1. As
atitudes perante a morte foram e são muito diferentes de pessoa para pessoa,
mesmo dentro da mesma época e da mesma cultura, religiosa ou não. No primeiro
escrito cristão, é-nos dado a ler: «não queremos, irmãos, que fiqueis na
ignorância a respeito dos que morreram, para não andardes tristes como os outros,
que não têm esperança»[1].
Mesmo quem julga que depois
da morte não há mais nada, pode não dispensar algum ritual que exprima o amor,
o vazio, a saudade, o reconhecimento. A morte de um amigo é também a morte de
algo em nós. No mais fundo do amor humano existe o desejo de eternidade: tu
não me morrerás!
Os elogios fúnebres
perdem-se, muitas vezes, a destacar o legado deixado por quem partiu. A obra
passa a ser mais importante do que o seu autor: é esquecer que a grande obra de
um ser humano é a de se tornar cada vez mais humano, em todas as suas relações.
Durante a pandemia,
sobretudo nos momentos em que era mais difícil acompanhar os rituais da morte –
velório, enterro, cremação –, muitas pessoas pediram-me para celebrar, mesmo à
distância, a Eucaristia, na qual, por vezes, também não podiam participar.
Esses pedidos, da parte de quem os faz, significam que a morte não é a última
palavra sobre a existência humana. As orações e as liturgias são obra dos vivos
que exprimem um paradoxo: já não podem viver nas formas de contacto e de
comunicação com as pessoas que nos deixaram, mas também não aceitam que tudo
tenha acabado. A morte é o impensável, mas faz-nos sentir a perda do outro em
nós. Sabemos que a linguagem em torno da morte é sempre inadequada.
Nas diferentes religiões, os
rituais ligados à morte são desejos da vida. No caso católico, as celebrações
da missa de corpo presente, do funeral, do 7º dia e do 30º dia, as mandadas
celebrar todos os anos não tiveram sempre, nem para todos, a mesma
significação.
Na crença do purgatório –
que não é nenhum dogma de fé – e nas Alminhas que o figuram, li pedidos
urgentes de socorro: «vós que ides passando rezai por nós que estamos penando».
Essa crença supõe que esses pedidos são de pessoas que não estão nem definitivamente
condenadas nem no reino da alegria. No panorama dessas e de outras
representações, nota-se a transposição atrevida e enganosa, para o além,
de sentenças dos tribunais e dos esquemas prisionais do aquém. Estão longe
do inabarcável Mistério do puro amor, do Deus da infindável misericórdia.
Sei que existe outro cenário:
pessoas que morreram tão santas que foram logo para o céu. São candidatas à
canonização, decretada pelas autoridades da Igreja, depois de um processo
humano que averigua os sinais de uma heroica santidade, manifestada na sua
existência terrestre. Há quem não deixe de sorrir perante esse quadro de honra.
Na casa de Deus há muitos lugares, mas a grande festa é para os filhos
pródigos.
2. Com
o advento da Modernidade, muitas dessas representações tornaram-se
insustentáveis, porque as representações do mundo e do ser humano estão em profunda
e constante alteração. O céu, o inferno, o purgatório, o juízo final são
metáforas dos desejos e dos medos humanos. São representações engrandecidas do além
à imagem do que há de melhor e de pior neste mundo.
Quando se
pensa, hoje, a fé cristã e o que ela implica, nascem várias tentativas de
repensar tudo isso. Para citar apenas obras muito acessíveis, recomendo de Hans
Küng, Credo – A Profissão de Fé Apostólica Explicada ao Homem
Contemporâneo[2], assim
como, Aquilo em que acredito, de Jean Delumeau[3].
Este grande historiador desejava acolher a hora derradeira em condições de
poder dizer de novo a palavra do Salvador: «Pai, nas tuas mãos entrego a minha
vida». Morreu em 2020, aos 96 anos. Segundo o diário La Croix, o próprio historiador
preparou o seguinte texto para ser lido no seu funeral: «A minha vida teve as
suas dores e as suas alegrias, os seus fracassos e os seus sucessos, as suas
sombras e as suas luzes, os seus defeitos, os erros e as inadequações, mas
também os seus impulsos e as suas esperanças. Terminei a minha corrida. Possa
eu adormecer-me na tua paz e no teu perdão! Sê o meu refúgio e a minha luz.
