Francisco: Peço-vos em nome de Deus (2) Anselmo Borges 26 Agosto 2023 Continuamos com os pedidos em nome de Deus feitos pelo Papa Francisco. 4. Em nome de Deus peço uma política que trabalhe para o bem comum. Penso que a Política, com maiúscula, como diz Francisco, constitui um dos serviços mais prestimosos e também mais exigentes, que quase requer a santidade. Por isso, quando vejo tantos, tantos, tantos... na corrida para um lugar na política, prestando-se até a comportamentos por vezes ridículos, se me perguntam se eu acredito que a maior parte o faz para prestar esse serviço ao bem comum, respondo sinceramente: não. Há outros motivos; disse-o quem sabe, Henry Kissinger: "O poder é o maior afrodisíaco". Francisco escreve que acredita numa política que "nunca perde de vista o bem comum, o seu verdadeiro e primordial objectivo", mas que também sabe que para alguns "a política se escreve com minúscula e se transformou numa má palavra": "Pensa-se nas vantagens", no "quanto me dá", e aí está "um dos males que mais a danificam - a corrupção". "Não é ilegal que um ser humano se sinta atraído pelo dinheiro, as viagens em primeira classe, as mansões, mas convoco a que na Política se envolvam só os que podem viver com sobriedade e austeridade no seu dia a dia." © Álvaro Isidoro / global imagens 5. Em nome de Deus peço que se acabe com a loucura da guerra. Cita Virgílio que há mais de dois mil anos escreveu que "na guerra não há salvação", para acrescentar: "A guerra é o sinal mais claro da inumanidade", "um flagelo, que nunca pode resolver os problemas entre as nações, uma matança inútil, com a qual tudo se pode perder e que, em última análise, é sempre uma derrota da humanidade." Pensa que "a sua persistência entre nós é o verdadeiro fracasso da política." A guerra na Ucrânia mostra-nos "a crueldade do horror bélico." A guerra "nunca será uma solução; é também uma resposta ineficaz, nunca resolve os problemas que pretende superar. Vemos que o Iémen, a Líbia ou a Síria, só para citar alguns exemplos contemporâneos, estão melhor do que antes dos conflitos?" E o escândalo dos gastos mundiais com o armamento, "um dos maiores escândalos morais da actualidade"? "Com a guerra há milhões que perdem tudo, mas há muitos que ganham milhões." Não podemos continuar "condenados ao medo da destruição atómica; ter armas nucleares e atómicas é imoral." É "necessário repensar a ONU e especialmente o Conselho de Segurança para que estas instituições dêem resposta à nova realidade existente e sejam fruto de um consenso o mais amplo possível." 6. Em nome de Deus peço que se abram as portas aos migrantes e refugiados. Francisco lembra que a sua primeira saída de Roma, como Papa, foi a Lampedusa e diz aos migrantes e refugiados: "Nunca vos esqueci". O pedido que faz está nestes quatro verbos: "Acolher, proteger, promover e integrar" - abrir a porta "dentro das possibilidades de cada país". É realista e previne contra "as redes de traficantes" e a quem é acolhido pede-se "a aceitação indispensável das normas do país que recebe, bem como o respeito pelos princípios de identidade deste". 7. Em nome de Deus peço que se promova e anime a participação das mulheres na sociedade. Essencial: "As mulheres têm a mesma dignidade que os homens. Em cada um dos cinco continentes. Em cada um dos países. A comunidade internacional não pode continuar a olhar com passividade para as consequências dramáticas de modelos de relação baseados na discriminação e na submissão, que estão na base de que milhares de mulheres e meninas sejam todos os anos submetidas a casamentos forçados, escravidão doméstica e outros ataques à sua dignidade. Outro drama extenso é a mutilação genital feminina. São cerca de três milhões as jovens que a cada ano sofrem esta intervenção", acrescentando que "é importante que nos impliquemos todos na abertura de espaços às mulheres, se quisermos um futuro fecundo e criativo." Aqui, Francisco que me desculpe, mas é preciso perguntar: para quando o fim da discriminação das mulheres católicas na Igreja? 