segunda-feira, 10 de maio de 2021

NA MORTE ADORMECI E ACORDOU-ME DEUS Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. As atitudes perante a morte foram e são muito diferentes de pessoa para pessoa, mesmo dentro da mesma época e da mesma cultura, religiosa ou não. No primeiro escrito cristão, é-nos dado a ler: «não queremos, irmãos, que fiqueis na ignorância a respeito dos que morreram, para não andardes tristes como os outros, que não têm esperança»[1].

Mesmo quem julga que depois da morte não há mais nada, pode não dispensar algum ritual que exprima o amor, o vazio, a saudade, o reconhecimento. A morte de um amigo é também a morte de algo em nós. No mais fundo do amor humano existe o desejo de eternidade: tu não me morrerás!

Os elogios fúnebres perdem-se, muitas vezes, a destacar o legado deixado por quem partiu. A obra passa a ser mais importante do que o seu autor: é esquecer que a grande obra de um ser humano é a de se tornar cada vez mais humano, em todas as suas relações.

Durante a pandemia, sobretudo nos momentos em que era mais difícil acompanhar os rituais da morte – velório, enterro, cremação –, muitas pessoas pediram-me para celebrar, mesmo à distância, a Eucaristia, na qual, por vezes, também não podiam participar. Esses pedidos, da parte de quem os faz, significam que a morte não é a última palavra sobre a existência humana. As orações e as liturgias são obra dos vivos que exprimem um paradoxo: já não podem viver nas formas de contacto e de comunicação com as pessoas que nos deixaram, mas também não aceitam que tudo tenha acabado. A morte é o impensável, mas faz-nos sentir a perda do outro em nós. Sabemos que a linguagem em torno da morte é sempre inadequada.

Nas diferentes religiões, os rituais ligados à morte são desejos da vida. No caso católico, as celebrações da missa de corpo presente, do funeral, do 7º dia e do 30º dia, as mandadas celebrar todos os anos não tiveram sempre, nem para todos, a mesma significação.

Na crença do purgatório – que não é nenhum dogma de fé – e nas Alminhas que o figuram, li pedidos urgentes de socorro: «vós que ides passando rezai por nós que estamos penando». Essa crença supõe que esses pedidos são de pessoas que não estão nem definitivamente condenadas nem no reino da alegria. No panorama dessas e de outras representações, nota-se a transposição atrevida e enganosa, para o além, de sentenças dos tribunais e dos esquemas prisionais do aquém. Estão longe do inabarcável Mistério do puro amor, do Deus da infindável misericórdia.

Sei que existe outro cenário: pessoas que morreram tão santas que foram logo para o céu. São candidatas à canonização, decretada pelas autoridades da Igreja, depois de um processo humano que averigua os sinais de uma heroica santidade, manifestada na sua existência terrestre. Há quem não deixe de sorrir perante esse quadro de honra. Na casa de Deus há muitos lugares, mas a grande festa é para os filhos pródigos.

2. Com o advento da Modernidade, muitas dessas representações tornaram-se insustentáveis, porque as representações do mundo e do ser humano estão em profunda e constante alteração. O céu, o inferno, o purgatório, o juízo final são metáforas dos desejos e dos medos humanos. São representações engrandecidas do além à imagem do que há de melhor e de pior neste mundo.

Quando se pensa, hoje, a fé cristã e o que ela implica, nascem várias tentativas de repensar tudo isso. Para citar apenas obras muito acessíveis, recomendo de Hans Küng, CredoA Profissão de Fé Apostólica Explicada ao Homem Contemporâneo[2], assim como, Aquilo em que acredito, de Jean Delumeau[3]. Este grande historiador desejava acolher a hora derradeira em condições de poder dizer de novo a palavra do Salvador: «Pai, nas tuas mãos entrego a minha vida». Morreu em 2020, aos 96 anos. Segundo o diário La Croix, o próprio historiador preparou o seguinte texto para ser lido no seu funeral: «A minha vida teve as suas dores e as suas alegrias, os seus fracassos e os seus sucessos, as suas sombras e as suas luzes, os seus defeitos, os erros e as inadequações, mas também os seus impulsos e as suas esperanças. Terminei a minha corrida. Possa eu adormecer-me na tua paz e no teu perdão! Sê o meu refúgio e a minha luz. Rendo-me a ti. Entrarei na terra. Mas que o meu último pensamento seja o da confiança».

