1. No
Domingo passado, foi proclamado um texto do Evangelho segundo S. João[1], no qual, Cristo
Ressuscitado repetiu, num pequeno espaço, três vezes: a paz esteja convosco.
Isto significa que a cultura da paz faz parte da mensagem evangélica. Não se
pode pregar o Evangelho apoiando ou não denunciando as guerras. Infelizmente, a
história das religiões foi muitas vezes, e continua a ser, tecida pelo recurso a
várias formas de violência. A guerra voltou à Europa com todos os seus horrores
de destruição. Muito se tem mostrado, dito e escrito sobre a invasão da Ucrânia.
Deixo, em nota, apenas algumas referências que se situam no espírito desta
crónica[2].
Aos discípulos de Cristo, de
todos os tempos e lugares, pede-se que trabalhem na construção de um mundo,
onde os instrumentos da guerra sejam transformados em instrumentos de
desenvolvimento e de distribuição dos bens que são de todos e para todos[3]. Dir-se-á que esse
espírito pacifista não tem resposta para todas as situações de injustiça, mas
também não pode ser a recusa em divulgar e seguir as pessoas e os movimentos
que mostraram e mostram a eficácia das lutas sem violência. A não-violência é
muito exigente e muito trabalhosa, como mostraram, entre outros, Gandhi, Luther
King e Mandela. É criminosa a eficácia dos movimentos e das pessoas que fazem
fortunas com o fabrico e comércio das armas.
Essencial, para os cristãos,
é o caminho percorrido por Jesus de Nazaré. Aprendeu a ganhar a vida como
carpinteiro. A sua aldeia ficava perto de Séforis, a maior cidade da Galileia. Era
um local de mistura de povos e culturas, um fervelhar de tensões políticas e de
movimentos guerrilheiros contra a ocupação do Império Romano.
Em determinado momento, Jesus,
homem feito, procurou dar um rumo novo à sua vida. Andou na corrente de
renovação moral e religiosa, significada por um rito baptismal, no rio Jordão. Segundo
os Evangelhos, depois desse baptismo ritual, teve uma experiência insólita.
Estava em oração e ouviu uma voz, vinda do céu, que não tinha nada a ver com a
voz de João Baptista: tu és o meu filho muito amado. A partir dessa
experiência mística, há um corte radical como o seu passado e parte para um
longo retiro no deserto, onde não encontra sossego. Pelo contrário, é agitado
por um espírito diabólico que teima em contrariar, de forma muito hábil, a
escolha que tinha feito: estar completamente ao serviço do Reino da Paz. São
tentações de carácter messiânico, de um messianismo nacionalista, com respostas
prontas e simplistas para todas as questões de conquista do poder económico,
político e religioso.
Jesus recusou, de forma
rotunda, essas solicitações diabólicas, vencendo as tentações dos tempos e
poderes messiânicos[4].
Como diz o Evangelho de S. Lucas, tendo acabado toda a tentação, o diabo
deixou-o até nova oportunidade. Encontrou essa oportunidade nos seus
discípulos, bem testemunhada nos nossos textos fundadores[5].
2. S.
Marcos conta que, depois de muitas discussões entre os discípulos a ver quem
seria o primeiro, dois deles apresentam-se como candidatos aos primeiros
lugares, quando Jesus tomasse o poder. Eram Tiago e João, filhos de Zebedeu, que lhe disseram:
Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos. E que quereis vós? Concede-nos
que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda. Resposta
de Jesus: Não sabeis o que estais a pedir. Podeis beber o cálice que Eu vou beber
e receber o baptismo com que serei baptizado? Disseram: Podemos. Jesus replicou:
Bebereis o cálice que Eu vou beber e sereis baptizados com o baptismo com que serei
baptizado, mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me cabe a mim
concedê-lo.
Tendo ouvido isto, os outros dez começaram a
indignar-se com o atrevimento de Tiago e João. Jesus chamou-os e
disse-lhes: Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os
seus grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário, aquele
que quiser ser grande, seja o vosso servo e aquele que quiser ser o primeiro
entre vós, seja o servo de todos. Pois, o Filho do Homem não veio para ser
servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos.
Parece-me que S. Marcos (que os outros sinópticos
irão seguir) tocou num ponto essencial do itinerário de Jesus, que continua
actual para as nossas relações familiares, sociais, políticas e religiosas. As
pessoas deviam ser educadas para desenvolver todas as suas capacidades, para se
tornarem competentes em servir o bem de todos. Isto é, procurar o próprio bem, o
bem do grupo ou do país a que pertencem, no que fazem, não para dominar, não
para destruir, mas para colaborarem com todas as pessoas boa vontade, seja qual
for o país ou o continente. Acontece, no entanto, que são educadas, nas
famílias e na escola, não para se tornarem competentes em servir, mas para se
tornarem competentes em dominar os outros.
Desenvolver a ambição, a paixão de mandar, de
dominar é a fonte de lutas destrutivas interpessoais, de grupos e de países. A
fonte da paz é a paixão de servir a todos os níveis e em todas as relações
humanas, locais ou globais.
3. Isto parece uma grande ingenuidade, o discurso
de quem não quer ver a complexidade e a maldade das pessoas, dos grupos, dos
governantes das nações e dos Estados. Não é uma ingenuidade, como mostrou René
Girard[6].
Conta o Evangelho de S. João que Jesus teve uma
conversa nocturna com um fariseu, membro do Sinédrio e seu simpatizante. Não se
entenderam à primeira porque Jesus começou pela exigência máxima: se queres
entender o meu caminho, tens de nascer de novo. Nicodemos faz-se
desentendido: como pode um homem nascer de novo, sendo já velho? O
Nazareno observa com ironia: sendo tu mestre em Israel, ignoras essas coisas?
A essência do Baptismo cristão consiste,
precisamente, em nascer de novo. Isso foi esquecido e, agora, só quase é
lembrado quando se trata do baptismo de adultos, como acontece cada vez mais. O
que dificulta este entendimento é pensar que basta praticar um ritual, de uma
vez para sempre, sem exigências quotidianas. Nascer de novo todos os
dias, em todas as circunstâncias, é o programa para todos os cristãos. Nada
está resolvido de uma vez para sempre.
A arma que Jesus deixa aos
discípulos é o sopro do Espírito. Sem Ele, estamos expostos ao espírito mundano,
ao espírito de dominação, da violência, das guerras.
As dificuldades que a Igreja encontrou no decorrer
dos tempos, e continua a encontrar, resultam de não oferecer um rosto de
discípulos ressuscitados, aqueles que nascem de novo todos os dias.
A propósito da reforma da
Cúria Romana, o Papa Francisco não se cansa de denunciar o carreirismo eclesiástico
que não procura servir, mas encontrar lugares de dominação. Não crescem na
paixão de servir, mas na paixão de mandar, de dominar.
01 Maio 2022
[1]
Jo 20, 19-31
[2]
Cf.Teresa Toldy, O ângulo morto da invasão, 7Margens, 24.04.2022; Unisinos,
11.03.2022: Tomáš Halík e Reportagem
de Cécile Chambraud; Frei Bento Domingues, O.P., Da cultura da indiferença
aos negócios da guerra, Público, 13. 02. 2022
[3]
Cf. Is 2, 4 e Act 4, 32-37
[4]
Lc 4, 1-13 e paralelos
[5] Mc 10, 35-45; Mt 20, 20-28; Lc 22,24-27
[6]
René Girard, La Violence et le sacré, 1972; Des choses cachées
depuis la fondation du monde, 1978; Le Bouc émissaire, 1982
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