1. A
partir de hoje até Setembro, suspendo estas crónicas. Costumava sugerir algumas
leituras para o mês de Agosto. Não vou engrossar a ladainha de todos os que
repetem que o cristianismo está em declínio irreversível. A história é o reino
das surpresas. Muitas vezes, o que se julgava uma demonstração triunfante do
catolicismo, nas viagens dos últimos Papas, veio a revelar-se uma grande
manifestação de fraqueza.
Neste momento, o Papa
Francisco não foi ao Canadá para recolher aplausos. Foi pedir perdão e
penitenciar-se de crimes vergonhosos cometidos contra as famílias indígenas em
instituições católicas. Que este gesto penitencial seja bem compreendido,
rejeitado ou indiferente, para a opinião pública, não importa. Esta atitude do
Papa Francisco não busca aplausos ou esquecimentos. Vale por si mesma ao repor
a verdade. Nenhum outro motivo deve ser tido em conta.
Ao contrário do que acontece
a outras pessoas, Bergoglio não me tem decepcionado. Continua a testemunhar verdadeira
fidelidade à prática histórica de Jesus que procurava sempre a companhia dos
rejeitados.
Tem sido espantosamente fiel
à escolha do santo de Assis, emblema do seu pontificado. O melhor é dar-lhe a
palavra, mediante um dos seus textos mais representativos e mais universalista.
Fratelli Tutti: escrevia São
Francisco de Assis, dirigindo-se aos seus irmãos e irmãs para lhes propor uma
forma de vida com sabor a Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite
a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara
feliz quem ama o outro, o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está
junto de si. Com poucas e simples palavras, explicou o essencial duma
fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas
independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu
ou habita.
Este Santo do amor fraterno, da simplicidade e da
alegria, que me inspirou a escrever a encíclica Laudato Si’, volta
a inspirar-me para dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade
social. Com efeito, São Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do
vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne. Semeou paz
por toda a parte e andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados,
dos últimos[1].
2. A expressão com sabor a Evangelho remete
para os textos do Novo Testamento. Como diz Frederico Lourenço, na segunda
metade do século I da era cristã, o manancial (já de si tão rico) de textos em
língua grega veio a enriquecer-se ainda mais com o aparecimento de quatro
textos que mudaram para sempre a História da Humanidade.
Nestes textos, o leitor escolarizado da época
ter-se-ia confrontado com uma temática muito diferente da que conhecia de
Homero, Sófocles ou Platão. Pois nestes quatro textos não se falava das
façanhas heroicas de reis e de guerreiros, nem se reportavam a conversas de
aristocratas atenienses com o lazer e o dinheiro para se dedicarem à filosofia.
Aqui falava-se de pescadores e de leprosos;
falava-se de pessoas desprezadas pela sua baixa condição na sociedade, pelas
suas deficiências físicas, pelos seus problemas de saúde mental; falava-se de
figuras femininas que não eram as rainhas e princesas da epopeia e da tragédia
gregas, mas sim mulheres normais da vida real (a queixarem-se da lida da casa
ou a exercerem, talvez, a mais antiga profissão do mundo).
Acima de tudo, nestes quatro textos falava-se de
certo homem, filho de um carpinteiro nazareno: um homem carismático, cheio de
compreensão por todo o tipo de sofrimento humano; um homem que, apesar de não
ter praticado qualquer crime, acabou por morrer crucificado como se fosse um
criminoso, no meio de dois ladrões. Esse homem – que muitos foram reconhecendo
como Ungido (Khistós: Cristo) de Deus e até como Filho de Deus – era
portador da mais extraordinária das mensagens, transmitida com palavras
simples, por vezes sob a forma de pequenas histórias singelas, compreensíveis
em qualquer aldeia (e, por isso, muitos termos por ele utilizados eram palavras
da aldeia – como estrume).
(…) Lendo-os dois mil anos depois, não é difícil
perceber porquê. Sobre um desses textos já se escreveu que se trata do “mais
divino de todos os livros”: na verdade, essa descrição assenta a qualquer um
deles. São textos que – com a sua mensagem sublime veiculada por palavras cuja
beleza desarmante ainda deixa arrepiado quem os leu e releu ao longo de uma
vida inteira – estão simplesmente numa categoria à parte[2].
Não me admira que Eduardo Lourenço tenha escrito:
no Ocidente não se levantou outro modelo cultural (e, mais além do cultural, um
modelo existencial) mais profundo e mais radical do que o modelo de Cristo. (…)
Creio que é Cristo histórico propriamente dito, a historicidade de Cristo
exemplar que continua funcionando como modelo, se há algum modelo. Se há algum
modelo – é esse[3]. Para
ele, Cristo é um momento (sem limite de tempo) em que a humanidade tomou forma
humana[4].
Neste Verão, a melhor leitura que recomendo para
férias são, precisamente, os quatro Evangelhos cheios de surpresas, mesmo para
quem os frequenta diariamente. É evidente que devem ser preferidas as edições
com boas introduções e notas elucidativas.
3. O Evangelho deste Domingo é dedicado à
insensatez de pensar que é, na acumulação insaciável de riqueza, que temos o nosso
futuro garantido[5]. Um
dos traços mais apelativos da pregação de Jesus é a lucidez com que soube
desmascarar o poder alienante e desumanizador da confiança no dinheiro, o deus
dos que se perderam de Deus. Jesus não podia ter sido mais radical: Ninguém
pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou apegar-se-á
a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.
Os fariseus, amigos do dinheiro, ouviam tudo isso
e zombavam dele[6].
Jesus considerou, como uma verdadeira loucura, a
vida dos latifundiários da Palestina, obcecados por armazenar as suas colheitas
em celeiros cada vez maiores.
Como destacou o Papa Francisco, no seu documento
programático, A Alegria do Evangelho, continuamos na economia que mata. Contrariar
esse caminho é o programa da intervenção dos cristãos na vida social, económica
e política, para não se traírem a si mesmos. Devem tornar-se cada vez mais
competentes, não para dominar, mas para servir os sem vez e os sem voz.
Recolhi, na Religión Digital,
uma banda desenhada: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu.
Enviou-me a evangelizar os pobres… Não seria melhor evangelizar antes os ricos,
para que não houvesse pobres?».
31 Julho 2022
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