1. A
oração faz parte de todas as religiões, de todos os povos e até de pessoas que
se dizem sem religião. As formas da atitude religiosa podem oferecer variações
de religião para religião, de país para país e de pessoa para pessoa. Os últimos inquéritos sobre a prática
religiosa, a nível mundial, mostram que o reconhecimento da transcendência
humana continua vivo. Deixo, em nota, algumas dessas abundantes referências[1].
Neste Domingo, muitos
cristãos confrontam-se com um dos mais belos, imaginativos e bem humorados textos
do Antigo Testamento. Apresenta Abraão a «negociar» com Deus que estava
indignado com o imenso clamor que lhe chegava de Sodoma e Gomorra. Este Deus não actua
por ouvir dizer: «vou descer a fim de ver se, na realidade,
a conduta deles corresponde ao brado que chegou até mim. E se não for assim,
sabê-lo-ei».
Abraão manifesta-se o defensor do povo até ao
limite: será que vais exterminar, ao mesmo tempo, o justo com o culpado? Talvez haja cinquenta justos na cidade; matá-los-ás a todos? Não
perdoarás à cidade, por causa dos cinquenta justos que nela podem
existir? Longe de ti proceder assim e matar o justo com o
culpado, tratando-os da mesma maneira! Longe de ti! O juiz de toda a Terra não
fará justiça? O Senhor respondeu: se encontrar em Sodoma
cinquenta justos, perdoarei a toda a cidade por causa deles.
Abraão prosseguiu: já que me atrevi a falar ao
meu Senhor, eu que sou apenas cinza e pó, continuarei. Se,
por acaso, para cinquenta justos faltarem cinco, destruirás toda a cidade, por
causa desses cinco homens? O Senhor respondeu: não a destruirei, se lá encontrar
quarenta e cinco justos.
Abraão insistiu ainda e disse: talvez não se
encontrem nela mais de quarenta. O Senhor afirmou: não destruirei a cidade, em
atenção a esses quarenta. Abraão voltou a dizer: que o
Senhor não se irrite, por eu continuar a insistir. Talvez lá se encontrem
trinta justos. O Senhor respondeu: se lá encontrar trinta justos, não o farei.
Abraão prosseguiu: perdoa, meu Senhor, a ousadia
que tenho de te falar. Talvez não se encontrem lá mais de vinte justos. O Senhor
disse: em atenção a esses vinte justos, não a destruirei. Abraão
insistiu novamente: que o meu Senhor não se irrite; não falarei, porém, mais do
que esta vez. Talvez lá não se encontrem senão dez. E Deus respondeu: em
atenção a esses dez justos, não a destruirei.
Terminada
esta conversa com Abraão, o Senhor afastou-se e Abraão voltou para a sua morada[2]. Como boa
história, ficámos sem saber o desenlace deste diálogo.
2. O Novo Testamento veio dizer-nos que a
misericórdia é o próprio coração de Deus que deve transformar a nossa vida. Por
isso, Jesus Cristo insiste: sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso. A misericórdia vale mais do que todos os sacrifícios.
Jesus foi educado na vida
cultual de Israel[3],
mas foi muito crítico em relação quer aos lugares do culto quer à prática rabínica
da observância semanal do Sábado.
Quanto à rivalidade entre o
Templo de Jerusalém (dos judeus) e o do monte Garizim (dos dissidentes
samaritanos), esclareceu, na célebre conversa com a samaritana, que essa
rivalidade não tem razão de ser. Chegou o tempo em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade[4].
Em relação à observância semanal do Sábado, foi ainda mais contundente em
muitas ocasiões. Até parece que tinha prazer em violar essa observância sagrada,
não por capricho, mas para mostrar que o dia consagrado a Deus deve ser, por
isso mesmo, o dia da libertação e da alegria dos seres humanos[5].
3. No
Evangelho de S. Mateus, aborda a questão da oração no contexto da recusa do
exibicionismo religioso: Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de
pé nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos. Em verdade vos digo:
já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando orares,
entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai,
pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te. Nas vossas
orações, não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam
que, por muito falarem, serão atendidos. Não façais como
eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lho
pedirdes[6].
Em S. Lucas, o cenário é
muito diferente[7]. Estava
Jesus em oração e os discípulos queixam-se de não terem uma forma original de
rezar, como tinham, por exemplo, os discípulos de João Baptista. O Mestre
responde-lhes:
Quando orardes, dizei: Pai, santificado seja o teu nome; venha o teu Reino; dá-nos o nosso pão de cada dia; perdoa os nossos
pecados, pois também nós perdoamos a todo aquele que nos ofende; e não nos
deixes cair em tentação.
Conta-lhes, então, uma parábola que parece
contrariar a versão seca de S. Mateus. Nessa parábola, faz da oração uma
insistência com Deus, como se fosse necessário convencer a Deus do que
precisamos. Esquece-se, porém, que não é Deus que precisa de ser convencido,
mas nós é que precisamos de rezar para nos abrir ao dom de Deus. Daí, a
importância da escuta em vez da multiplicação de palavras.
A conclusão desta parábola é incisiva e vai de
encontro ao essencial: pois se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos
vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho
pedem!
Como dizia o grande escritor católico, Georges
Bernanos, na oração, nunca obtive o que pedi, mas saí sempre da oração
modificado.
A parábola de S. Lucas, que parecia uma apologia
da insistência com Deus, como se Ele fosse surdo e um tapa-buracos das nossas
carências, acaba por ser a maior crítica dessa atitude. Aquilo de que mais
precisamos, e sempre esquecemos, é de acolher o Espírito de Jesus Cristo, em
toda a nossa vida, para que ela seja a própria respiração de Deus em nós. Só o
Espírito de Cristo, que nunca nos será negado, nos fará nascer de novo, todos
os dias. Sem Ele, não nos encontramos com a nossa Fonte existencial, pois é em
Deus que vivemos, nos movemos e existimos. A oração é para não nos esquecermos
desta nossa condição, para não andarmos distraídos do essencial.
S. Paulo, na Carta aos Romanos, apresenta uma
situação dramática que, hoje, continua: a criação geme e sofre as dores de
parto até ao presente. Não só ela. Também nós, que possuímos as primícias do
Espírito, nós próprios gememos no nosso íntimo. No entanto, o Espírito vem em
auxílio da nossa fraqueza, pois não sabemos o que havemos de pedir. É o próprio
Espírito de Cristo que intercede por nós com gemidos inefáveis.
Paulo termina esse capítulo com toda a esperança:
se Deus é por nós, quem será contra nós?[8]. Mas Deus não suprime a nossa liberdade.
Como diz António Guterres, o nosso inimigo somos
nós mesmos. É por nossa culpa que metade da humanidade está na zona de perigo,
de inundações, secas, tempestades extremas e incêndios florestais.
[1] Cf. A
Oração dos homens. Uma antologia das tradições espirituais, Assírio &
Alvim, 2006; Orações do Mundo de todos os tempos e lugares, Livros de
Vida, Editores, 2003.
[2] Gn 18,
20-33
[3] Cf. Xavier
Léon-Dufour, Dictionnaire du Nouveau Testament, Seuil 1975: A Vida
cultual.
[4] Jo 4
[5] Lc 13,
10-17, por exemplo.
[6] Mt 6,
5-15
[7] Lc 11,
1-13
[8] Cf. Rm 8
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