1. O
conhecimento das sabedorias do passado é indispensável, mas não nos deve
escravizar. O que sempre assim foi não pode abolir a novidade do
presente e do futuro. Seria uma prisão e não uma luz. Este discernimento é
essencial. Aliás, o sempre assim foi nem sequer é verdade. Pode-se
também verificar que no começo não era assim. Não há culturas sem
passado, mas culturas com muito passado, pouco presente e isoladas não abrem para
um futuro imprevisível.
Da Bíblia, não consta apenas
a Lei de Moisés e os profetas. É muito forte a corrente da literatura sobre a Sabedoria.
Esta é um conhecimento baseado na
experiência acumulada ao longo da vida e enriquecida através de várias
gerações, que se fixou gradualmente em máximas, sentenças e provérbios breves e
ritmados, recheados de imagens e comparações.
Um
desses livros chama-se Ben-Sirá. O seu autor é Jesus Ben Sira, ou
Sirácide. Terá vivido em Jerusalém no início do século II a.C.
Esta
sabedoria religiosa não impede a liberdade nem a criatividade. O texto
seleccionado para a liturgia de hoje diz precisamente: «Se
quiseres, observarás os mandamentos; ser-lhes fiel será questão da tua boa
vontade. Ele pôs diante de ti o fogo e a água; estende a mão
para o que quiseres. Diante do ser humano estão a vida e a
morte; o que ele escolher, isso lhe será dado, pois é grande a
sabedoria do Senhor»[1].
Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, tenta
desvendar uma questão terrível: como foi possível cravar na cruz a própria
Sabedoria de Deus, Jesus Cristo? Para aceder a esse mistério não há sabedoria
humana que chegue. «A nós, porém, Deus o revelou por meio do Espírito. Pois o
Espírito tudo penetra, até as profundidades de Deus»[2].
Mateus escreve para os judeus convertidos ao
caminho do Nazareno. Perante a novidade do Evangelho de Jesus, muitos defendiam
que os textos do Antigo Testamento (AT), sobretudo os da Lei, deviam ser
abandonados. Mateus vai defender que a novidade cristã afirma-se não por essa
negação, mas por um caminho que selecciona e absorve o que havia de melhor no
AT, levando-o à plenitude. Nesse aspecto, abundam paradoxos do inverosímil. A
sua mensagem podia ser resumida assim: vós, judeus convertidos, não perdeis
nada do que é essencial e ganhais o que nem a Lei nem os profetas podiam dar.
No entanto, se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis
no Reino dos Céus[3].
2. O caminho da sabedoria é o oposto ao da
estupidez, da loucura e da vontade de dominar. René Girard (1923-2015) procurou
estudar as raízes e a história da violência, mediante a análise do chamado
desejo mimético, o desejo distorcido[4]. Sem a conversão do desejo não haverá paz.
O Papa Francisco é um peregrino contra a
violência. Conseguiu ir em peregrinação à República Democrática do Congo e ao
Sudão do Sul. Na crónica do Domingo passado, apresentei algumas passagens do
seu extraordinário discurso em Kinshasa, com o qual abriu as suas intervenções,
para que os cristãos não voltem a um passado de violência, mas se tornem
obreiros da paz. É a opção que tem futuro.
Não posso reproduzir o seu belo discurso no
Encontro com os Jovens, responsabilizando cada um. Ninguém, na história, te pode
substituir. Pergunta-te então: Para que servem estas minhas mãos? Para
construir ou destruir, dar ou reter, amar ou odiar? Vê! Podes apertar a mão e
fechá-la, torna-se um punho; ou podes abri-la e colocá-la à disposição de Deus
e dos outros. Aqui está a opção fundamental, desde os tempos antigos, desde
Abel que ofereceu com generosidade os frutos do seu trabalho, enquanto Caim
levantou a mão contra o irmão e o matou (cf. Gn 4, 8). Jovem
que sonhas com um futuro diferente, é das tuas mãos que nasce o amanhã; das
tuas mãos, pode vir a paz que falta a este país. Mas, concretamente, como
fazer? Quero sugerir-vos alguns ingredientes para construir o futuro.
