1. Para
perceber o contexto da minha intervenção sobre o Papa Francisco e o lugar da
mulher na Igreja[1],
recomendo a leitura de Um apelo urgente à ação no Dia Internacional das
Mulheres, feito por António Guterres, secretário geral das Nações Unidas[2],
assim como os 10 pensamentos do Papa Francisco para o mesmo dia[3].
Não me parece muito
produtivo centrar o debate sobre a ordenação sacerdotal das mulheres, pois o
que deve ser discutido é a própria sacralização dos ministérios (serviços) na
Igreja.
Como mostrou Frei José
Nunes, O.P., a história da Igreja dá conta de uma evolução na compreensão e
vivência dos ministérios, cuja chave de interpretação é a de um princípio de clericalização
ou sacerdotalização dos mesmos, perdendo-se progressivamente a
consciência duma evocação ministerial de toda a comunidade, evidente na Igreja
das origens.
Este fenómeno é paralelo a
uma autonomização dos ministros ordenados e a um processo de interpretação dos
ministros e ministérios da Igreja, a nível teórico e prático, em categorias
sacerdotais provenientes do Antigo Testamento[4].
Não foi há séculos que o
Papa João Paulo II (1994), no exercício das suas funções, observou que, «embora
a doutrina sobre a ordenação sacerdotal, que deve reservar-se somente aos
homens, se mantenha na Tradição constante e universal da Igreja e seja
firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, todavia
actualmente em diversos lugares continua-se a retê-la como discutível, ou
atribui-se um valor meramente disciplinar à decisão da Igreja de não admitir as
mulheres à ordenação sacerdotal».
E vem a declaração: «A
Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às
mulheres, e esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os
fiéis da Igreja»[5].
Depois, o Cardeal Ratzinger respondeu à dúvida sobre a doutrina da referida
Carta Apostólica: «esta doutrina exige um assentimento definitivo». A
Congregação para a Doutrina da Fé continuou a sua reflexão que me parece pouco
clarificadora.
No caminho sinodal,
continuaram a surgir várias reacções. O teólogo espanhol, José I. González Faus
(17. 02. 2023), enviou uma carta ao Bispo de Roma, tentando mostrar que não têm
razão de ser as hesitações do Papa Francisco a propósito da legitimidade da ordenação
das mulheres.
Temos o testemunho evangélico de que, desde o
início do ministério público de Jesus, havia um grupo de mulheres, libertas de
todos os demónios, que não só financiou espontaneamente o seu projecto, como O
seguiram por pura sedução até ao fim[6]. Isto é, mesmo durante o tempo que os discípulos
homens O abandonaram, desapontados com o que tinha acontecido, elas
mantiveram-se firmes e nem aceitaram que a morte fosse o fim.
Preparam tudo para que não faltassem os rituais
fúnebres do costume[7], embora, na interpretação de Jesus, uma mulher,
a quem o Evangelho de João chama Maria, já tinha antecipado de forma
espectacular, derramando sobre Ele um caríssimo perfume de nardo puro[8].
2. Se, no Cristianismo, se considerou sempre o
acontecimento da Ressurreição como algo decisivo, o que aconteceu, de facto,
pode-se dizer que foi sobretudo um acontecimento acolhido pelas mulheres que O
tinham seguido sempre e que nem na morte O abandonaram.
Na verdade, segundo a variedade das narrativas
pascais, são elas as escolhidas por Cristo para reevangelizar os
discípulos, os apóstolos que, perante a morte do Mestre, tinham dispersado. Nesse
movimento fundador, faz das mulheres as apóstolas dos apóstolos.
Quando se repete que Jesus não escolheu nenhuma
mulher para o grupo dos doze, não se pode esquecer esta ordenação
realizada pelo Ressuscitado. Admira-me que não se queira ver o que está
explicitamente apresentado nos quatro Evangelhos, como acontecimento decisivo,
como o grande marco de um novo começo.
Alguns teólogos parecem-me paralisados pela referida
declaração da Ordinatio Sacerdotalis, em vez de destacarem a novidade do Evangelho da
Ressurreição. A fé cristã não é um calmante da inteligência e dos afectos, mas
um excitante: Quantum potes, tantum aude, atreve-te a atingir
o máximo que puderes[9].
O próprio Papa Francisco, nos 10 pensamentos
acima referidos, reconhece a importância das mulheres na Ressurreição, dizendo
que «os apóstolos e os discípulos têm dificuldade de
acreditar. As mulheres não». Esta observação não consegue, no entanto, restituir
a força teológica que as narrativas da Ressurreição deram àquelas testemunhas
femininas.
3. Comecei por evocar o apelo de A. Guterres.
Volto a esse apelo: «Em todo o mundo, o progresso dos direitos das
mulheres está a desaparecer diante dos nossos olhos. Segundo as previsões mais
recentes, ao ritmo atual, serão necessários mais 300 anos para alcançar a plena
igualdade de género.
«Atualmente, a sucessão de várias crises, desde a Guerra
na Ucrânia à emergência climática, afeta em primeiro lugar e de forma mais dura
as mulheres e as meninas. E como resultado do retrocesso mundial da democracia,
os direitos das mulheres sobre os seus corpos e sobre a autonomia das suas
vidas estão a ser questionados e negados.
«Duas
estatísticas evidenciam claramente o nosso fracasso: a cada dez minutos, uma
mulher ou menina é assassinada por um membro da família ou por um parceiro
íntimo.
«E a
cada dois minutos, uma mulher morre durante a gravidez ou o parto. A maioria
destas mortes é perfeitamente evitável.
«Neste Dia Internacional das Mulheres, temos de nos
comprometer a fazer melhor. Precisamos reverter estas tendências alarmantes e
apoiar as vidas e os direitos das mulheres e das meninas, em todos os lugares.
«Esta é uma das minhas principais prioridades e um pilar
fundamental do trabalho das Nações Unidas em todo o mundo».
Quando a teologia não tem em conta esta realidade gritante,
é porque se trata de uma teologia alienada e alienante, paralisada e
paralisante. O Papa Francisco não esperou por ver resolvida a referida
declaração de João Paulo II, para nomear 17 mulheres muito qualificadas, para
várias funções na reforma da Cúria romana.
Bergoglio não esqueceu, no entanto, um dos textos mais
importantes, do século XX, sobre a evangelização, Evangelii nuntiandi
(1975), do Papa Paulo VI. Confessa que esse texto conserva toda a sua frescura,
como se fosse escrito ontem. A reforma da Cúria só tem sentido se estiver ao
serviço de uma Igreja que se evangeliza para evangelizar.
26 Março 2023
[1] ISTA,
01. 04. 2023, às 16.30h, no Convento de S. Domingos
[2] Público,
08. 03. 2023
[3] Cf. https://www.imissio.net>papa-francisco
[4] José
Nunes, O.P., Pequenas Comunidades Cristãs, UCP e FEAA, Porto, 1991, cf. pp.
277-288
[5] Cf. Carta
Apostólica Ordinatio Sacerdotalis, João Paulo II, 1994
[6] Lc 8, 1-3;
[7] Mt. 28, 1-8; Mc 16, 1-4; Lc 24,
1-10; Jo 20, 1-2
[8] Mt 26,
6-13; Mc 14, 3-9; Jo 12, 1-8
[9]
Sequência da Eucaristia da festa do Corpo de Deus, de Tomás de Aquino
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