8. Em nome de Deus peço que se permita e fomente o crescimento dos países pobres. Clama contra o escândalo: "As dez pessoas mais ricas do mundo duplicaram as suas fortunas durante a pandemia. O 1% mais rico da população mundial concentra 32% da riqueza do planeta... enquanto a metade mais pobre do mundo, no seu conjunto, não chega aos 2% da riqueza, segundo os dados da Oxfam e do World Inequality Report 2022. Os ricos são cada vez mais ricos; os pobres cada vez mais pobres. Este sistema mata, exclui e concentra." Este é um sistema doente: "Calcula-se que um terço dos alimentos produzidos é desperdiçado", "quase seis milhões de crianças morrem anualmente devido à extrema pobreza." Francisco que me desculpe, mas é preciso perguntar: para quando o fim da discriminação das mulheres católicas na Igreja? 9. Em nome de Deus peço que se universalize o acesso à saúde. Cita G. K. Chesterton: "A coisa mais poética, mais poética que as flores, mais poética que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente." Infelizmente, conclui com Romano Guardini: "O homem moderno não está preparado para usar o poder com acerto", pois "o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano em responsabilidade, valores, consciência". 10. Em nome de Deus peço que o seu Nome não seja utilizado para fomentar guerras. Eu, em relação a um Deus que leve à guerra digo: em relação a esse Deus é obrigatório ser ateu. N.B. Com os melhores desejos para todos, esta crónica despede-se até 7 de Outubro. Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografi
segunda-feira, 28 de agosto de 2023
Mas tu, Jesus, quem dizes que eu sou? - Pe. João, mc
Mas tu, Jesus, quem dizes que eu sou?
Ano A - 21º Domingo do Tempo Comum
Mateus 16,13-20: Tu és o Cristo... Tu és Pedro!
O evangelho de hoje oferece-nos a “confissão de fé” de Pedro perto
da cidade de Cesareia de Filipe, a nordeste de Israel, numa região
semi-pagã. Jesus tinha-se “retirado” para aquela zona, fora dos limites
habituais da sua pregação, para estar em intimidade com os seus. Uma
mudança drástica na sua missão estava prestes a ter lugar e Jesus queria
preparar os seus discípulos.
Neste contexto de retiro (Lucas diz mesmo que isso aconteceu quando “Jesus estava num lugar solitário a rezar” 9,18), o Senhor, que tinha percebido à sua volta o indício de uma crise, faz um... “inquérito”: «Quem
dizem os homens que é o Filho do homem?». Eles responderam: «Uns dizem
que é João Batista, outros que é Elias, outros que é Jeremias ou algum
dos profetas». Portanto,
as multidões viam em Jesus um profeta, um grande profeta, mas
interpretavam-no segundo as categorias do passado. O mesmo inquérito
feito hoje daria resultados não muito diferentes: um homem
extraordinário, um iluminado, um revolucionário, um inovador, um
idealista... Categorias sempre insuficientes.
Jesus continua: «E vós, quem dizeis que Eu sou?». Então, Simão Pedro tomou a palavra e disse: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo».
Pedro não é aqui o porta-voz dos doze, mas faz a sua profissão de fé
pessoal, que Jesus reconhece como inspirada pelo Pai. E, nesta altura, Jesus revela a Pedro a sua vocação, a sua identidade: «Também
Eu te digo: Tu és Pedro; sobre esta pedra edificarei a minha Igreja...
Dar-te-ei as chaves do reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será
ligado nos Céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos
Céus». Notemos a
simetria: “Tu és o Cristo” e “Tu és Pedro”. No entanto, não se trata de
uma troca de cortesias, mas da revelação de uma identidade mútua.
Estamos perante uma verdadeira investidura, simbolizada
por três metáforas: a mudança de nome, a entrega das chaves e o poder
de ligar e desligar. Jesus dá a Pedro três das suas prerrogativas
messiânicas: ser Pedra (ver Daniel 2,31-35; Mateus 21,42; 1 Coríntios 10,4), possuir as chaves do Reino e o poder de ligar e desligar (Apocalipse 3,7: “Aquele que tem a chave de David – que abre e ninguém pode fechar; que fecha e ninguém pode abrir”). Jesus, o Senhor da Igreja, dá a Pedro uma autoridade “vicária” neste texto.
