1.
Comunicaram-me que, no dia 3 deste mês, o Público e o 7Margens,
vão lembrar-se que, nessa data, cumprem-se 30 anos das minhas crónicas neste
Jornal. Não vou falar das crónicas, mas apetece-me relembrar a introdução que
escrevi para o primeiro livro, editado pelo Mário Figueirinhas[1],
porque tentei exprimir, por contrastes, uma teologia que implicava uma
antropologia. Há, no entanto, nessa introdução, o uso do termo homem para
significar homem e mulher, mas que oculta as mulheres. Por isso, desde há
muito, utilizo sempre a expressão ser humano.
Recordei, nessa introdução,
que em 1935 pediram a Yves Congar, O.P. um diagnóstico sobre o inquérito, então
realizado pela famosa Revista La Vie Intelectuelle, sobre as razões da
“descrença actual”. A análise teológica do longo processo do divórcio entre a
Igreja e os movimentos científicos, culturais e sociais que agitaram a gestação
do mundo moderno ficou condensada numa frase que sempre me impressionou: «A uma
religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião».
Trinta anos mais tarde, em
pleno Vaticano II, voltou a insistir no mesmo ponto: «o maior obstáculo, que os
seres humanos de hoje encontram no caminho da fé, vem da falta de ligação que
julgam verificar entre, por um lado, a fé em Deus, no seu Reino e, por outro, o
ser humano e a sua obra terrestre. É urgente mostrar o laço íntimo que os une.
É na superação desse fosso que se deveria procurar a resposta mais eficaz às
razões da descrença moderna»[2].
Teilhard de Chardin, em
1920, numa breve nota sobre a evangelização dos novos tempos, pressente a
gravidade do que está a acontecer: «Cristão e humano tendem cada vez mais a não
coincidir. É este o grande cisma que ameaça a Igreja».
Nos anos 50, esta impressão ainda
não se tinha apagado: «indubitavelmente, por alguma razão obscura, há qualquer
coisa que já não passa entre o ser humano e Deus, tal como é apresentado aos seres
humanos de hoje. É como se o ser humano não tivesse diante de si a figura do
Deus que procura adorar»[3].
Em 1960, o grande
medievalista Marie-Dominique Chenu, O.P. verifica que «o novo mundo dos nossos
dias ainda não foi integrado no pensamento cristão»[4].
Philippe Roqueplo, no começo da sua tese de doutoramento – Experiência do
mundo, experiência de Deus? – mostrou a que ponto a teologia oficial
permanecia impermeável a todas as tentativas de integrar, na experiência
cristã, as tarefas da construção do mundo e de acolhimento do Reino de Deus.
Percorreu o monumental Dictionnaire de Théologie Catholique, elaborado
entre 1903 e 1950, constituído por 22 grandes e compactos volumes. Este
dicionário pretendia abarcar «todas as questões que interessavam ao teólogo».
Veja-se o resultado:
«Na entrada profissão, vem
um artigo “profissão de fé”; em emprego: nada; em mulher: nada; em amor: um
terço de coluna assim distribuído: v. “caridade”; amor do próximo: v.
“caridade: amor próprio: algumas linhas que reenviam para “ambição”; amor puro:
v. “caridade”; mas sobre amor humano propriamente dito: nada; em amizade: nada
(…); em vida: um artigo “vida eterna” (…); em mal: vinte colunas; em economia:
nada; em política: nada; em poder: finalmente um artigo de cento e três colunas
(quatro vezes mais que “mal”) sobre… “o poder do Papa na ordem temporal”. Em
técnica: nada; em ciência: mais um longo artigo dividido em quatro pontos:
ciência sagrada; ciência de Deus; ciência dos anjos e das almas separadas;
ciência de Cristo… mas sobre o que nós chamamos ciência: nada; em arte: um
longo artigo sobre… a arte cristã; em beleza: nada; em valor: nada; em pessoa:
v. “hipóstase”; em história: nada; em leigo e laicado: nada, a não ser um longo
artigo sobre o laicismo estigmatizado como uma heresia»[5].
Estas ausências revelam um
sobrenaturalismo teológico ignorante da significação das realidades terrestres
com as quais é tecida a história humana, lugar da experiência cristã.
Veio o Concílio Vaticano II.
Abriu com uma generosa mensagem ao mundo feita pelos Padres Conciliares. A Constituição Pastoral Gaudium et Spes
é um abraço franco ao mundo contemporâneo: «As alegrias e as esperanças dos seres
humanos de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as
alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo;
e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu
coração. Porque a sua comunidade é formada por seres humanos, que, reunidos em
Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do Reino
do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este
motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua
história» (nº 1).
2. É certo que João Paulo II percorreu o mundo,
arrastou multidões e disse logo no começo do seu pontificado o essencial: «O ser
humano, na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo
tempo, do seu ser comunitário e social — no âmbito da própria família, no
âmbito de sociedades e de contextos bem diversos, no âmbito da própria nação,
ou povo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo), enfim, no âmbito de toda
a humanidade — este ser humano é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer
no cumprimento da sua missão: ele é a primeira e fundamental via da
Igreja, via traçada pelo próprio Cristo e via que imutavelmente conduz
através do mistério da Encarnação e da Redenção»[6].
No entanto, muita gente considera que há posições
das autoridades eclesiásticas, assumidas em nome da lei de Deus e da vontade de
Cristo, que são actos da maior desumanidade.
De onde virá este profundo desencontro?
Não sei. Repetir que o ser humano concreto, em
todas as suas coordenadas, é o primeiro caminho da Igreja ou acusar a Igreja de
atraiçoar o seu próprio programa, não leva a lado nenhum.
Adianto a hipótese que tem guiado a minha
colaboração no Público. A questão talvez esteja em identificar apressadamente
a Igreja com o próprio Jesus Cristo.
Jesus sabia e sabe o que há no ser humano.
Conhece a profundidade do nosso coração. Em todos os seus gestos e palavras
canta e chora uma inesgotável ternura e compaixão pelo mundo. Jesus é a
humanidade de Deus.
A Igreja não. A Igreja tem de aprender a ser
humana com Jesus Cristo e com todos os seres humanos da terra.
3. A
celebração deste Domingo é dedicada a evocar Cristo como Bom Pastor. As principais
figuras do Bom Pastor que encontrei, no meio de muitas pessoas que vivem a
espiritualidade do cuidado, foram o Papa João XXIII, nas audiências públicas a
que fui fiel, enquanto estive em Roma por conselho de Giorgio La Pira, e o Papa
Francisco que nos acompanha dia a dia. Com eles, as parábolas do Novo
Testamento, as pinturas que, desde as catacumbas até hoje, as tentam exprimir,
são pessoas que incarnam a misericórdia divina por todos os que se sentem
perdidos nas periferias da desumanidade.
08. Maio. 2022
[1] Frei
Bento Domingues, O.P., A Humanidade de Deus. Religião sem mundo, mundo sem
religião, Mário Figueirinhas Editor, Porto, 1995
[2] Chrétiens
en dialogue, Paris, Cerf, 1964, p. XXXIII
[3] L’Avenir
de l’home, Paris, Seuil, 1959, p. 339
[4] I.C.I.,
nº 111, 1960, p.121
[5] In Experience du monde:
experience de Dieu?, Cerf. Paris, 1968, p.19-20
[6] Redemptoris
Hominis, nº 14
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