1. Por mero acaso, depois de publicada a
crónica do passado Domingo, na qual, a declaração de João Paulo II, «A
Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às
mulheres, e esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os
fiéis da Igreja», deparei com um texto que eu tinha publicado em Agosto de
1994. A declaração papal era de Maio desse ano. Procurei responder-lhe sem a
nomear.
Com efeito, em 1994, escrevi: Não falta por
aí quem diga – não eu – que o
grande ministério das mulheres seria, ou ocupar a Igreja ou abandoná-la. Creio que há algo de novo a
fazer, tirando as conclusões certas da Lumen
Gentium, nº 10, onde se faz
do sacerdócio comum a todos os baptizados, o sacerdócio próprio da vida cristã
(Rm 12,1), mas também onde acaba por ser neutralizado, ao valorizar de forma
desequilibrada, o chamado "sacerdócio" ministerial, deixando na
sombra o principal. É a ambiguidade inerente a
fórmulas de compromisso.
Talvez haja nisto tudo uma grande confusão. No Novo Testamento (NT), o
vocabulário sacerdotal nunca é aplicado aos ministérios. E chegamos ao seguinte
paradoxo: aqueles a quem o NT chama sacerdotes, nós não chamamos sacerdotes;
aqueles a quem o NT não chama sacerdotes, chamamos nós sacerdotes.
No NT, o único
sacerdote é Jesus Cristo e todos os cristãos, na medida em que participam da
sua graça sacerdotal: Vós sois a raça eleita, o sacerdócio real, a nação
santa, o povo da sua particular propriedade, a fim de que proclameis as
excelências daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa (l Pd
2,9).
Os ministérios são serviços desse
sacerdócio. Só nesse
sentido indirecto podem ser chamados serviços sacerdotais, porque serviços
prestados aos sacerdotes, aos baptizados (Lumen Gentium, nº 28)[1].
Com o tempo, logo a partir do séc. II, voltou-se a
utilizar, para os ministérios, o
vocabulário sacerdotal do judaísmo e do paganismo que o NT procurou evitar.
Por isso, quando agora se diz que as mulheres não podem receber a
ordenação sacerdotal, apetece-me
dizer: ainda bem! A forma que actualmente reveste já estava a ser
questionada na sua atribuição aos homens!
Sacerdote é Jesus Cristo que deu e dá a sua
vida por todos. Sacerdote é o
povo fiel que, pelo baptismo,
entra nessa corrente vital, nesse dom.
O que urge saber é o seguinte: segundo as
necessidades e as possibilidades actuais, quais serão os ministérios de homens ou de mulheres mais aptos
para alimentar a vida cristã como dom permanente pela salvação do mundo?
Tenho para mim que, o facto de se estar a
impedir as mulheres de serem ordenadas sacerdotes, vai obrigar a repensar tudo,
tendo em conta não só o passado, mas também o presente e os séculos futuros.
Não me parece
muito interessante reproduzir, em feminino, modelos de animação e presidência
das comunidades para a missão, que já se encontram fora de
prazo para os masculinos[2].
2. Entretanto,
a teologia feminista, de várias tendências, foi ganhando terreno a ponto de ter
conseguido direitos de cidadania, na própria Comissão Pontifícia Bíblica, A
Interpretação da Bíblia na Igreja, com o título Abordagem feminista[3].
O Papa Francisco, a 3 de Abril
de 2013, na segunda Audiência geral do seu pontificado, destaca que as primeiras testemunhas da ressurreição são as
mulheres, sem tirar a conclusão
que se impunha: são elas as apóstolas dos apóstolos. A 7 de Fevereiro de
2015, dirigindo-se ao Plenário do Dicastério da Cultura, sobre As culturas
femininas: igualdade e diferença, o papa declara que é tempo de as mulheres
sentirem que não são hóspedes, mas plenamente participantes das várias
esferas da vida social e eclesial. Adverte que é um desafio que não pode continuar
a ser adiado. É urgente oferecer espaços às mulheres na vida da Igreja,
favorecendo uma presença mais ampla e incisiva, nas comunidades com maior
envolvimento das mulheres nas responsabilidades pastorais.