1. E tu, quem dizes que eu sou?
Esta
pergunta é-nos dirigida hoje. Cristo não espera a resposta que se
aprende no catecismo. Seria uma resposta bolorenta! Não espera uma
resposta rotineira. Seria uma resposta sem paixão! Ele não espera uma
resposta elaborada pela mente. Seria uma resposta fria e sem coração! A resposta que Jesus espera deve vir da nossa intimidade. Sabes como a encontrar? Pergunta a ti próprio quanto estás disposto a arriscar por ele. A medida? O martírio!Atualmente, o testemunho do cristão é o martírio. Não
só no Paquistão, na Índia, na China ou na Nigéria... mas também aqui na
Europa, com o estilicídio constante do escárnio ou da indiferença. Às
quatro notas da Igreja: una, santa, católica e apostólica, poderíamos
acrescentar uma quinta: perseguida!
Mas não basta dar uma resposta única e definitiva. A vida é mudança. Em
todas as relações há momentos de crise, em que sentimos que já não
reconhecemos a outra pessoa. É um momento crítico que pode tornar-se uma
ocasião para uma ruptura definitiva ou, pelo contrário, uma
oportunidade para crescer no conhecimento mútuo. Isto pode acontecer
também na nossa relação com Cristo. Muitos cristãos de hoje abandonam-no
precisamente por isso. A relação com Jesus torna-se rotineira, sem
ímpeto, sem paixão, e pouco a pouco a indiferença, a distância e o
afastamento tomam conta de nós. Supomos que já conhecemos tudo dele e
que ele não tem mais nada a dizer-nos. O seu Evangelho é como um livro
“já lido”. Assim, ou nos vamos embora, cansados e desiludidos, ou a
nossa relação com ele definha numa lenta e triste agonia. Como é que se
pode evitar este perigo? Há duas propostas que me ocorrem.
2. Olhos fixos... na lebre!
Não desviar o olhar de Jesus! “Corramos com perseverança ao combate proposto, com o olhar fixo no autor e consumador de nossa fé, Jesus” (Hebreus 12,1). Uma história dos antigos Padres do Deserto di-lo de uma forma simpática mas eloquente:
Um
jovem monge visitou um dia um velho monge, carregado de anos e de
experiência, e disse-lhe: “Meu pai, explica-me porque é que tantos
chegam à vida monástica e tão poucos perseveram, tantos desistem”. O
monge respondeu: “É que acontece como quando um cão vê uma lebre. Começa
a correr atrás da lebre e ladra muito forte. Outros cães ouvem o ladrar
do cão que corre atrás da lebre e também eles começam a correr: são
muitos a correr juntos, a ladrar, mas só um viu a lebre, só um a segue
com os olhos. E a certa altura, um após o outro, todos aqueles que não
viram realmente a lebre e só correm porque um a viu, ficam cansados,
exaustos. Aquele, pelo contrário, que pôs os olhos na meta, vai até ao
fim e apanha a lebre”. E acrescentou: “Vês, isto é o que acontece aos
monges. Só aqueles que verdadeiramente fixaram os olhos na pessoa de
Jesus Cristo, nosso Senhor crucificado, chegam ao fim”.
3. Espelhar-se no olhar de Cristo!
Jesus
perguntou-nos muitas vezes: “Quem sou eu para ti?”. Já pensaste em
fazer-lhe a mesma pergunta: “Mas tu, Jesus, quem dizes que eu sou?”. Só a
sua resposta pode iluminar o “mistério” da nossa pessoa, caso contrário
continuamos a ser um/a desconhecido/a para nós próprios. Só ele pode
revelar-nos o nosso verdadeiro nome (Apocalipse 2,17), a nossa
identidade. Só este encontro a quatro olhos pode dar profundidade e
solidez à relação.
“Quando
nos aproximamos do mistério de Deus, descobrimos o nosso próprio rosto;
quando nos aproximamos da Verdade de Deus, recebemos em troca a verdade
sobre nós próprios. Confessar a identidade de Cristo restitui-nos a
nossa identidade mais profunda... Se queres descobrir quem realmente és,
reflecte-te no olhar de Deus” (Paolo Curtaz).
