1. Nas
Conferências de Maio de 1984, promovidas pelo Centro de Reflexão Cristã (CRC),
subordinadas ao tema Deus Interrogado, Eduardo Lourenço mostrou que,
mesmo que não leve a palavra Deus escrita, apesar de tudo, «no Ocidente
não se levantou outro modelo cultural (e, mais além do cultural, um modelo
existencial) mais profundo e mais radical do que o modelo de Cristo».
Este ano, o tema das
Conferências de Maio do CRC foi sobre a Fé cristã, profecia e cidadania: quatro legados para o século
XXI. Os quatro legados escolhidos foram Aristides de Sousa Mendes,
Maria de Lourdes Pintasilgo, Manuela Silva e Alfredo Bruto da Costa. Isto é,
para estas pessoas o modelo existencial de vida foi Jesus Cristo. Motivadas pela sua fé e pela sua relação com Jesus Cristo e
com o Deus de Jesus Cristo, foram cada um(a) do seu jeito e nas suas
circunstâncias, profetas, tornando presente dimensões fundamentais do
Evangelho, e cujo legado pode ser muito inspirador para as jovens gerações que
se interrogam sobre o que é ser cristão hoje.
Deixamos,
aqui, passagens do texto de António Guterres, secretário-geral das Nações
Unidas, enviado para a primeira das quatro conferências, sobre Aristides de Sousa
Mendes, cônsul português que, em Bordéus, salvou milhares de judeus em fuga do
nazismo, desobedecendo deliberadamente às ordens do ditador Salazar.
Num contexto global marcado por crises
complexas e interligadas, precisamos de bons exemplos, de hoje e de ontem – de
exemplos que nos escorem na opção determinada e actuante pelo humanismo, pela
solidariedade, pela concórdia, pelo valor da diversidade; e na igualmente
determinada e actuante rejeição do ódio, da violência, da perseguição, da
exclusão.
Aristides de Sousa Mendes é um exemplo notável
dessa determinação e acção. Com a coragem da desobediência em face de um
imperativo ético, e com a coragem de suportar as consequências que adviriam
dessa desobediência, o então nosso cônsul em Bordéus procurou e logrou salvar
milhares de vidas, quando confrontado com a barbárie do Holocausto e do extermínio
deliberado de milhões de judeus.
Num cenário de completo desespero para tantos
seres humanos, Aristides de Sousa Mendes permitiu-se devolver a esperança a
quantos pôde. Vale a pena lembrar o que ele próprio escreveu em sua defesa, na contestação
ao processo disciplinar que lhe foi movido: era realmente meu objectivo
salvar toda aquela gente, cuja aflição era indescritível.
Diz A. Guterres que guarda a satisfação de ter
estado associado, no decurso da sua vida política em Portugal, a acções que
contribuíram para a reabilitação de Aristides de Sousa Mendes. Reconhece,
contudo, que não temos sido capazes, enquanto humanidade, de prestar a
homenagem que, por certo, mais o honraria – e aos muitos outros que agiram por não poder
tolerar o sofrimento alheio. Essa homenagem seria a de evitar repetir cenários
e circunstâncias em que a aflição indescritível de milhões de seres
humanos é causada por acções e decisões de outros seres humanos[1].
2.
O Papa Francisco não deixou passar o IV centenário do nascimento de Blaise
Pascal (19. 06. 1623-1662), uma extraordinária figura cristã[2].
O seu
desafio era o mundo a estudar cientificamente, mas o primado foram as suas
experiências da descoberta de Jesus Cristo. Não confundia a ordem da natureza e
a da ordem da graça nem as punha em contradição. Uma não enfraquecia a outra.
Não
pretendo, com esta crónica, dispensar a leitura desta magnífica Carta
Apostólica sobre Pascal, como esta Carta não procura substituir o estudo da
obra imensa deste grande cientista, filósofo e teólogo cristão. Para ele, não só conhecemos a Deus unicamente por Jesus
Cristo, mas também nos conhecemos a nós mesmos apenas por Jesus Cristo. Só
conhecemos a vida, a morte por meio de Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo, não
sabemos o que é a nossa vida, a nossa morte, nem quem é Deus nem mesmo o que
somos nós. Portanto sem a Escritura, cujo único objecto é Jesus Cristo, não
conhecemos nada e não vemos senão escuridão.
Para
Pascal, a pergunta do Salmo 8, 5 – que
é o homem para Te lembrares dele, o filho do homem para com ele Te preocupares?
– é a interrogação gravada no
coração de cada ser humano, em todo o tempo e lugar, de qualquer civilização e
língua, independentemente da sua religião.
Assim, vemos Pascal interrogar-se: Que é um
homem na natureza? Um nada comparado com o infinito, um tudo comparado com o
nada. Cunhou a expressão: o ser humano não passa duma cana, a mais
frágil da natureza, mas é uma cana pensante.
Isto não substituía a sua abertura de espanto à
realidade, que é abertura às outras dimensões do saber e da existência,
abertura aos outros, abertura à sociedade. Estava atento aos problemas mais
sentidos, bem como às necessidades materiais de todos os componentes da
sociedade em que vivia.
É comovente constatar que, nos últimos dias da sua
vida, um pensador tão genial como Blaise Pascal não via urgência mais sublime
para investir as suas energias do que as obras de misericórdia: O único objecto
da Escritura é a caridade.
Fora da
perspetiva do amor, não há verdade que valha a pena: Faz-se um ídolo até da
própria verdade, pois a verdade fora da caridade não é Deus, é sua imagem e um
ídolo que não se deve amar nem adorar. O drama, porém, da nossa vida é
que às vezes vemos mal e, consequentemente, escolhemos mal.
Por isso mesmo,
a inteligência e a fé viva de Blaise Pascal, que quis mostrar que a religião
cristã é venerável porque conhece bem o ser humano e amável
porque promete o verdadeiro bem, podem-nos ajudar a avançar por entre
as trevas e as desgraças deste mundo.
3. O Papa
Francisco, antes de concluir esta sua Carta tocou, sem aprofundar, as implicações
de Pascal numa controvérsia que envolvia e contrapunha o jansenismo e a
teologia do jesuíta Luís de Molina (1535-1600). Também não era este o assunto
dominante deste documento.
Há mais de 30
anos abordei, nestas crónicas, a questão que trabalhava nas minhas aulas sobre
a Teologia das Realidades Terrestres. Tentava mostrar que a experiência
da densidade e complexidade do mundo não era incompatível com a intensíssima
experiência de Deus. Yves Congar, O.P., fez o diagnóstico das razões da
incredulidade da juventude do seu tempo: a uma religião sem mundo, sucede um
mundo sem religião.
Blaise Pascal
mostrou, na sua vida e na sua prática científica, filosófica e teológica que
não havia razões para contrapor a experiência mística de Deus, como pura graça,
e as experiências múltiplas da sua vida. Eram experiências que se robusteciam
mutuamente. Na raiz de certas formas de ateísmo existe uma rivalidade entre
Deus e o ser humano. Não tem que assim. O amor
apaixonado por Cristo e o serviço dos pobres eram, em Pascal, as duas faces de
uma única realidade[3].
25 Junho 2023
[1] Cf. 7Margens,
19. 06. 2023
[2] Carta
Apostólica Sublimitas et Miseria Hominis, www.vatican.va . Já está editada em
português pelas edições Paulinas.
[3] O primeiro volume da edição destas crónicas teve,
precisamente, o título A Humanidade de Deus, Mário Figueirinhas
Editor, Porto/Lisboa, 1995
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