1. Para alguns meios de comunicação, a
religião em Portugal deixou de ser clandestina. Não são apenas os noticiários
sobre as JMJ, como veremos. Existem também estudos fundamentais, como o
coordenado por Alfredo Teixeira, sobre a Religião à luz das ciências
humanas[1].
A liturgia de hoje
abre com uma proclamação de Isaías que destaca o que deve ser a luz das
religiões: «Reparte
o teu pão com o faminto, dá pousada aos pobres sem abrigo, leva roupa ao que
não tem que vestir e não voltes as costas ao teu semelhante. Então,
a tua luz despontará como a aurora e as tuas feridas não tardarão a sarar»[2].
É assim que nos podemos tornar sal da terra,
como disse Jesus segundo o Evangelho de S. Mateus. Mas, se o sal perder
a força, não serve para nada senão para ser lançado fora e pisado. Vós sois
a luz do mundo. Não se acende uma lâmpada para a esconder, mas para a
colocar sobre o candelabro que ilumina toda a casa. É assim que deve brilhar a
vossa luz para que, vendo as vossas boas obras, os seres humanos glorifiquem
o vosso Pai que ninguém vê. São as vossas boas obras que falam da sua presença[3].
O conhecido teólogo russo, P. Evdokimov
(1901-1970), dizia que «os cristãos têm feito todo o possível para esterilizar
o Evangelho; parece que o submergiram num líquido neutralizante»[4].
As JMJ serão uma luz para a sociedade de todos os
continentes? São tantas as discussões sobre as questões económicas que levanta,
num país pobre e cheio de carências a muitos níveis da vida colectiva, que as
interrogações sobre o alcance cristão das JMJ têm sido muito pouco debatidas.
2. Qual terá sido o percurso sinodal da preparação
destas Jornadas? Deveriam inscrever-se no processo desencadeado, em todo o
mundo católico, por esta iniciativa do Papa Francisco para dar continuidade à
pergunta que vem do Vaticano II: Igreja, que dizes de ti mesma? Já
passou por várias etapas. Começou pelas paróquias, pelos movimentos, pelas
dioceses de todo o mundo. O seu intuito era de se interrogar a partir das
bases, para sentir o que elas pensavam e propõem para a Igreja. O resultado
desse questionamento foi entregue às dioceses e às Conferências Episcopais de
cada país, cujos resultados foram enviados ao Secretariado Geral do Sínodo.
Está em curso a etapa continental antes da Reunião Sinodal em Outubro 2023, em
Roma.
Dito isto, já foram apresentados os ganhos e
perdas económicos das JMJ nos diversos países que as acolheram. Não sei que
lições foram tiradas para medir o que era e não era possível realizar em
Portugal, mas seria continuar apenas no plano económico e político. Não pode
ser essa a perspectiva cristã das Jornadas Mundiais. Surge a pergunta: já terão
sido avaliados os frutos, à luz do Evangelho, colhidos nesse grande
acontecimento – a nível local e mundial – na reanimação das comunidades cristãs
segundo o caminho sinodal multifacetado?
Dirão, com verdade, que são interrogações de um
ignorante que não terá acompanhado suficientemente a preparação das JMJ desde o
início.
As minhas interrogações nada têm a ver com a
desconfiança e a hostilidade, manifestada por alguns bispos e cardeais, à
realização do Sínodo.
3. A tão aguardada peregrinação de paz e
reconciliação do Papa Francisco à República Democrática do Congo já aconteceu.
Também já me comovi com o seu extraordinário discurso no Encontro com as
Autoridades, a Sociedade civil e o Corpo Diplomático em Kinshasa.
Este discurso, várias vezes aplaudido, teve como
ritmo, não apenas a realidade e metáfora do diamante, mas também o seu
apelo: «tirem
as mãos da República Democrática do Congo, tirem as mãos da África! Basta com este sufocar a África: não
é uma mina para explorar, nem uma terra para saquear. Que a África seja
protagonista do seu destino! Que o mundo recorde os desastres perpetrados ao
longo dos séculos em prejuízo das populações locais, e não esqueça este país e
este continente. Que a África, sorriso e esperança do mundo, conte mais:
fale-se mais sobre ela, tenha mais peso e representatividade entre as Nações!».
Esta declaração vem a seguir a uma
evocação histórica: «é trágico que estes lugares, e o continente africano em
geral, padeçam ainda de várias formas de exploração. Existe aquele lema que vem
do inconsciente de muitas culturas e de muitas pessoas: África deve ser
explorada. Isto é terrível! De facto, depois da exploração política,
desencadeou-se um colonialismo económico igualmente escravizador».
Em consonância com a própria liturgia
dominical, o Papa refere-se a um célebre filósofo e teólogo africano: «Na
sociedade, muitas vezes o que obscurece a luz do bem são as trevas da injustiça
e da corrupção. Já há séculos se perguntava Santo Agostinho, nascido neste
continente: Se não se respeita a justiça, que são os Estados senão grandes
bandos de ladrões?[5]
Deus está do lado de quem tem fome e sede de justiça (cf. Mt 5,
6). É preciso não se cansar de promover, em cada sector, o direito e a equidade
contrastando a impunidade e a manipulação das leis e da informação».
Não larga, na sua intervenção, a
eficácia da simbólica do diamante abundante naquele país: «Um diamante sai da
terra genuíno, mas em estado bruto, carecendo de ser trabalhado. Assim, também
os diamantes mais preciosos da terra congolesa, que são os filhos desta nação,
devem poder usufruir de válidas oportunidades educativas, que lhes permitam
fazer frutificar plenamente os brilhantes talentos que possuem. A educação é
fundamental: é o caminho para o futuro, o caminho a percorrer para se alcançar
a plena liberdade deste país e do continente africano. É urgente investir nela
para preparar sociedades que só serão consolidadas se bem instruídas, só serão
autónomas se plenamente conscientes das suas potencialidades e capazes de as
desenvolver com responsabilidade e perseverança. Mas há muitas crianças que não
vão à escola: quantas, em vez de receberem uma digna instrução, são exploradas!
Muitas morrem, sujeitas a trabalhos escravizadores nas minas. Não se
poupem esforços para denunciar o flagelo do trabalho infantil e acabar com ele.
Quantas adolescentes são marginalizadas e violadas na sua dignidade! As
crianças, as adolescentes, os jovens são o presente da esperança, são a
esperança: não permitamos que seja extinta, mas cultivemo-la com paixão!»
A dimensão ecológica não foi
esquecida: «Dom da terra, o diamante faz apelo à salvaguarda da criação, à
protecção do meio ambiente. Situada no coração da África, a República
Democrática do Congo abriga um dos maiores pulmões verdes do mundo, que
deve ser preservado».
Este espantoso discurso não se refere
apenas à RDC e à África. É um alerta para todos os que, em vez de a ajudarem, a
exploram.
Francisco não pode
renunciar! Precisamos do sal e da luz do seu contínuo testemunho de alegria e
de indignação.
Fevereiro
2023
[1] Alfredo
Teixeira (coord.), Religião, Território e Identidade. Contextos
Metropolitanos, Imprensa Nacional, Colecção Estudos de Religião, 2022
[2] Cf. Is 58, 7-10
[3] Cf. Mt
5. 13-16
[4] Citado
por José A. Pagola, in Religión Digital, 30.01.2023. Cf. Paul Evdokimov,
El Amor Loco de Dios, Narcea Editora, 1990
[5] De
civitate Dei, IV, 4
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