Para uma reflexão pessoal
1)
Num momento de “retiro”, de intimidade com Cristo, questionemo-nos e
deixemo-nos questionar pelo Senhor: Quem sou eu? Quem és tu? sem
formalismos nem esquemas pré-concebidos!
2) Confrontemo-nos com a
identidade de Pedro, que nos revela, de algum modo, a vocação do
cristão: ser uma PEDRA para a fé dos outros, apesar da fragilidade da
nossa; usar a CHAVE do Reino que é a cruz de Jesus para soltar os laços
da escravatura e ligar as pessoas com os laços da fraternidade!
P. Manuel João Pereira, Comboniano
Castel d'Azzano (Verona) 25 de agosto de 2023
P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org
sábado, 19 de agosto de 2023
Manda-me! Comanda-me! - Pe João MC
Manda-me! Comanda-me!
Ano A - 19º Domingo do Tempo Comum
Mateus 14,22-33
O
evangelho do 18º Domingo do Tempo Comum contava-nos o milagre da
multiplicação dos pães para uma multidão imensa, num lugar deserto, que
terminou com a recolha de doze cestos cheios de restos. Segue-se o
episódio bem conhecido de hoje: Jesus caminhando sobre o mar. Estes dois
milagres - o da multiplicação dos cinco pães e dois peixes e o de Jesus
caminhando sobre as águas - são uma nova epifania de Jesus, em que ele
se revela como Messias (que, segundo uma tradição, realizaria o milagre
do maná!) e como Filho de Deus (caminhar sobre as águas era uma
prerrogativa divina!). E, no interlúdio, o evangelho apresenta-nos Jesus
a rezar, sozinho, durante a noite, no monte (talvez o das
bem-aventuranças!).
1. SAI e permanece no monte à espera do Senhor (Elias, 1.ª leitura)
Perante
esta epifania, que o Senhor nos conceda a graça de sairmos das grutas
onde nos refugiámos, como o profeta Elias, para acolhermos a novidade da
passagem de Deus nas nossas vidas, já não como “uma forte rajada de vento capaz de quebrar os rochedos” -
como poderia ser o vento novo de entusiasmo e de alegria juvenil da JMJ
de Lisboa - ou como o terramoto ou o fogo dos nossos primeiros anos de
compromisso cristão, mas como “uma ligeira brisa”, percetível apenas no
silêncio do coração!
2. MANDA-ME ir ter contigo sobre as águas! (S. Pedro, no Evangelho)
a) Empurrados para a outra margem: “Depois de ter saciado a fome à multidão, Jesus obrigou os discípulos a subir para o barco e a esperá-lo na outra margem”.
Este é o único caso, creio, em que Jesus “obriga” os apóstolos a fazer
uma coisa. Imaginamos Jesus a empurrá-los para a barca, no meio dos
protestos deles, que observam que é demasiado tarde, que o vento está
contra eles, que é imprudente ir para a outra margem do lago, uma terra
pagã e inimiga! E porquê deixar Jesus sozinho? Os apóstolos teriam
gostado de ficar ali a gozar aquele momento de euforia com a multidão,
mas não há nada a fazer! Com relutância, partem para a outra margem,
levando com eles os doze cestos de pão. Assim acontece também connosco, a
Igreja que Cristo empurra continuamente para “a outra margem”!
b) À mercê do mar e dos fantasmas! “Ao fim da noite, Jesus foi ter com eles, caminhando sobre o mar” e
os discípulos, ao vê-lo, pensam que seja um fantasma. Aos elementos
insidiosos do mar, da noite e do vento, junta-se agora um fantasma!
