domingo, 1 de maio de 2022

PAIXÃO DE SERVIR E PAIXÃO DE MANDAR Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. No Domingo passado, foi proclamado um texto do Evangelho segundo S. João[1], no qual, Cristo Ressuscitado repetiu, num pequeno espaço, três vezes: a paz esteja convosco. Isto significa que a cultura da paz faz parte da mensagem evangélica. Não se pode pregar o Evangelho apoiando ou não denunciando as guerras. Infelizmente, a história das religiões foi muitas vezes, e continua a ser, tecida pelo recurso a várias formas de violência. A guerra voltou à Europa com todos os seus horrores de destruição. Muito se tem mostrado, dito e escrito sobre a invasão da Ucrânia. Deixo, em nota, apenas algumas referências que se situam no espírito desta crónica[2].

Aos discípulos de Cristo, de todos os tempos e lugares, pede-se que trabalhem na construção de um mundo, onde os instrumentos da guerra sejam transformados em instrumentos de desenvolvimento e de distribuição dos bens que são de todos e para todos[3]. Dir-se-á que esse espírito pacifista não tem resposta para todas as situações de injustiça, mas também não pode ser a recusa em divulgar e seguir as pessoas e os movimentos que mostraram e mostram a eficácia das lutas sem violência. A não-violência é muito exigente e muito trabalhosa, como mostraram, entre outros, Gandhi, Luther King e Mandela. É criminosa a eficácia dos movimentos e das pessoas que fazem fortunas com o fabrico e comércio das armas.

Essencial, para os cristãos, é o caminho percorrido por Jesus de Nazaré. Aprendeu a ganhar a vida como carpinteiro. A sua aldeia ficava perto de Séforis, a maior cidade da Galileia. Era um local de mistura de povos e culturas, um fervelhar de tensões políticas e de movimentos guerrilheiros contra a ocupação do Império Romano.

Em determinado momento, Jesus, homem feito, procurou dar um rumo novo à sua vida. Andou na corrente de renovação moral e religiosa, significada por um rito baptismal, no rio Jordão. Segundo os Evangelhos, depois desse baptismo ritual, teve uma experiência insólita. Estava em oração e ouviu uma voz, vinda do céu, que não tinha nada a ver com a voz de João Baptista: tu és o meu filho muito amado. A partir dessa experiência mística, há um corte radical como o seu passado e parte para um longo retiro no deserto, onde não encontra sossego. Pelo contrário, é agitado por um espírito diabólico que teima em contrariar, de forma muito hábil, a escolha que tinha feito: estar completamente ao serviço do Reino da Paz. São tentações de carácter messiânico, de um messianismo nacionalista, com respostas prontas e simplistas para todas as questões de conquista do poder económico, político e religioso.

Jesus recusou, de forma rotunda, essas solicitações diabólicas, vencendo as tentações dos tempos e poderes messiânicos[4]. Como diz o Evangelho de S. Lucas, tendo acabado toda a tentação, o diabo deixou-o até nova oportunidade. Encontrou essa oportunidade nos seus discípulos, bem testemunhada nos nossos textos fundadores[5].

2. S. Marcos conta que, depois de muitas discussões entre os discípulos a ver quem seria o primeiro, dois deles apresentam-se como candidatos aos primeiros lugares, quando Jesus tomasse o poder. Eram Tiago e João, filhos de Zebedeu, que lhe disseram: Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos. E que quereis vós? Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda. Resposta de Jesus: Não sabeis o que estais a pedir. Podeis beber o cálice que Eu vou beber e receber o baptismo com que serei baptizado? Disseram: Podemos. Jesus replicou: Bebereis o cálice que Eu vou beber e sereis baptizados com o baptismo com que serei baptizado, mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me cabe a mim concedê-lo.

Tendo ouvido isto, os outros dez começaram a indignar-se com o atrevimento de Tiago e João. Jesus chamou-os e disse-lhes: Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário, aquele que quiser ser grande, seja o vosso servo e aquele que quiser ser o primeiro entre vós, seja o servo de todos. Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos.

Parece-me que S. Marcos (que os outros sinópticos irão seguir) tocou num ponto essencial do itinerário de Jesus, que continua actual para as nossas relações familiares, sociais, políticas e religiosas. As pessoas deviam ser educadas para desenvolver todas as suas capacidades, para se tornarem competentes em servir o bem de todos. Isto é, procurar o próprio bem, o bem do grupo ou do país a que pertencem, no que fazem, não para dominar, não para destruir, mas para colaborarem com todas as pessoas boa vontade, seja qual for o país ou o continente. Acontece, no entanto, que são educadas, nas famílias e na escola, não para se tornarem competentes em servir, mas para se tornarem competentes em dominar os outros.

Desenvolver a ambição, a paixão de mandar, de dominar é a fonte de lutas destrutivas interpessoais, de grupos e de países. A fonte da paz é a paixão de servir a todos os níveis e em todas as relações humanas, locais ou globais.

3. Isto parece uma grande ingenuidade, o discurso de quem não quer ver a complexidade e a maldade das pessoas, dos grupos, dos governantes das nações e dos Estados. Não é uma ingenuidade, como mostrou René Girard[6].

Conta o Evangelho de S. João que Jesus teve uma conversa nocturna com um fariseu, membro do Sinédrio e seu simpatizante. Não se entenderam à primeira porque Jesus começou pela exigência máxima: se queres entender o meu caminho, tens de nascer de novo. Nicodemos faz-se desentendido: como pode um homem nascer de novo, sendo já velho? O Nazareno observa com ironia: sendo tu mestre em Israel, ignoras essas coisas?

A essência do Baptismo cristão consiste, precisamente, em nascer de novo. Isso foi esquecido e, agora, só quase é lembrado quando se trata do baptismo de adultos, como acontece cada vez mais. O que dificulta este entendimento é pensar que basta praticar um ritual, de uma vez para sempre, sem exigências quotidianas. Nascer de novo todos os dias, em todas as circunstâncias, é o programa para todos os cristãos. Nada está resolvido de uma vez para sempre.

A arma que Jesus deixa aos discípulos é o sopro do Espírito. Sem Ele, estamos expostos ao espírito mundano, ao espírito de dominação, da violência, das guerras.

As dificuldades que a Igreja encontrou no decorrer dos tempos, e continua a encontrar, resultam de não oferecer um rosto de discípulos ressuscitados, aqueles que nascem de novo todos os dias.

A propósito da reforma da Cúria Romana, o Papa Francisco não se cansa de denunciar o carreirismo eclesiástico que não procura servir, mas encontrar lugares de dominação. Não crescem na paixão de servir, mas na paixão de mandar, de dominar.

 

 

01 Maio 2022



[1] Jo 20, 19-31

[2] Cf.Teresa Toldy, O ângulo morto da invasão, 7Margens, 24.04.2022; Unisinos, 11.03.2022: Tomáš Halík e Reportagem de Cécile Chambraud; Frei Bento Domingues, O.P., Da cultura da indiferença aos negócios da guerra, Público, 13. 02. 2022

[3] Cf. Is 2, 4 e Act 4, 32-37

[4] Lc 4, 1-13 e paralelos

[5] Mc 10, 35-45; Mt 20, 20-28; Lc 22,24-27

[6] René Girard, La Violence et le sacré, 1972; Des choses cachées depuis la fondation du monde, 1978; Le Bouc émissaire, 1982

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