Desenvolveu, então, um autêntico tratado sobre a missão dos
jovens, partindo dos dedos de uma mão, explicitando, a propósito de cada um, a
importância da oração, da comunidade, da honestidade, do perdão e do serviço.
A peregrinação ao Sudão do Sul foi um
acontecimento ecuménico. Com o Papa estava o Arcebispo de Cantuária, Justin
Welby, e o Pastor Iain Greenshields, moderador da
Assembleia Geral da Igreja da Escócia.
Na Oração Ecuménica, o
Papa salientou: Acabam
de se elevar, desta amada e atribulada terra para o Céu, tantas orações. Vozes
diferentes uniram-se, formando uma só voz. Juntos, como Povo santo de Deus, rezamos
por este povo ferido. Como cristãos, a primeira coisa – e a mais importante –
que somos chamados a fazer é rezar, para podermos trabalhar bem e termos a
força de caminhar. Rezar, trabalhar e caminhar:
três verbos sobre os quais precisamos de refletir.
No Sudão do Sul existem dois milhões de deslocados internos. O
grupo ecuménico foi visitá-los. Bergoglio destacou. Neste país, os jovens
crescem aprendendo com as histórias dos idosos e, se a narrativa dos últimos
anos aparece caraterizada pela violência, é possível – aliás, é necessário –
inaugurar, a partir de vós, uma nova narrativa do encontro, onde
aquilo que se sofreu não fique esquecido, mas seja habitado pela luz da
fraternidade; uma narrativa que, no centro, coloque não só a dimensão trágica
que vemos nos noticiários, mas também o desejo ardente da paz. Sede vós, jovens
de diferentes etnias, as primeiras páginas desta narrativa! Se os conflitos, as
violências e os ódios arrancaram das primeiras páginas de vida desta República
as memórias boas, sede vós a escrever de novo a sua história de paz!
3. No
regresso a Roma, o grupo ecuménico foi interrogado e todos deram o seu parecer
sobre o que se tinha passado. Destaco duas passagens do Papa Francisco. Uma
sobre a violência, o comércio de armas e o tribalismo em África e outra sobre a
guerra mundial.
O tema da violência é de todos os dias. Acabamos de o constatar
também aqui no Sudão do Sul. Mas custa ver como se provoca a violência. Um dos
pontos é a venda de armas. Creio que esta seja a peste do mundo, a maior
peste: o negócio, a venda de armas. A venda de armas não é só entre as
grandes potências, mas também ao nível desta pobre gente. Por trás disto há
interesses, sobretudo interesses económicos, visando explorar a terra, explorar
os minerais, explorar as riquezas.
Hoje, estamos na guerra. Mas não é a única guerra: é justo que o
diga! Há doze, treze anos, a Síria está em guerra; o Iémen está em guerra há
mais de dez anos; pensa no Mianmar, no pobre povo rohingya que vagueia pelo
mundo porque foi expulso da própria pátria. Guerra por todo o lado. Na América
Latina, quantos focos de guerra! Sim, há guerras mais importantes pelo rumor
que fazem, mas todo o mundo está em guerra, está autodestruindo-se.
Paremos a tempo! É que uma bomba pede outra maior e outra ainda maior... sempre
maior[5].
Não deixemos que a loucura da guerra vença a sabedoria da paz.
12 Fevereiro 2023
[1] Cf. Ben-Sirá 15, 15-20
[2] Cf. 1Cor 2, 6-10
[3] Cf. Mt, 5, 20-37
[4] Cf. René Girard, La Violence et
le Sacré, 1972; Des chooses cachées depuis la fondation
du monde, 1978; Le Bouc émissaire, 1982,
Paris: Grasset.
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