Rendo-me a ti. Entrarei na terra. Mas que o meu último pensamento seja o da
confiança».
3. É, no entanto, nos textos de Fr. José Augusto Mourão,
O.P. (1947-2011), dispersos pela sua numerosa obra não académica[4],
que encontro as sugestões mais fascinantes, para viver e pensar um itinerário
cristão que deixa Deus e os seres humanos à solta, na invenção da vida que
resiste ao niilismo e alimenta o desejo da «terra da alegria». Como ele próprio
vincou, o desejo de Deus é o sucesso da Sua criação, um apelo à liberdade dos
filhos do Seu amor. Sacrificar o humano para melhor encontrar o espiritual é
ilusório, tanto do ponto vista humano – «quem faz o anjo faz a besta» – como do
ponto de vista cristão: Deus incarnou.
Onde
situa ele a sedução do cristianismo? Na pessoa do Cristo ressuscitado. Aquilo
que Cristo promete não é a sobrevida sob forma de um fragmento anónimo do cosmo
impessoal e cego, mas garante-nos que, pela fé, podemos reviver e reencontrar o
rosto do amor, a voz e o sorriso que amámos.
O
título desta crónica – na morte
adormeci e acordou-me Deus – pertence-lhe. O
CRC acaba de homenagear, da melhor forma, J. A. Mourão, lendo, gravando e
lembrando alguns dos seus belos textos.
Este
dominicano foi atraído, no Porto, à Ordem dos Pregadores por Frei Bernardo Domingues
que foi seu professor e, também, o seu Mestre no Noviciado, um mestre de
liberdade.
Frei
Bernardo, meu irmão, nasceu em Travassos, uma
aldeia situada num cenário espantosamente belo, atravessada pela estrada
romana, a Geira (Terras de Bouro).
Não foi
na família em que nasceu que viveu a maior parte da sua vida. Ao entrar para os dominicanos, descobriu que
o caminho de Jesus Cristo consiste em fazer família com quem não é da família
biológica ou religiosa. O seu novo mundo é o de todos os que precisarem dele.
Não vou
falar da brilhante vida académica de Frei Bernardo nem dos muitíssimos livros
que publicou. Seria fastidioso referir todos os movimentos e organismos, tanto
educativos como apostólicos, que suscitou, apoiou e aconselhou. Para o meu
irmão, o que contava era a relação afectiva com as pessoas, desde as crianças
aos mais velhos.
Não
entrou no mundo dos chamados directores espirituais que tendem a
governar a consciência dos outros, a dizer-lhes o que devem pensar, desejar e
fazer. Descobriu que a virtude da prudência verdadeira, uma herança
aristotélica que Tomás de Aquino acolheu na orientação da vida cristã[5],
exige a plena liberdade do sujeito que pode e deve recorrer ao conselho de
outros. Não é a virtude da cautela, das infinitas hesitações, mas a virtude
da decisão concreta, situada, inalienável, de cada pessoa. Frei Bernardo
era o homem do bom conselho e, por isso, tanta gente recorria a ele. Nunca
acorrentava a consciência de ninguém. Promovia a sua liberdade.
No
próximo dia 13 de Maio, faria 90 anos (1931-2019). Os
amigos de sempre não querem deixar passar essa data sem a festa possível, em
tempo de pandemia, no Convento de Cristo Rei (Porto).
09. Maio. 2021
[1] 1Ts 4, 13
[2] Ed. Instituto
Piaget; cf. também, Aquilo em que creio, Temas e Debates, 2014
[3] Círculos
de Leitores, 1994
[4] Vazio
Verde (1985), Dizer Deus (1991), A Palavra e o Espelho (2000),
Luz desarmada (2006), O Nome e a Forma (2009), Quem vigia o
vento não semeia (2011); cf. também Obra selecta de José Augusto Mourão,
Imprensa Nacional, 2017.
[5] Cf. Michel Labourdette, O.P., La
Prudence, Parole et Silence, 2016.