3. É, no entanto, nos textos de Fr. José Augusto Mourão, O.P. (1947-2011), dispersos pela sua numerosa obra não académica[4], que encontro as sugestões mais fascinantes, para viver e pensar um itinerário cristão que deixa Deus e os seres humanos à solta, na invenção da vida que resiste ao niilismo e alimenta o desejo da «terra da alegria». Como ele próprio vincou, o desejo de Deus é o sucesso da Sua criação, um apelo à liberdade dos filhos do Seu amor. Sacrificar o humano para melhor encontrar o espiritual é ilusório, tanto do ponto vista humano – «quem faz o anjo faz a besta» – como do ponto de vista cristão: Deus incarnou.

Onde situa ele a sedução do cristianismo? Na pessoa do Cristo ressuscitado. Aquilo que Cristo promete não é a sobrevida sob forma de um fragmento anónimo do cosmo impessoal e cego, mas garante-nos que, pela fé, podemos reviver e reencontrar o rosto do amor, a voz e o sorriso que amámos.

O título desta crónica – na morte adormeci e acordou-me Deus – pertence-lhe. O CRC acaba de homenagear, da melhor forma, J. A. Mourão, lendo, gravando e lembrando alguns dos seus belos textos.

Este dominicano foi atraído, no Porto, à Ordem dos Pregadores por Frei Bernardo Domingues que foi seu professor e, também, o seu Mestre no Noviciado, um mestre de liberdade.

Frei Bernardo, meu irmão, nasceu em Travassos, uma aldeia situada num cenário espantosamente belo, atravessada pela estrada romana, a Geira (Terras de Bouro).

Não foi na família em que nasceu que viveu a maior parte da sua vida.  Ao entrar para os dominicanos, descobriu que o caminho de Jesus Cristo consiste em fazer família com quem não é da família biológica ou religiosa. O seu novo mundo é o de todos os que precisarem dele.

Não vou falar da brilhante vida académica de Frei Bernardo nem dos muitíssimos livros que publicou. Seria fastidioso referir todos os movimentos e organismos, tanto educativos como apostólicos, que suscitou, apoiou e aconselhou. Para o meu irmão, o que contava era a relação afectiva com as pessoas, desde as crianças aos mais velhos.

Não entrou no mundo dos chamados directores espirituais que tendem a governar a consciência dos outros, a dizer-lhes o que devem pensar, desejar e fazer. Descobriu que a virtude da prudência verdadeira, uma herança aristotélica que Tomás de Aquino acolheu na orientação da vida cristã[5], exige a plena liberdade do sujeito que pode e deve recorrer ao conselho de outros. Não é a virtude da cautela, das infinitas hesitações, mas a virtude da decisão concreta, situada, inalienável, de cada pessoa. Frei Bernardo era o homem do bom conselho e, por isso, tanta gente recorria a ele. Nunca acorrentava a consciência de ninguém. Promovia a sua liberdade.

No próximo dia 13 de Maio, faria 90 anos (1931-2019). Os amigos de sempre não querem deixar passar essa data sem a festa possível, em tempo de pandemia, no Convento de Cristo Rei (Porto).