Assustados, os doze gritam de medo. Mas imediatamente Jesus lhes diz: “Tende confiança. Sou Eu. Não temais!” O
medo é o nosso companheiro permanente e o convite de Deus a não ter
medo é o seu antídoto quotidiano. “Não temais” porque “sou eu”, ou
melhor, “Eu sou”, que nos evangelhos evoca o nome de Deus!
c) Manda-me! Pedro toma a iniciativa - pela primeira vez, no evangelho de Mateus - e diz a Jesus: “Se és Tu, Senhor, manda-me ir ter contigo sobre as águas”. “Se
és tu...”! Trata-se de uma dúvida e de um pedido de prova? Ou o efeito
de uma emoção descontrolada após o pavor? Ou uma reação infantil e
entusiasta? Ou um impulso de confiança no Senhor? Talvez nem Pedro saiba
exatamente, como nós tantas vezes!
No entanto, chama-me a atenção a forma como Pedro formula o pedido: “Manda-me ir ter contigo sobre as águas”.
Ordena-me! Comanda-me! Ele não diz: “deixa-me...” ou “concede-me...”.
Não, ele pede para o fazer por ordem de Jesus, e Jesus concede-lho. Será
para o testar? Ou será antes uma expressão de afeto para com Pedro? De
facto, Pedro é o amigo preferido de Jesus, não João. Pelo menos de
acordo com os evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas)!
Manda-me ir ter contigo sobre as águas! Na
minha opinião, este é o pedido por excelência do cristão ! A nossa vida
dificilmente é uma viagem num confortável navio de cruzeiro. É muitas
vezes uma navegação num pequeno barco inseguro, à mercê das ondas. Mas,
por vezes, parece-nos que até essa frágil segurança nos falta debaixo
dos pés. E então só nos resta a fé nua e crua de caminhar sobre as
águas. Não por confiarmos na nossa coragem, mas por acreditarmos no
poder do seu comando. Manda-me, e eu caminharei sobre o mar agitado da doença! Ordena-me, e eu enfrentarei as águas ameaçadoras de uma crise matrimonial ou de uma relação infeliz com um filho ou uma filha! Comandai-me, e eu enfrentarei os ventos contrários das minhas paixões.
d) Salva-me! A
fé é algo de tremendamente sério! Preciosa e frágil como a vida. Isso o
verdadeiro crente sabe e experimenta. Basta um momento de afastamento
do olhar de Cristo para nos sentirmos afundar. Pobre Pedro e pobres de
nós! Porque é que Pedro duvida no meio do milagre? Talvez esperasse que
as ondas do mar se acalmassem para poder caminhar em segurança. Mas
assim não aconteceu. As circunstâncias exteriores não mudam. A fé não
nos dispensa dos riscos. Por isso, não nos resta outra alternativa senão
gritar: “Salva-me, Senhor!”. E o pescador é... pescado! “Pedro, no meio de um milagre, duvida: 'Senhor, eu afundo-me'; mas, no meio da dúvida, acredita: 'Senhor, salva-me!'” (Ermes Ronchi).
Hoje,
poucos gritam: “Salvai-me!”. Porque Cristo já não é “o Salvador”.
Salvar de quê? É muito revelador o que aconteceu a um padre que presidia
a uma eucaristia de primeiras comunhões. Tendo sugerido de fazer
orações espontâneas, uma menina disse: “Agradeço-te, Jesus, porque me
salvaste... embora não me lembre de quê!”. Toda a assembleia se riu à
gargalhada, mas quantos saberiam ir mais além da resposta formal
aprendida na catequese?
3. A GRANDE DOR (S. Paulo, 2ª leitura)
O
crente que tem consciência do que significa ser salvo ou estar perdido
não pode deixar de experimentar na sua própria carne o que São Paulo diz
hoje: “Sinto uma grande tristeza e uma dor contínua no meu coração... por amor dos meus irmãos, que são do mesmo sangue que eu” (Romanos
9,1-5). Ver os concidadãos, a família, os amigos longe de Cristo é para
o crente um espinho na carne! Rezar por eles não é uma simples “boa
obra”, mas a grave responsabilidade de responder à pergunta de Deus:
“Onde está o teu irmão?”
Diz Matta el Meskin, monge cristão egípcio (+2006): “Pela
oração, o homem torna-se sacerdote, no sentido em que se torna
responsável pela salvação dos outros (...). Assumindo o pecado deles,
gemendo do fundo do coração sob o seu peso e fazendo penitência,
torna-se capaz, fazendo-se pecador no lugar deles, de pedir perdão por
eles e de lho obter”
Para refletir
· Como é que eu ajo no momento da provação: com raiva ou com paciência? Com medo ou com confiança? Com desânimo ou com esperança?
