminário, Carreira das Neves viu nos textos dos Prefeitos
da Congregação para a Doutrina da Fé, declarações de tipo "pastoral"
e não dogmático que, por isso, deixam espaço para prosseguir a discussão[iv].
Giancarlo Pani, num interessante artigo
traduzido para a Unisinos, recorda que é um facto histórico inegável
o da exclusão das mulheres do sacerdócio por serem mulheres. Mas observa que, já
em 1948, muito antes das contestações dos anos 1970, o P. Congar – a maior figura da eclesiologia
católica – recordava que, «pelo facto de que a Igreja não
tenha feito uma coisa (...) não é sempre prudente concluir que a Igreja não a possa
fazer e que nunca a fará»[v].
Observação luminosa que pode ajudar em muitas
questões sobre as quais continua a imperar a sentença paralisante: isso nunca
foi e nunca será.
Para dizer isto, alguns Papas empenharam a sua
autoridade. Quando se trata de alterar algo que se impõe como uma urgência,
dizem que não podem ir contra a tradição.
[i] Cf. Michael Theobald, Apostolicidad
en la Iglesia. Un conflict desde una perspectiva
neotestamentária, in Selecciones de Teología, nº 235, 2020, 179-186;
Wolfgang Beinert, Apostólico. Anatomía de un concepto, in Selecciones de
Teología, nº 180, 2006, 269-283.
[ii]
Cf. Kevin Madigan y Carolyn Osiek (eds.), Mujeres
ordenadas en la Iglesia primitiva. Una historia documentada, Madrid,
Aletheia / evd, 2006, p. 219
[iii]
Gary Macy, William Ditewig e Phyllis Zagano, Ed. Paulinas, 2019
[iv] Cf. Público, 14. 04. 2006
[v]
As “mulheres diácono” na era apostólica e subapostólica, Revista IHU on-line, edição 546
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