 

09. Maio. 2021



[1] 1Ts 4, 13

[2] Ed. Instituto Piaget; cf. também, Aquilo em que creio, Temas e Debates, 2014

[3] Círculos de Leitores, 1994

[4] Vazio Verde (1985), Dizer Deus (1991), A Palavra e o Espelho (2000), Luz desarmada (2006), O Nome e a Forma (2009), Quem vigia o vento não semeia (2011); cf. também Obra selecta de José Augusto Mourão, Imprensa Nacional, 2017.

[5] Cf. Michel Labourdette, O.P., La Prudence, Parole et Silence, 2016.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

A MISSA NÃO PODE FICAR NA MISSA Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. «Se não tens nada que fazer, não me chateies, vai à missa». Reagir assim, em dia de semana, era o modo bem-educado de quem recusava o uso de palavrões, muito frequentes, na aldeia em que nasci. Importa lembrar que a prática religiosa pautava os momentos mais marcantes do dia. O sino tocava de manhã, ao meio dia e ao fim da tarde. As pessoas paravam e rezavam, estivessem onde estivessem. O chofer da camionete, que fazia a carreira de Braga a Terras de Bouro, tirava o boné quando passava diante de uma Igreja, da Cruz ou das Alminhas. A maioria das famílias rezava o terço, já cabeceando de sono, depois da ceia. Faltar à Missa ao Domingo era considerado pecado, a não ser que fosse por razões de força maior, como a doença ou a velhice. Isto era naquele tempo.

Por muitas e variadas razões, tudo mudou naquelas aldeias serranas, em progressiva desertificação, especialmente nas situadas acima da estrada romana, a Geira. A dificuldade de alguns párocos entenderem que as metamorfoses dos valores também afectam as práticas religiosas, não os ajuda a entender certas atitudes da pouca juventude que resta. De qualquer modo, nada vence os romeiros de S. Bento da Porta Aberta e, no catolicismo português, Fátima é incontornável, embora ainda não possamos saber as consequências da pandemia que fez desse Santuário um deserto.

A nível mundial, a perseguição aos cristãos apresenta, um pouco por toda a parte, um crescimento assustador. As estatísticas disponíveis dizem que, em 2020, já tinha feito mais de 340 milhões de vítimas. Na Europa, considerada cristã, parece reinar a indiferença, embora seja preciso ter em conta que o seu mapa religioso, com as migrações de todas as origens, modifica-se dia a dia.

2. Para quem continua a ir à Missa, e não é tão pouca gente como se julga, escuta, no início da proclamação do Evangelho, uma expressão ambígua: naquele tempo. Digo ambígua porque, de facto, o Cristianismo não se pode desligar de Jesus de Nazaré, crucificado sob Pôncio Pilatos, a 7 de Abril, do ano 30 do primeiro século da nossa era. Mas, naquele tempo pode dar a ideia de uma religião arrumada no passado, quando a significação cristã do seu acontecimento fundador atinge todos os tempos e lugares. Cristo é nosso contemporâneo.

Esta compreensão vem testemunhada, de vários modos, nos textos cristãos mais antigos. No passado Domingo, pediram-me para comentar uma passagem do Evangelho S. Lucas: os discípulos de Emaús[i]. É uma peça de requintada beleza narrativa, que vai insinuando, passo a passo, o que verdadeiramente é estruturante na vida de uma comunidade cristã, seja onde for e seja quando for.

Os textos do Novo Testamento debatem-se sempre com uma dificuldade paradoxal: têm de mostrar que o Cristo ressuscitado é a mesma pessoa que teve uma existência terrestre e que, devido às suas opções, suscitou uma coligação político-religiosa que o crucificou. Mas surge de um modo tão diferente, na nova situação, que até as mulheres e os homens, seus discípulos, só O reconhecem quando é Ele próprio a tomar a iniciativa de manifestar a sua identidade. É o que acontece também com a narrativa dos discípulos de Emaús. Quem puder vá ver o texto de S. Lucas, que não podemos reproduzir aqui na íntegra.

