domingo, 2 de julho de 2023

O PARADOXO DO EVANGELHO QUEM PERDE GANHA, QUEM GANHA PERDE Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Na liturgia deste Domingo, somos confrontados com um sonho paradoxal. Este sonho está presente nas quatro versões do Evangelho. Dependem todas da versão de S. Marcos: quem perde ganha, quem ganha perde. Este é o próprio sonho do Evangelho, um sonho que já tem dois mil anos. Se ainda não foi realizado, não se deve concluir que é irrealizável. No dia em que a Igreja aceitasse como irrealizável este sonho abandonaria Jesus Cristo. A história do cristianismo é a história das fidelidades e infidelidades a esse sonho como realidade da nossa história humana.

Vou recorrer ao conhecido sonho poético de Rabindranath Tagore (1861-1941), prémio Nobel da Literatura, em 1913: Adormeci e sonhei que a vida era alegria; despertei e vi que a vida era serviço; servi e vi que o serviço era a alegria.

O pensamento dominante deste poeta é cristão, mas ele inscreve-se numa corrente religiosa indiana do começo do século XIX, criada pelo bengali Raja Rammohun Ray. Era a síntese dos aspectos que considerava positivos do hinduísmo, budismo, judaísmo, cristianismo e islão, acrescentando os princípios da Revolução Francesa de igualdade, liberdade e fraternidade. Foi o pai de Tagore que continuou esta corrente religiosa.

Entre outros aspectos, lutavam contra a queima das viúvas vivas na pira funerária do esposo, pela igualdade dos seres humanos e recusavam o sistema de castas, lutavam pela educação da mulher em igualdade com o homem e eliminavam todo o tipo de superstições e idolatrias.

Nessa corrente defendia-se o monoteísmo e a ideia de que Deus excede todas as divisões confessionais, identificada com a vida. Nessa perspectiva actuante, não há carma, transmigração, quietismo, pessimismo, rejeição do mundo ou dos sentidos. Há, pelo contrário, a percepção de que a natureza é a revelação de Deus e a alegria de O encontrar no sol e na chuva.

Reconhece a dignidade e o valor do trabalho e a libertação interior alcançada apenas pelo caminho de descer até onde Deus habita entre os mais pobres, os mais miseráveis, os excluídos, como apelo a não aceitarmos o mundo dessas desigualdades gritantes e injustificáveis. Esse é o serviço da verdadeira alegria. O nosso trabalho verdadeiramente humano cristão deve concretizar-se numa nova organização social, económica e política, o verdadeiro serviço da alegria para todos.

2. O presidente do Brasil, Lula da Silva, foi a Paris participar num encontro organizado pelo governo francês para discutir um novo pacto financeiro global.

Começou o seu discurso, dizendo que, em 2025, a COP-30 será realizada num país amazónico. Ele espera que todas as pessoas que prezam a Amazónia e dizem que é o pulmão do mundo participem na COP-30 no Estado do Pará, para que tenham noção do que é realmente a Amazónia. Pouca gente conhece.

A Amazónia no Brasil, com 5 milhões de quilómetros quadrados, não é a única. Existe a equatoriana, a colombiana, a peruana, a boliviana, a venezuelana, a da Guiana, a do Suriname e a francesa, da Guiana Francesa.

No dia 12 de Agosto, no Estado do Pará, será realizado um encontro com todos os presidentes da América do Sul, que compõem toda a região da Amazónia, para elaborarem uma proposta a levar à COP-28, nos Emirados Árabes, no final deste ano.

No entanto, Lula da Silva declarou que não ia falar apenas da Amazónia. Com a questão climática é necessário colocar a questão da desigualdade mundial. Não é possível que, numa reunião entre presidentes de países importantes, a palavra desigualdade não apareça. A desigualdade salarial, a desigualdade de etnia, a desigualdade de género, a desigualdade na educação, a desigualdade na saúde.

  Somos um mundo cada vez mais desigual e a riqueza está, cada vez mais, concentrada na mão de menos gente, e a pobreza concentrada na mão de mais gente. Se não discutirmos essa questão da desigualdade, se não a colocarmos com tanta prioridade como a questão climática, podemos ter um clima muito bom e o povo continuar a morrer de fome em vários países do mundo.

3. Dir-se-á que esta é uma questão reservada ao mundo político como se o Evangelho e as religiões não tivessem uma dimensão política. Dedicar a vida ao serviço da igualdade entre os seres humanos é uma questão tão profundamente humana que também se pode inscrever na suprema questão político-religiosa.

O Papa recebeu cerca de 200 artistas de todo o mundo, no passado dia 23, no esplendor da Capela Sistina. Foi uma iniciativa no âmbito dos 50 anos da inauguração da colecção de arte moderna dos museus do Vaticano. Depois de mostrar o significado que aquela beleza tem para a Igreja e para o mundo, não quis terminar o encontro sem pedir que não se esquecessem «dos pobres, que são os prediletos de Cristo, em todas as formas de ser pobre hoje. Também os pobres precisam da arte e da beleza. Alguns experimentam formas muito árduas de privação da vida; por isso, têm mais necessidade dela. Em geral, não têm voz para se fazerem ouvir. Vós podeis tornar-vos intérpretes do seu clamor silencioso».

Entre os textos do Novo Testamento, não se pode esquecer a voz de S. Tiago, a voz da lei perfeita da liberdade, formulada nas questões mais prementes dessa época: a religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste em assistir os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e em guardar-se livre da corrupção do mundo.

É normal que as lideranças da Igreja católica tenham procurado, ao longo dos séculos, ser fiéis às suas formulações consideradas mais correctas, mais ortodoxas, como se fosse essa a principal tarefa da Igreja, a chamada fidelidade ao depósito da fé. Em nome do depósito da fé surgiu a expressão, sempre assim foi, sempre assim será. Essa tradição é uma traição, pois, a verdadeira tradição é a da inovação. Não se pode confundir a fé cristã com uma pura ortodoxia, esquecendo que essa tem de se realizar numa real ortopraxia.  

S. Tiago foi muito claro acerca desta questão: «Se alguém disser que tem fé, mas não tem obras, que lhe aproveitará isso? Se um irmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes faltar o necessário para a subsistência de cada dia e alguém de entre vós lhes disser: ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos e não lhes der o necessário para a manutenção, que proveito haverá nisso? Assim também a fé, se não tiver obras, será morta no seu isolamento»[1].

Quem gasta a sua vida a responder ao grito dos pobres, dos doentes, dos abandonados não perde nada. Descobre que a alma da vida é a alegria de servir.

 

 

02 Julho 2023



[1] Cf. Tiago, cap. 1 e 2

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