Entre os espaços de actuação das mulheres, não esqueceu o seu papel na
Teologia. Pediu à Comissão Teológica Internacional para incluir mais mulheres
entre os seus membros,
porque pensam diferente dos homens e, por isso, também podem fazer uma teologia
diferente.
Em Novembro de 2022, o Papa deu uma entrevista à America – The Jesuit
Review, publicada no dia 28 desse mês, em que reafirma claramente a sua
oposição à ordenação das mulheres pela Igreja Católica: a mulher não
pode entrar nos ministérios porque o princípio petrino não o permite[4].
Ao dizer isto, Francisco tinha presente a declaração de João Paulo II e receia
provocar uma cisão na Igreja.
Esse receio não o impediu de nomear 17 mulheres muito
qualificadas, para várias funções, na reforma da Cúria romana, como já disse em
crónica anterior. No entanto, a freira Nathalie Becquart, especialista em
eclesiologia e nomeada subsecretária-geral do Sínodo 2023-2024, disse: não
basta que as mulheres ocupem posições de primeira linha no Vaticano. É o
próprio mundo em crise que precisa realmente de liderança feminina.
3. A Igreja existe para ser testemunha de Cristo, para
evangelizar. Para isso, deve começar pela evangelização de si mesma. Se a
Igreja não se evangelizar, continuará a ser uma peça de museu. Ao contrário, o
que a actualiza continuamente é a evangelização de si própria. Tem necessidade
de ouvir sem cessar aquilo em que deve acreditar, as razões da sua esperança e
o mandamento novo do amor. A Igreja, que é Povo de Deus imerso no mundo, e não
raro tentado pelos ídolos – muitos – deve ouvir sempre o anúncio das obras de
Deus. Em síntese, significa que ela tem sempre necessidade de ser evangelizada,
deve seguir o Evangelho, rezar e sentir a força do Espírito que transforma o
coração[5].
Para a Igreja não se tornar uma peça de museu, tem de
cultivar uma teologia do desassossego, isto é, do provisório sempre em
transição, nunca satisfeita com o que já foi pensado, ao longo dos séculos[6].
A
Igreja, a precisar sempre de reforma, nasceu e renascerá da
intranquilidade dos debates. É preciso libertar a palavra e encorajar o
pensamento. É preciso a escuta, mas também a ousadia de se dizer claramente o
que se pensa[7].
Francisco é o advogado, desde a primeira hora, da participação alargada
das mulheres na sociedade e na pastoral da Igreja. Vive, no entanto, limitado
pela citada declaração exagerada de João Paulo II que tentou fixar, para
sempre, o futuro da Igreja.
02 Abril 2023
[1] Sobre esta questão o estudo exemplar continua a ser o de J.M.R.Tillard, O.P., La "qualité
sacerdotale" du ministêre chrétien, NRT 5 (1973)
481·514).
[2] Frei Bento Domingues, O.P., Os ministérios das
Mulheres. Algumas interrogações, In BÍBLICA (série científica), II (1994) 3,
167-177
[3] Comissão
Pontifícia Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja, 1993, pp. 77-80
[4] O princípio petrino vem do
papel de São Pedro, ou do ensino da cátedra, garantindo a sua unidade externa
através do primado.
[5] Cf. EN,
15, Audiência geral do dia 22 Março 2023, www.vatican.va
[6] Cf.
Fernando Pessoa, Livro do desassossego, p. 19, da edição original da
Assírio & Alvim
[7] Cf. Domenico
Marrone, In Settimana News,
Publicado em 21.03.2023, na Pastoral da Cultura
Sem comentários:
Enviar um comentário