· Estou pronto a estender a mão para agarrar aqueles que se estão a afundar?
· No meio das tempestades da vida... direi eu também como Pedro: Manda-me! Salva-me!
P. Manuel João Pereira, Comboniano
Cidade de Castel d'Azzano (Verona) 11 de agosto de 2023
P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
quarta-feira, 2 de agosto de 2023
O ESSENCIAL É A SABEDORIA DO AMOR Frei Bento Domingues, O.P.
1. Gostei
muito do artigo de Guilhermina Gomes publicado, no Jornal de Letras (JL),
de 11 a 25 de Julho 2023, intitulado Um ‘legado’: a visão da História. Também
gostei que me tivesse associado ao José Mattoso (JM) por razões diferentes.
Algumas pessoas lamentaram não ter reproduzido, na crónica anterior, a história
da nossa amizade. Não é desta longa história que vou falar, mas com alguma
relutância, vou reproduzir o email que recebi do JM, no ano passado:
«Parece que fazes
anos hoje. Não é mérito meu lembrar-me da data, mas a Lucy, sempre atenta ao
calendário, não deixou de me assinalar o dia, e eu estou-lhe muito grato por
isso. A nossa amizade vem de longe, e és para mim uma das pessoas que mais
estimo e admiro, não só como pessoa, mas sobretudo pelo exemplo da tua vida
como cristão e como religioso. Desde que participei nas tuas aulas de teologia
e espiritualidade em Fátima, há já tantos anos, foste sempre para mim o
testemunho concreto da vida cristã como ela deve ser vivida nos dias de hoje.
És para mim um dom que agradeço a Deus de todo o coração. Sei que a tua saúde é
já frágil (como a minha), e faço votos para que ela continue o tempo que Deus
quiser, sem impedir o teu apostolado, que continuo a seguir graças ao cuidado
que a Lucy tem em me mandar semanalmente os textos das tuas homilias, que leio
e saboreio com grande devoção. Não sei até quando, mas o tempo deixou de contar
para mim e só espero que mais dia, menos dia, o tempo nos aproxime mais ainda,
até que o espaço deixe para sempre de nos separar. Teu muito amigo, José Mattoso».
É estranho que, no momento em que devia falar deste amigo,
consenti em que fosse ele a exprimir o sentido da nossa amizade. De facto,
recebi dele tanto que me achava ridículo escrever sobre ele, embora fosse seu
leitor e confidente de longa data. Desejo que as novas gerações saibam
descobrir as dimensões da sua imensa obra multifacetada.
2. A
Jornada Mundial da Juventude (JMJ) está à porta. É apresentada como um encontro dos jovens de todo o mundo com o Papa.
É, simultaneamente, uma peregrinação, uma festa da juventude, uma
expressão da Igreja universal e um momento forte de evangelização do mundo
juvenil. É um convite a uma geração determinada em construir um mundo mais
justo e solidário. Com uma identidade claramente católica, é aberta a todos,
quer estejam mais próximos ou mais distantes desta Igreja.
Ao ser uma
Jornada Mundial, não podemos fazer de conta que a juventude é a mesma em todos
os países e no interior de cada país. Essa ficção só poderá criar equívocos acerca do alcance
desta grande festa.
Muitos vão receber o Papa Francisco como o mais jovem desta
peregrinação. O melhor é o respeito e o diálogo entre todas as gerações, no
sentido do profeta Joel: «Nos últimos dias, diz o Senhor, derramarei o meu Espírito
sobre toda a criatura. Os vossos filhos
e as vossas filhas hão-de profetizar; os vossos jovens terão visões e os vossos
velhos terão sonhos»[1].
Seja qual for o motivo da adesão a esta Jornada,
é de esperar que seja, por isso, um grande momento de conversão. Se o encontro
é também com este Papa, espera-se que estes dias sirvam para uma alteração de
mentalidades, no sentido em que ele próprio apresentou, quando foi desafiado a explicar os seus 10 anos de
pontificado[2].
