1. Na liturgia deste Domingo, somos confrontados
com um sonho paradoxal. Este sonho está presente nas quatro versões do
Evangelho. Dependem todas da versão de S. Marcos: quem perde ganha, quem
ganha perde. Este é o próprio sonho do Evangelho, um sonho que já tem dois
mil anos. Se ainda não foi realizado, não se deve concluir que é irrealizável.
No dia em que a Igreja aceitasse como irrealizável este sonho abandonaria Jesus
Cristo. A história do cristianismo é a história das fidelidades e infidelidades
a esse sonho como realidade da nossa história humana.
Vou
recorrer ao conhecido sonho poético de Rabindranath Tagore (1861-1941), prémio Nobel da Literatura, em
1913: Adormeci e sonhei que a vida era alegria; despertei e vi que a vida era
serviço; servi e vi que o serviço era a alegria.
O pensamento
dominante deste poeta é cristão, mas ele inscreve-se numa corrente religiosa indiana do começo do século XIX, criada pelo bengali Raja Rammohun Ray. Era a síntese dos
aspectos que considerava positivos do hinduísmo, budismo, judaísmo,
cristianismo e islão, acrescentando os princípios da Revolução Francesa de
igualdade, liberdade e fraternidade. Foi o pai de Tagore que continuou esta
corrente religiosa.
Entre
outros aspectos, lutavam contra a queima das viúvas vivas na pira funerária do
esposo, pela igualdade dos seres humanos e recusavam o sistema de castas, lutavam
pela educação da mulher em igualdade com o homem e eliminavam todo o tipo de
superstições e idolatrias.
Nessa
corrente defendia-se o monoteísmo e a ideia de que Deus excede todas as
divisões confessionais, identificada com a vida. Nessa perspectiva
actuante, não há carma, transmigração, quietismo, pessimismo, rejeição do mundo
ou dos sentidos. Há, pelo contrário, a percepção de que a natureza é a
revelação de Deus e a alegria de O encontrar no sol e na chuva.
Reconhece a
dignidade e o valor do trabalho e a libertação interior alcançada apenas pelo
caminho de descer até onde Deus habita entre os mais pobres, os mais
miseráveis, os excluídos, como apelo a não aceitarmos o mundo dessas
desigualdades gritantes e injustificáveis. Esse é o serviço da verdadeira
alegria. O nosso trabalho verdadeiramente humano cristão deve concretizar-se
numa nova organização social, económica e política, o verdadeiro serviço da
alegria para todos.
2. O presidente do Brasil, Lula da Silva, foi a Paris participar num
encontro organizado pelo governo francês para discutir um novo pacto financeiro
global.
Começou o seu discurso, dizendo que, em 2025, a
COP-30 será realizada num país amazónico. Ele espera que todas as pessoas que
prezam a Amazónia e dizem que é o pulmão do mundo participem na COP-30 no
Estado do Pará, para que tenham noção do que é realmente a Amazónia. Pouca
gente conhece.
A Amazónia no Brasil, com 5 milhões de quilómetros
quadrados, não é a única. Existe a equatoriana, a colombiana, a peruana, a boliviana,
a venezuelana, a da Guiana, a do Suriname e a francesa, da Guiana Francesa.
No dia 12 de Agosto, no Estado do Pará, será realizado
um encontro com todos os presidentes da América do Sul, que compõem toda a
região da Amazónia, para elaborarem uma proposta a levar à COP-28, nos Emirados
Árabes, no final deste ano.
No entanto, Lula da Silva declarou que não ia
falar apenas da Amazónia. Com a questão climática é necessário colocar a
questão da desigualdade mundial. Não é possível que, numa reunião entre
presidentes de países importantes, a palavra desigualdade não apareça. A
desigualdade salarial, a desigualdade de etnia, a desigualdade de género, a
desigualdade na educação, a desigualdade na saúde.
Somos um mundo cada vez mais desigual e
a riqueza está, cada vez mais, concentrada na mão de menos gente, e a pobreza
concentrada na mão de mais gente. Se não discutirmos essa questão da
desigualdade, se não a colocarmos com tanta prioridade como a questão
climática, podemos ter um clima muito bom e o povo continuar a morrer de fome
em vários países do mundo.
3. Dir-se-á que esta é uma questão reservada ao
mundo político como se o Evangelho e as religiões não tivessem uma dimensão
política. Dedicar a vida ao serviço da igualdade entre os seres humanos é uma
questão tão profundamente humana que também se pode inscrever na suprema
questão político-religiosa.
O Papa recebeu cerca de 200 artistas de todo o
mundo, no passado dia 23, no esplendor da Capela Sistina. Foi uma iniciativa no
âmbito dos 50 anos da inauguração da colecção de arte moderna dos museus do
Vaticano. Depois de mostrar o significado que aquela beleza tem para a Igreja e
para o mundo, não quis terminar o encontro sem pedir que não se esquecessem «dos pobres, que são
os prediletos de Cristo, em todas as formas de ser pobre hoje. Também os pobres
precisam da arte e da beleza. Alguns experimentam formas muito árduas de
privação da vida; por isso, têm mais necessidade dela. Em geral, não têm voz
para se fazerem ouvir. Vós podeis tornar-vos intérpretes do seu clamor silencioso».
Entre os textos do Novo Testamento, não se pode
esquecer a voz de S. Tiago, a voz da lei perfeita da liberdade, formulada nas
questões mais prementes dessa época: a religião pura e sem mácula diante de
Deus, nosso Pai, consiste em assistir os órfãos e as viúvas nas suas
tribulações e em guardar-se livre da corrupção do mundo.
É normal que as lideranças da Igreja católica
tenham procurado, ao longo dos séculos, ser fiéis às suas formulações
consideradas mais correctas, mais ortodoxas, como se fosse essa a principal
tarefa da Igreja, a chamada fidelidade ao depósito da fé. Em nome do depósito
da fé surgiu a expressão, sempre assim foi, sempre assim será. Essa
tradição é uma traição, pois, a verdadeira tradição é a da inovação. Não se
pode confundir a fé cristã com uma pura ortodoxia, esquecendo que essa tem de
se realizar numa real ortopraxia.
S. Tiago foi muito claro acerca desta questão: «Se
alguém disser que tem fé, mas não tem obras, que lhe aproveitará isso? Se um
irmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes faltar o necessário para a
subsistência de cada dia e alguém de entre vós lhes disser: ide em paz,
aquecei-vos e saciai-vos e não lhes der o necessário para a manutenção, que
proveito haverá nisso? Assim também a fé, se não tiver obras, será morta no seu
isolamento»[1].
Quem gasta a sua vida a responder ao grito dos
pobres, dos doentes, dos abandonados não perde nada. Descobre que a alma da
vida é a alegria de servir.
02 Julho 2023
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