1. Lembro-me,
muitas vezes e por vários motivos, do padre João Resina, um homem muito
inteligente e verdadeiramente livre. Trabalhámos juntos em alguns projectos e
ficámos amigos para sempre. Movia-se, com grande argúcia e rigor, no campo das
relações entre ciência, filosofia e teologia. Passou a maior parte do tempo
como professor no Instituto Superior Técnico. Só muito tarde lhe entregaram uma
paróquia, embora sempre tivesse desejado ser pároco.
A sua preocupação, no campo
pastoral, era a catequese. Era ela a grande responsável por ideias e
representações tontas que impediam o encontro com o devir cristão, no
desenvolvimento humano, emocional, espiritual e cultural de várias gerações com
quem contactava.
Sem abandonar as responsabilidades
académicas, assumiu a direcção da catequese na paróquia do Campo Grande (Lisboa).
Em 2007, numa entrevista[1],
A. Marujo observou-lhe que «a ciência toca questões que, para muitos crentes,
são vistas como atingindo as bases da sua fé: a criação, o big bang, a
evolução, as questões éticas…». Reagiu imediatamente: «fale-se dessas coisas às
crianças antes que se fale no liceu; e que se diga que uma coisa é tudo o que
vem de Deus, que é a criação, e outra a maneira como o Universo evoluiu e que
não tem nada a ver com religião.
«Nós dizemos que tudo o que
existe depende da vontade de Deus. Como é que isso foi feito, se foi feito mais
tarde ou mais cedo, se começou com o big bang ou doutra maneira, isso é da
física e não da religião.
«Em relação à ética, há uns
tipos da biologia que têm a mania que vão explicar a ética a partir do cérebro.
Eu não acredito muito nisso. Mas ainda não entrou no domínio público, ainda não
é um grande choque.
«A psicologia da
profundidade e Freud: ele fez descobertas fundamentais. Como era ateu, puxou um
bocadinho a brasa à sua sardinha, mas creio que se pode separar o que há de
fundamental na psicanálise, a descoberta do inconsciente. Outra coisa é aderir
ou não à tese de Freud de que a religião é uma neurose colectiva.
«Hoje, os mais hereges são
os da biologia, porque estão encantados com as descobertas das últimas décadas,
como aconteceu com a física no século XIX, sabia-se tudo. Hoje, os físicos
sabem que sabem tão pouco, já não se atrevem a fazer disso bandeira».
Também se falava muito dos
sacramentos da iniciação cristã, mas como causas automáticas de santificação e
não como processos simbólicos de alteração da vida em todas a suas fases e
dimensões. O P. Resina não gostava de liturgias farfalhudas. Era um austero.
Prezava muito a oração pessoal e os percursos de alguns místicos. A causa dos
pobres acompanhou-o sempre como realidade a enfrentar com poucas palavras e
gestos concretos.
Lembrei-me deste amigo,
nestes tempos de confinamento, precisamente por causa da necessidade de uma
catequese iniciática, evolutiva que, na situação actual, poderá exercer-se quase
apenas no âmbito familiar, embora com várias dificuldades.
Muitas das comunicações que
recebo têm a ver com pessoas que pedem que as ajude a agradecer a recuperação
da saúde, rezar e celebrar a Eucaristia por pessoas e famílias em aflições e
acompanhar amigos e familiares de pessoas que faleceram. Isto pelo telefone ou
por email. Não sou perito em técnicas, que muito admiro, de liturgias online.
2. No
contexto da pandemia, alguns pais disseram-me que são frequentemente
interrogados e não sabem responder: para onde vão as pessoas quando morrem?
Nunca mais as poderemos ver? A vida é assim para nada?[2]
Não são perguntas para
responder, mas para ajudar a pensar tudo. Não me contento em dizer que estamos
cá só para desenvolver este mundo e deixá-lo em melhores condições, do que
aquelas em que o encontrámos, para as próximas gerações. Isso é, de facto,
generosidade e pode justificar uma vida. As questões da ecologia são de
carácter holístico, suficientemente graves, para convocar cientistas e
investigadores com medidas políticas e culturais sobre o que todos podemos
fazer pelo bem do Universo. Esta é uma problemática que se tornou óbvia, se nos
quisermos encontrar com a nossa responsabilidade de existir.
A inquietação revelada pelas
perguntas de alguns filhos aos pais católicos não se satisfaz só com essa problemática.
A morte de familiares ou de amigos afecta-nos. É algo que parece também morrer
em nós. Não podemos fazer de conta que as relações de verdadeira amizade são
para esquecer. Os rituais ligados à morte – 7º dia, 30º dia… – não devem ser
interpretados como os últimos gestos do esquecimento. É possível que, para
muitas pessoas, sejam gestos de resignação pesarosa ao inevitável e mais nada.
Para os cristãos, não tem de
ser assim, se tivermos em conta alguns pontos essenciais da nossa fé. Antes de
mais, importa a purificação de algumas representações de Deus e do Além, como
reproduções do modo de vida que temos debaixo dos nossos olhos e que teceu a
nossa experiência, o ambiente cultural e religioso em que nos desenvolvemos,
acolhendo-o, rejeitando-o ou passando a não praticantes.
A versão corrente era esta:
morremos e vamos a contas. Segundo o velho catecismo, havia três hipóteses: ou
se ia para o céu ou para o inferno ou para o purgatório, em sistema de prisão
atormentada, mas temporária. A imaginação do limbo, para crianças que morreram
sem o baptismo, foi desativada.
A revisão geral, que pode
passar por múltiplas experiências de contraste, refere-se à descoberta do
inabarcável mistério do mundo a que podemos dar o nome de Deus. Foi-nos
revelado como mistério do puro amor. Por isso, de Deus nunca pode vir castigo.
Deus não é temível. Temíveis podemos ser nós uns para os outros. A melhor
metáfora para dizer Deus é a pura misericórdia sem condições. É ela que nos
pode responsabilizar, radicalmente, pela nossa vida e pela dos outros.
Não rezamos a Deus para O
convencer a gostar de nós e a satisfazer os nossos caprichos. Vai-se
descobrindo a oração como abertura a Deus, mistério da vida, dom para nós e
para os outros. Não é um negócio. É uma forma de viver a nossa errância.
3.
Nesse sentido, o “céu”, o “reino dos céus”, são metáforas para reconhecer e
acolher o próprio mistério de Deus – Jesus Cristo – na sua absoluta
transcendência e radical imanência. Vamos descobrindo e esquecendo que Deus não
está longe de nós e que nos é mais íntimo do que nós somos a nós próprios.
Somos envolvidos por esse amor inabarcável e incondicional que, por ser amor,
nunca se impõe. É Ele o nosso céu. S. Paulo descobriu isso pela boca de poetas
gentios: na divindade vivemos, nos movemos e existimos[3]. Ir descobrindo, ao longo da vida e dos seus
ziguezagues, que os amigos e familiares que nos morrem, sem exclusão de
ninguém, entram no reino do infinito amor que está presente em toda a parte e,
para o qual, ainda continuamos cegos.
A Quaresma começou na
passada quarta-feira. Não esqueçamos que a realidade significada pelos
signos da liturgia quaresmal não depende, necessariamente, dos ritos.
Precede-os e ultrapassa-os. Teremos esta Quaresma e esta Páscoa para novas
experiências do Evangelho, na igreja doméstica, aberta ao mundo.
21. Fevereiro. 2021
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