Emaús era uma aldeia que ficava a 12km de Jerusalém. Conta o texto que dois discípulos do Nazareno – um chamado Cléopas e outro sem nome –, poucos dias depois da morte do Mestre, indo a caminho dessa aldeia, enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus aproximou-se e pôs-se a caminhar com eles, como se fosse um estranho. Fez-se de curioso e perguntou-lhes: de que é que estais a falar? Ficaram desconfiados: serás tu o único a visitar Jerusalém que ignora os acontecimentos que lá se passaram nestes dias? O desconhecido tornou-se ainda mais curioso: que acontecimentos foram esses? Resposta: os referentes a Jesus de Nazaré que era um homem, um profeta poderoso, na acção e na palavra, diante de Deus e de todo o povo e como os nossos sacerdotes e os nossos chefes O entregaram para ser condenado à morte e O crucificaram. Esperávamos que Ele viria resgatar Israel, mas já estamos no terceiro dia e nada.

É muito cómica a situação: são os discípulos que explicam a Jesus o que aconteceu a Jesus! É, para nós, de grande alcance: Cristo é o grande clandestino de todas as pessoas, mergulhadas nos seus problemas do dia a dia para os quais, em certas ocasiões, não descobrem qualquer sentido. Por vezes, são os próprios crentes que, em situações desesperadas, se interrogam: mas onde está Deus em tudo isto?

O segundo elemento estruturante da vida da comunidade cristã é a procura de sentido para os enigmas da existência humana. Sem interrogações que abalem as nossas certezas convencionais, não podemos caminhar escutando e interpretando os sinais de esperança semeados nas incertezas da vida.

A fé cristã não se confunde, porém, com infindáveis debates filosóficos ou teológicos. Exige nascer de novo para o acolhimento do inesperado. Quando a comunidade cristã pratica a graça da hospitalidade, é visitada pela clandestina presença real de Cristo.

    O desenlace da aventura dos discípulos de Emaús, na oferta da hospitalidade a esse desconhecido, é ainda mais surpreendente. Uma vez à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o, distribui-o e aconteceu o milagre: então, os seus olhos abriram-se e reconheceram-no. E ele tornou-se invisível à vista deles. Enquanto o viram não o reconheceram, quando o reconheceram deixaram de o ver!

     3. Neste belo conto dos discípulos de Emaús estão retratadas as componentes de uma autêntica comunidade cristã:  a vida quotidiana da semana, a necessidade de a iluminar com a alegria do Evangelho e o acolhimento do outro. A celebração da Eucaristia é, precisamente, o tempo dedicado a estabelecer os laços entre todos os aspectos da vida humana, em processo de iluminação pelo reconhecimento da presença real e invisível de Cristo na vida toda[ii].

Não se pode esquecer, todavia, uma outra dimensão da comunidade cristã, inscrita no final da narrativa dos discípulos de Emaús: Voltaram imediatamente para Jerusalém e contaram o que lhes tinha acontecido pelo caminho e como Jesus se lhes dera a conhecer, ao partir o pão.

A Missa não pode ficar na Missa. Dar testemunho, com obras e palavras, aos que a não frequentaram, é a missão dos verdadeiros discípulos. O mero consumismo religioso não é religioso.

Os cristãos não podem aceitar que se levantem muros, obstáculos, aos que, acossados pela fome ou pela guerra, batem à porta da Europa, dos EUA ou de qualquer outro país.

Como diz a Carta aos Hebreus[iii], não vos esqueçais da hospitalidade, lembrai-vos dos presos, dos que são maltratados, sem perguntar qual é a sua religião, o seu credo político ou a sua nacionalidade. São nossos irmãos.

 

 

Maio. 202


[i] Cf. Lc 24, 13-35

[ii] Essa presença real de Cristo na eucaristia, dizia Paulo VI, é denominada real não porque as outras sejam irreais, mas porque é real por excelência (Mysterium fidei, 41).

[iii] Cf. Hb 13, 1-3