Seja em que país for, sejam quais forem as
tendências da juventude, parece-me que um dos aspectos da conversão é recuperar
o nosso vínculo com o mundo natural, no sentido que lhe deu Karen Armstrong.
Lembra-nos como, no princípio dos tempos, a humanidade se maravilhou com a
natureza e viu o seu lado divino. Nos escritos de grandes pensadores de várias
religiões, o mundo natural inspira todos os sentimentos, do medo e da
reverência à contemplação serena. Deus, ou o que for que represente o
transcendente para nós, está presente em tudo. Mas, hoje, quando admiramos uma
árvore ou uma paisagem majestosa, raramente vemos a natureza como sagrada[3].
3. O Evangelho deste Domingo é feito de parábolas,
sobre o Reino dos Céus. Este é semelhante a um tesouro escondido num campo, que
um homem encontra. Volta a escondê-lo e, cheio de alegria, vai, vende tudo o
que possui e compra o campo. É também semelhante a um negociante
que busca boas pérolas. Tendo encontrado uma pérola de
grande valor, vende tudo quanto possui e compra a pérola. É
ainda semelhante a uma rede que, lançada ao mar, apanha toda a espécie de
peixes. Logo
que ela se enche, os pescadores puxam-na para a praia, sentam-se e escolhem os
bons para as canastras e os ruins deitam-nos fora. Por isso,
todo o doutor da Lei instruído acerca do Reino dos Céus é semelhante a um pai
de família, que tira coisas novas e velhas do seu tesouro[4].
Como escreveu José Augusto Mourão (JAM), a linguagem das
parábolas permite sugerir sentidos recônditos, estabelecer paralelos
insuspeitados, revelar harmonias misteriosas, mas sobretudo confrontar o
sujeito com a verdade das suas orientações de fundo. O Evangelho oferece-se à
leitura como Cristo se ofereceu ao mundo. Entrega-se nas nossas mãos com a sua
pobre linguagem crucificada.
Na mesma obra, JAM lembra-nos que o essencial é
hoje – hoje ou nunca – não há meias medidas. Entrai a fundo no essencial o mais
terrível na vida: ter medo a ponto de perder Deus de vista. Deus apazigua-nos
quando o pânico nos toma porque ele é rochedo, cidadela que à sombra das suas
asas nos abriga – passo a noite a pensar em vós porque vos tornastes o meu
refúgio. Ele é o novo. A sabedoria é manter-se atento, não deixar esmorecer
a esperança.
Abrigam-se no desejo raízes de eternidade. O
desejo é a alma da oração, dizia Santo Agostinho. É sempre na fé, na esperança
e no amor, pela continuidade do desejo, que rezamos sempre. Jordão de Saxónia
dizia que o estudo e a oração eram tão necessários como comer e beber. O que
está em jogo na oração é fazer reviver os ossos ressequidos que nós somos. Não
basta dizer mais orações, podem sufocar-nos. A oração é êxodo e cura das fantasias
ou ferida contemplativa (Paul Murray). A sabedoria ensina-nos a
espiritualidade do caminho: o gosto e o medo do desconhecido, a camaradagem no
caminho, o sentido da amizade de Deus, a mobilidade, o destaque das Escrituras,
a alegria de viver em conjunto, na doçura da fraternidade.
Desperta, abre os olhos e vê a que madrugas (Vieira). Vigiai, madrugai para o louvor, não
para o ídolo! Que a sabedoria permaneça sentada à nossa porta. E que o desejo
em nós nunca adormeça: Não adormeça na noite escura, ilumina meus olhos,
Senhor, tua voz me acorde[5].
Estas crónicas vão de férias até Setembro se o Público
tiver paciência para elas.
30 Julho 2023
[1] Act 2,
17
[2]
Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin, O Pastor, Paulinas Editora, 2023
[3] Natureza
Sagrada. Recuperar o nosso vínculo com o mundo natural, Temas &
Debates, Círculo dos Leitores, 2023
[4] Cf. Mt
13, 44-52
[5] Cf. José
Augusto Mourão, Luz Desarmada, Prefácio, 2006, pp. 127. 160. 140-141