1. A
celebração da Eucaristia nunca pode estar desligada do que vai acontecendo na
vida humana, de crentes e não crentes. A narrativa eucarística mais antiga que
conhecemos precede as formulações dos textos evangélicos. Encontramo-la numa
célebre Carta de S. Paulo aos Coríntios[1],
que manifesta a indignação acerca do que está a acontecer numa comunidade ainda
pouco cristã.
Eis a narrativa: «Quando vos reunis, não é a ceia
do Senhor que comeis, pois cada um se apressa a tomar a sua
própria ceia; enquanto um passa fome, outro fica embriagado. Porventura
não tendes casas para comer e beber? Ou desprezais a Igreja de Deus e quereis
envergonhar aqueles que nada têm? Que vos direi? Hei-de louvar-vos? Nisto, não
vos louvo. Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: o
Senhor Jesus na noite em que era entregue, tomou pão e,
tendo dado graças, partiu-o e disse: Isto é o meu corpo, que é para vós;
fazei isto em memória de mim. Do mesmo modo, depois da
ceia, tomou o cálice e disse: Este cálice é a nova Aliança no meu sangue;
fazei isto sempre que o beberdes, em memória de mim. Porque,
todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciais a
morte do Senhor, até que Ele venha. Todo aquele que comer este pão ou beber o
cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. (…) Quem come e bebe, sem distinguir o corpo do Senhor,
come e bebe a própria condenação. Por isso, meus irmãos, quando
vos reunirdes para comer, esperai uns pelos outros».
A Eucaristia nasceu no contexto de uma refeição
em que não pode haver indiferença em relação às gritantes desigualdades
sociais. Quem participa na Eucaristia deve participar em todos os movimentos
que não suportam ver uns à mesa e outros à porta[2]. A participação na Eucaristia implica a entrada
num processo de conversão permanente do olhar do coração para não nos conformarmos
com o mundo que temos.
2. Hoje, por exemplo, abrimos a celebração dominical
com a indignação do profeta Amós (760 a 750 a.C.): «Ouvi isto, vós que esmagais o pobre e fazeis
perecer os desvalidos da terra, dizendo, quando passará a
Lua-nova, para vendermos o nosso trigo, e o Sábado, para abrirmos os nossos
celeiros, diminuindo a medida, aumentando o preço e falseando a balança para
defraudar? Compraremos os necessitados por dinheiro e o pobre por
um par de sandálias. Venderemos até as cascas do nosso trigo[3]».
É importante transpor para os jogos da economia
capitalista – uma economia que mata, como diz o Papa Francisco – a
indignação clarividente deste pastor que nem profeta se considerava: Não sou
profeta nem discípulo de profeta. Foi o Senhor Deus que me tirou de detrás do
rebanho e me ordenou: vai profetizar contra Israel, o meu povo.
Também as comunidades cristãs devem denunciar todas
as formas de corrupção, de mentira, de egoísmo, ao concentrar os bens
destinados a todos, nas mãos de muito poucos.
Por seu lado, o texto do Evangelho, para esta celebração,
é muito parecido com a observação que Jesus já tinha feito, em situação
semelhante: os filhos das trevas são mais espertos para o mal do que os
filhos da luz para fazer o bem. Apresenta agora, a astúcia de um
administrador que caiu em desgraça e fica ameaçado de perder o lugar. Soube
encontrar um processo fraudulento para fazer amigos que o acolham quando for despedido.
Louvar essa astúcia não é aprová-la. Serve para exprimir o
salto radical que percorre o Novo Testamento: Não podeis servir a Deus e ao dinheiro[4].
Ao divinizar a ganância e as suas artes, o mundo das vítimas passa a ser normal.
3. Tinha previsto, para este terceiro
ponto, a santa Convocatória dos jovens economistas e empresários para abordar,
em Assis, a Economia de Francisco (22-24/09/2022). Fui, entretanto,
surpreendido com a viagem do Papa ao Cazaquistão e não resisti em seleccionar,
como aperitivo, o começo do seu discurso de abertura do VII Congresso de Líderes de Religiões Mundiais e
Tradicionais, a procura de uma comunhão universal.
«Permiti
que vos trate assim com estas palavras directas e familiares: irmãos e irmãs.
É deste modo que vos desejo saudar, Líderes religiosos e Autoridades, membros
do Corpo Diplomático e das Organizações Internacionais, Representantes de instituições
académicas e culturais, da sociedade civil e de várias organizações
não-governamentais, em nome daquela fraternidade que a todos nos une
enquanto filhos e filhas do mesmo Céu.
Frente
ao mistério do infinito que nos excede e atrai, as religiões lembram-nos que
somos criaturas. Não somos omnipotentes. Somos mulheres e homens a caminho da
mesma meta celeste. Assim, a dimensão de criatura que todos partilhamos estabelece
uma comunhão, uma real fraternidade. Recorda-nos que o sentido da vida não se pode
reduzir aos nossos interesses pessoais, mas inscreve-se na fraternidade que nos
caracteriza. Só crescemos com os outros e graças aos outros.
Amados
Líderes e Representantes das religiões mundiais e tradicionais, encontramo-nos
numa terra que, ao longo dos séculos, foi percorrida por grandes caravanas:
nestes lugares, incluindo a antiga rota da seda, entrelaçaram-se muitas
histórias, ideias, crenças e esperanças. Possa o Cazaquistão continuar a ser
uma terra de encontro entre quem está distante. Possa abrir
uma nova rota de encontro, centrada sobre as relações humanas:
no respeito, na honestidade do diálogo, no valor imprescindível de cada um, na
colaboração, construímos uma rota fraterna para caminhar juntos, rumo à paz.
Ontem
tomei, emprestada, a imagem da dombra; hoje, quero associar ao instrumento
musical uma voz, a do poeta mais famoso do país, o pai da literatura moderna, o
educador e compositor muitas vezes representado junto precisamente com a
dombra. Abai (1845-1904) – como é conhecido popularmente – deixou-nos escritos
impregnados de religiosidade, nos quais transparece a alma melhor deste povo:
uma sabedoria harmoniosa, que deseja a paz e procura-a, interrogando-se com
humildade, anelando por uma sabedoria digna do ser humano, nunca fechada em
visões restritas e apertadas, mas pronta a deixar-se inspirar pelas mais
variadas experiências.
Abai provoca-nos com uma interrogação
atemporal: Que beleza pode ter a vida, se não se vai em profundidade? (Poesia,
1898). (…) Precisamos de encontrar um sentido para as questões últimas,
cultivar a espiritualidade; temos necessidade – dizia Abai – de manter desperta
a alma e límpida a mente (Palavra 6)».
Neste
discurso, o Papa Francisco respondeu a quem pergunta sobre o motivo de uma
viagem tão dolorosa: Venho para amplificar o clamor de tantos que imploram a
paz, caminho essencial de desenvolvimento do nosso mundo globalizado.
Tem
toda a razão o Presidente cazaque, Kassym-Jomat Tokayev, ao afirmar, na sua
intervenção inaugural deste Congresso: Precisamos todos de um novo movimento
global para a paz.
18 Setembro 2022
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