1. Foi-me
pedido um Prefácio para a edição portuguesa do livro Jesus da gente. Uma
leitura bíblica para os nossos dias do Pastor Henrique Vieira. Comecei a
leitura pelo excelente Prefácio que lhe dedicou Leonardo Boff, uma das grandes
figuras da teologia da libertação e uma verdadeira chave para quem não conheça
a original aventura, espiritual e cultural, do pastor que fundou a Igreja
Baptista do Caminho. É uma personalidade multifacetada de professor, teólogo,
poeta, escritor, actor, palhaço e activista social na área dos direitos humanos
e, sobretudo na defesa dos mais pobres.
Pelas suas intervenções na
televisão, na internet e nas muitas lives realizadas durante a pandemia,
tornou-se um líder espiritual apreciado particularmente pelos jovens.
Perguntei-me várias vezes se
teria sentido prefaciar a edição deste precioso livro em Portugal. Se é verdade
que são muitas as paisagens sociais e religiosas dos muitos mundos do Brasil,
também não se pode esquecer que a religião, na sociedade portuguesa, mudou e
continua a mudar numa diversidade cada vez maior. O Prof. Alfredo Teixeira, com
outros sociólogos, continua a trabalhar o mapa dessa crescente e significativa
diversidade e suas origens.
De qualquer modo, aqui e
agora, o que importa é tentar conhecer o itinerário desta obra do pastor
Henrique Vieira, obra inseparável do seu autor. Não será de admirar que recorra
constantemente a esse texto simultaneamente analítico e confessional.
Começo por perguntar: donde
vem o título e o tema deste livro, Jesus da gente? No capítulo 20, o
próprio autor explica-se numa declaração muito pessoal: «Na pessoa de Jesus,
sinto-me amado, perdoado, reconciliado e abraçado por Deus. Ele é a minha fé, o
meu amor e o sentido da minha vida. (…) Bebi na fonte da teologia da libertação
latino-americana e inspirei-me muito na vida do pastor baptista Martin Luther
King Jr. Como fruto e parte dessa tradição, reconheço na Bíblia o compromisso
de Deus com os oprimidos da história e a esperança da eternidade e da plena
libertação da humanidade. Creio que o engajamento político em prol da justiça é
devoção, adoração e obediência a Deus».
Henrique Vieira lamenta «profundamente ver o
crescimento de uma extrema-direita no Brasil e no mundo, que se apropria da
Bíblia e da figura de Jesus para defender posturas intolerantes, bélicas,
alimentadas pelo ódio. Ao mesmo tempo, sei que isso não é uma novidade. Quantas
vezes o nome de Jesus já foi utilizado para justificar verdadeiras crueldades e
atrocidades».
Este livro parte de um
escândalo que o próprio autor explica: «Em 2020, fui convidado pela Estação
Primeira de Mangueira a desfilar na Sapucaí. A escola de samba cantava o Jesus
da gente, rosto negro, sangue índio e corpo de mulher. Eu prontamente
aceitei o convite e vivi um dos momentos mais bonitos e especiais da minha
vida! Mas, para muitas pessoas, cometi uma heresia. Muitos viram a minha
passagem pelo Sambódromo como uma atitude completamente errada para um cristão
e um pastor. Mas eu fui com alegria, gratidão e consciência tranquila. Para
mim, a Mangueira estava contando a história do Jesus dos Evangelhos em que eu
acredito, tantas vezes esquecida e negligenciada pela própria Igreja e pelos
cristãos».
2. Para
este pastor, a Bíblia não é apenas o livro central da cultura ocidental ou uma
das grandes obras da literatura mundial. Ele trabalha na libertação da Bíblia
para a restituir aos pobres como ele próprio confessa: «a minha escrita
evidentemente nasce de pesquisas, leituras, reflexões e, sobretudo, de uma
paixão profunda do Evangelho e da fé em Jesus como Deus entre nós, manifestando
o seu amor pela humanidade, reconciliando-a com a justiça e defendendo a causa dos
pobres e dos oprimidos. A minha escrita é atravessada pela minha experiência de
Deus, cultivada desde a infância no seio da minha família, na minha comunidade
de fé (a Igreja Baptista do Caminho) e nos movimentos dos quais participo».
O que ele procura é o
encontro permanente com Jesus de Nazaré porque é, nele, que descortina o
sentido de Deus. Mas esta confissão não se fica numa espiritualidade intimista.
Citando um bispo católico, D. Pedro Casaldaliga, nesse Jesus, Deus fez-se carne
e classe, isto é, Deus assumiu por amor a experiência da humanidade e, nela,
fez da experiência dos oprimidos a base da sua revelação.
O Pastor Henrique Vieira não
é um coleccionador de citações bíblicas a propósito de tudo e de nada. Para
ele, a questão fundamental não é o que está escrito na Bíblia, mas como se
lê, como se interpreta. Não recorre ao argumento: está aqui
escrito na Bíblia. Com a Bíblia pode-se provar o mesmo e o seu contrário. É
a biblioteca de um povo, com muitos estilos, com vários géneros literários, de
muitas épocas, com muitos autores submersos no seu mundo que falam a partir do
seu lugar social. No limite, o literalismo é uma violência da tradição e
do contexto histórico da Bíblia. Foi no conflito dos dramas humanos e nas
tramas sociais que a Revelação de Deus ocorreu.
Dito da forma mais breve:
«não basta saber o que está escrito, é preciso reconhecer e identificar a forma
como a leitura é feita, qual é a abordagem e o processo interpretativo».
Muitas vezes, em nome de uma
suposta fidelidade ao texto bíblico (identificada como fidelidade a Deus), até
a violência é justificada. Em nome da lei religiosa mata-se o espírito. Em nome
da letra esfria-se a sensibilidade e asfixiam-se possibilidades. «Nenhum ser
humano pode ser normatizado por um texto. Somos vulcões de possibilidades e
potencialidades, raridades impressas e construídas na história e atravessadas
por desejos. A vida é oceânica demais para caber numa doutrina petrificada no
tempo».
Um livro não vale pelo seu
Prefácio, neste caso, dois. Cumpriria o meu objectivo se provocasse o desejo de
ler e estudar este livro na íntegra.
Não se fiem nas citações.
Nenhuma delas diz o que é este livro. Os recortes que fiz foi só para chamar a
atenção para a sua importância.
Que esta leitura inspire
vontade de ler a Bíblia e aprender mais sobre a luta do povo, o compromisso de
Deus para com os oprimidos, a revolução causada pelo Filho de Deus, Jesus
Cristo da periferia de Nazaré! Não é o Jesus do dogma, mas o do amor.
É o Jesus das esquinas, das
praças, das rodas de rima e de samba, das filas dos hospitais. É Jesus
assumindo a beleza, o risco, a tristeza e a alegria da vida. É Jesus com a
gente! Jesus da gente!
3. Na
liturgia católica deste Domingo, celebra-se a festa da Santíssima Trindade que
não é, propriamente, uma designação bíblica. No entanto, sintetiza várias
passagens do Novo Testamento. Na 2ª Carta aos Coríntios, S. Paulo despede-se
dos seus leitores com uma expressão que é usada em todas as celebrações da
Eucaristia: Irmãos,
sede alegres, tendei para a perfeição, confortai-vos uns aos outros, tende um
mesmo sentir, vivei em paz e o Deus do amor e da paz estará convosco. A graça
do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam
com todos vós!
Tinha razão Leonardo Boff, quando chamou à
Santíssima Trindade a melhor comunidade. O nosso Deus não é um deus sem gente!
04 Junho 2023
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