domingo, 31 de julho de 2022

A MELHOR LEITURA PARA FÉRIAS Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. A partir de hoje até Setembro, suspendo estas crónicas. Costumava sugerir algumas leituras para o mês de Agosto. Não vou engrossar a ladainha de todos os que repetem que o cristianismo está em declínio irreversível. A história é o reino das surpresas. Muitas vezes, o que se julgava uma demonstração triunfante do catolicismo, nas viagens dos últimos Papas, veio a revelar-se uma grande manifestação de fraqueza.

Neste momento, o Papa Francisco não foi ao Canadá para recolher aplausos. Foi pedir perdão e penitenciar-se de crimes vergonhosos cometidos contra as famílias indígenas em instituições católicas. Que este gesto penitencial seja bem compreendido, rejeitado ou indiferente, para a opinião pública, não importa. Esta atitude do Papa Francisco não busca aplausos ou esquecimentos. Vale por si mesma ao repor a verdade. Nenhum outro motivo deve ser tido em conta.

Ao contrário do que acontece a outras pessoas, Bergoglio não me tem decepcionado. Continua a testemunhar verdadeira fidelidade à prática histórica de Jesus que procurava sempre a companhia dos rejeitados.

Tem sido espantosamente fiel à escolha do santo de Assis, emblema do seu pontificado. O melhor é dar-lhe a palavra, mediante um dos seus textos mais representativos e mais universalista.

Fratelli Tutti: escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se aos seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si. Com poucas e simples palavras, explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita.

Este Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a encíclica Laudato Si’, volta a inspirar-me para dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social. Com efeito, São Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne. Semeou paz por toda a parte e andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos[1].

2. A expressão com sabor a Evangelho remete para os textos do Novo Testamento. Como diz Frederico Lourenço, na segunda metade do século I da era cristã, o manancial (já de si tão rico) de textos em língua grega veio a enriquecer-se ainda mais com o aparecimento de quatro textos que mudaram para sempre a História da Humanidade.

Nestes textos, o leitor escolarizado da época ter-se-ia confrontado com uma temática muito diferente da que conhecia de Homero, Sófocles ou Platão. Pois nestes quatro textos não se falava das façanhas heroicas de reis e de guerreiros, nem se reportavam a conversas de aristocratas atenienses com o lazer e o dinheiro para se dedicarem à filosofia.

Aqui falava-se de pescadores e de leprosos; falava-se de pessoas desprezadas pela sua baixa condição na sociedade, pelas suas deficiências físicas, pelos seus problemas de saúde mental; falava-se de figuras femininas que não eram as rainhas e princesas da epopeia e da tragédia gregas, mas sim mulheres normais da vida real (a queixarem-se da lida da casa ou a exercerem, talvez, a mais antiga profissão do mundo).

Acima de tudo, nestes quatro textos falava-se de certo homem, filho de um carpinteiro nazareno: um homem carismático, cheio de compreensão por todo o tipo de sofrimento humano; um homem que, apesar de não ter praticado qualquer crime, acabou por morrer crucificado como se fosse um criminoso, no meio de dois ladrões. Esse homem – que muitos foram reconhecendo como Ungido (Khistós: Cristo) de Deus e até como Filho de Deus – era portador da mais extraordinária das mensagens, transmitida com palavras simples, por vezes sob a forma de pequenas histórias singelas, compreensíveis em qualquer aldeia (e, por isso, muitos termos por ele utilizados eram palavras da aldeia – como estrume).

(…) Lendo-os dois mil anos depois, não é difícil perceber porquê. Sobre um desses textos já se escreveu que se trata do “mais divino de todos os livros”: na verdade, essa descrição assenta a qualquer um deles. São textos que – com a sua mensagem sublime veiculada por palavras cuja beleza desarmante ainda deixa arrepiado quem os leu e releu ao longo de uma vida inteira – estão simplesmente numa categoria à parte[2].

Não me admira que Eduardo Lourenço tenha escrito: no Ocidente não se levantou outro modelo cultural (e, mais além do cultural, um modelo existencial) mais profundo e mais radical do que o modelo de Cristo. (…) Creio que é Cristo histórico propriamente dito, a historicidade de Cristo exemplar que continua funcionando como modelo, se há algum modelo. Se há algum modelo – é esse[3]. Para ele, Cristo é um momento (sem limite de tempo) em que a humanidade tomou forma humana[4].

Neste Verão, a melhor leitura que recomendo para férias são, precisamente, os quatro Evangelhos cheios de surpresas, mesmo para quem os frequenta diariamente. É evidente que devem ser preferidas as edições com boas introduções e notas elucidativas.

3. O Evangelho deste Domingo é dedicado à insensatez de pensar que é, na acumulação insaciável de riqueza, que temos o nosso futuro garantido[5]. Um dos traços mais apelativos da pregação de Jesus é a lucidez com que soube desmascarar o poder alienante e desumanizador da confiança no dinheiro, o deus dos que se perderam de Deus. Jesus não podia ter sido mais radical: Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou apegar-se-á a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.

Os fariseus, amigos do dinheiro, ouviam tudo isso e zombavam dele[6].

Jesus considerou, como uma verdadeira loucura, a vida dos latifundiários da Palestina, obcecados por armazenar as suas colheitas em celeiros cada vez maiores.

Como destacou o Papa Francisco, no seu documento programático, A Alegria do Evangelho, continuamos na economia que mata. Contrariar esse caminho é o programa da intervenção dos cristãos na vida social, económica e política, para não se traírem a si mesmos. Devem tornar-se cada vez mais competentes, não para dominar, mas para servir os sem vez e os sem voz.

Recolhi, na Religión Digital, uma banda desenhada: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu. Enviou-me a evangelizar os pobres… Não seria melhor evangelizar antes os ricos, para que não houvesse pobres?».

31 Julho 2022



[1] Fratelli Tutti, nº 1 e 2

[2] Frederico Lourenço, Bíblia. Novo Testamento. Os quatro Evangelhos, pp.21-22

[3] Como se Deus não existisse, in Reflexão Cristã 42 (Dez 84/Jan 85), pp. 46-47

[4] Eduardo Lourenço, in «Opção» nº 97, 2-8, Março, 1978)

[5] Lc 12, 13-21

[6] Lc 16, 13-14

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