1. Este
ano, 2023, celebram-se os 60 anos da publicação da Pacem in Terris de
João XXIII e da sua morte, menos de dois meses depois da publicação desta
encíclica[1].
Foi um Papa que liderou a Igreja Católica, por pouco mais de quatro anos
(1958-1963), com muito humor e muita bondade. Quando lhe perguntaram, quantas
pessoas trabalhavam no Vaticano, respondeu de imediato: mais ou menos metade.
O humor e a bondade conviviam com gestos muito firmes. Mudou o rumo da Igreja de
uma forma absolutamente inesperada, que podemos chamar profética, ao convocar o
Concílio Ecuménico Vaticano II (1962-1965), para abrir a Igreja aos desafios do
mundo contemporâneo.
De facto, não se pode encaixar a
figura deste Papa nos esquemas rígidos da linguagem político-ideológica,
manifestos na antinomia conservador-progressista.
Como escreveu Manuel Pinto, o que distingue este Papa, ao fim e o
cabo, é o centramento na figura de Jesus e naquilo que o actual Papa veio a
designar A Alegria do Evangelho. Isso vê-se nos processos de auscultação,
aceitação do debate e até da polémica, participação, adoção da misericórdia
para com aquilo que a Igreja considera erros, em vez da via da condenação. Vê-se
também na visão, nos gestos e modos de estar, a capacidade de rutura com modos
obsoletos e rotinas vazias e anquilosadas[2].
A Encíclica Pacem in Terris, não foi
apenas inesperada, foi publicada no momento exacto em que estava eminente um
confronto bélico devastador. Esta Encíclica teve como destinatários não só os
habituais nestes documentos, mas também os imprevisíveis: «aos veneráveis
irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos e Bispos e outros Ordinários do Lugar
em paz e comunhão com a Sé Apostólica, ao clero e fiéis de todo o orbe, bem
como a todas as pessoas de boa vontade». Tem como tema a paz de todos
os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade.
Fiquei muito contente que
Manuel Pinto evocasse essa data tão importante na vida da Igreja do século XX e
uma inspiração para o século XXI, mediante a eleição de Giorgio Bergoglio.
2. Neste
Domingo, somos confrontados com dois textos bíblicos: um do Antigo Testamento, Oseias,
e outro do Novo, S. Mateus. No primeiro, Deus diz algo de espantoso: Eu
quero a misericórdia e não sacrifícios, o conhecimento de Deus mais do que os
holocaustos[3].
Jesus de Nazaré vai assumir
essa declaração de uma forma escandalosa: Viu um homem chamado Mateus, sentado no
posto de cobrança de impostos, e disse-lhe: segue-me! Ele levantou-se e
seguiu-O. Encontrando-se Jesus à mesa em sua casa, numerosos
cobradores de impostos e outros classificados como pecadores vieram e
sentaram-se com Ele e seus discípulos. Os fariseus, vendo isto,
diziam aos discípulos: porque é que o vosso Mestre come com os cobradores de
impostos e os pecadores? Jesus ouviu-os e respondeu-lhes: não
são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ide aprender o que significa prefiro a misericórdia ao
sacrifício, porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores[4].
Neste momento, vivemos num mundo afectado por
várias guerras. A única tarefa que os cristãos devem incentivar é a procura da
paz baseada no diálogo que envolve um processo diplomático, sempre demorado,
mas incomparavelmente mais rápido e eficaz do que a continuação dos conflitos e
da guerra.
A guerra não resolve nenhum problema. Semeia destruição
e reforça ódios ancestrais. Esse caminho pede sacrifícios, não só aos soldados,
mas também às populações de um lado e do outro. Só podem estar interessados na
guerra os que cultivam o nacionalismo estúpido e os negócios da indústria
bélica. Os comerciantes de armas e da sua sofisticação, cada vez mais
devastadora, precisam das guerras. Precisam de vender armas a todos os
envolvidos no conflito.
Fora do diálogo não há saída. Hans Küng formulou
esta questão em termos muito repetidos e pouco praticados: Não haverá paz entre
as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem
diálogo entre as religiões. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem uma
atitude ética, um ethos global, sem um ethos mundial. O Papa Francisco podia
subscrever esta declaração.
Sei que muitos continuarão a chamar simplistas a
estas atitudes. No entanto, parece-me que devemos continuar a rezar como fez
Sophia de Mello Breyner Andresen, durante a nossa guerra colonial: Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos/ A paz sem vencedor e sem vencidos/ Que
o tempo que nos deste seja um novo/ Recomeço de esperança e de justiça/ Dai-nos
Senhor a paz que vos pedimos// A paz sem vencedor e sem vencidos//
Erguei o nosso ser à transparência/ Para podermos ler melhor a vida/ Para
entendermos vosso mandamento/ Para que venha a nós o vosso reino/ Dai-nos
Senhor a paz que vos pedimos// A paz sem vencedor e sem vencidos// Fazei Senhor
que a paz seja de todos/ Dai-nos a paz que nasce da verdade/ Dai-nos a paz que
nasce da justiça/ Dai-nos a paz chamada liberdade/ Dai-nos Senhor a paz que vos
pedimos// A paz sem vencedor e sem vencidos[5].
Como sempre, o que pedimos a Deus é
também para despertar a nossa responsabilidade pelas guerras e suas causas e,
sobretudo, pela cultura da paz e por uma civilização do amor. É preciso fazer
morrer o comércio das armas e a lógica absurda da centralidade da ganância, do
dinheiro. Sobre esta questão já escrevi várias vezes e não vale a pena
repetir-me[6].
3. Na passada quinta-feira, celebrámos a festa do Corpo de Deus, uma festa
medieval da Eucaristia. Na segunda leitura, S. Paulo é bem expressivo: Irmãos,
o cálice de
bênção, que abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo? O pão que
partimos não é comunhão com o corpo de Cristo? Uma vez que
há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, porque todos
participamos desse único pão[7].
S. João fez, a este propósito, afirmações que, depois
de as ouvirem, muitos dos seus
discípulos disseram: que palavras insuportáveis! Quem pode entender isto? A partir daí, muitos dos seus discípulos voltaram para trás e já não
andavam com Ele. Então, Jesus disse aos Doze: também vós
quereis ir embora? Respondeu-lhe Simão Pedro: a quem iremos
nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna! Por isso nós acreditamos
e sabemos que Tu é que és o Santo de Deus[8].
Como canta Tomás de Aquino, nesta celebração do
Corpo de Deus, a fé é um atrevimento, atreve-te quanto puderes!
11 Junho 2023
[1]11 de Abril
(Pacem in Terris), 03 de Junho 1963 (morte de João XXIII)
[2] Cf. Manuel
Pinto, 7Margens, 02.06.2023
[3] Cf. Os
6, 3-6
[4] Cf. Mt
9, 9-13. Os cobradores de impostos eram considerados traidores porque colaboravam
com o Império Romano
[5] In Dual
[6] Entre
vários outros, As religiões e a cultura da paz, com Prefácio de Jorge
Sampaio, Editora Mário Figueirinhas; crónica de 09.12.2018 do Público, Desistir
da Paz?
[7] 1Cor 10,
16-17
[8] Cf. Jo
6, 51-69
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