domingo, 18 de fevereiro de 2024

Jesus: o poder e a autoridade Anselmo Borges 17 fevereiro 2024

 Jesus: o poder e a autoridade

Anselmo Borges
17 fevereiro 2024

Terminada a festa do Carnaval, os cristãos entram na Quaresma: 40 dias de mais profunda
meditação, de mais intensa conversão, de amor mais vivo e perfeito, em ordem a poder
celebrar com mais dignidade a Páscoa do Senhor enquanto passagem da escravidão à
liberdade, da morte à vida.

Logo na quarta-feira de cinzas, é dita a cada um, a cada uma, ao mesmo tempo que lhe é
colocada cinza na cabeça em sinal de humildade e exigência de reflexão, aquela palavra de
Jesus no início da sua pregação: “Convertei-vos e acreditai no Evangelho”, a Boa Nova,
notícia boa e felicitante.

De modo significativo, no primeiro Domingo da Quaresma, lê-se a passagem
do Evangelho referente às tentações de Jesus. Ora, é importante que se diga que as três
tentações estão todas referidas ao poder: poder económico, poder político, poder religioso.
Jesus, antes de iniciar a sua vida pública, foi para o deserto rezar, meditar, e tinha de decidir
se queria ser um Messias político, do poder, ou um Messias do amor, do serviço. Foi por esta
segunda alternativa que seguiu: “Eu não vim para ser servido, mas para servir”, e servir até
dar a vida.

Essencial: a única verdadeira tentação, segundo o Evangelho, é a do poder, no sentido da
dominação. Evidentemente, em qualquer sociedade o poder é inevitável. Toda a questão
consiste em saber como é que ele é exercido e com que finalidade. Quantos se lembram que
Ministro, na sua etimologia, significa pura e simplesmente servente, aquele que serve?
Primeiro-Ministro é o que está à frente no serviço. Jesus disse aos discípulos, portanto,
também ao Papa, bispos, cardeais, padres: “Sabeis que os chefes das nações governam-nas
como seus senhores. Não seja assim entre vós; pelo contrário, quem quiser fazer-se grande
entre vós seja vosso servo.”

Jesus renunciou ao poder enquanto domínio, mas é referido frequentemente
no Evangelho que ensinava com autoridade. A palavra autoridade vem do verbo
latino augere, que significa aumentar. Ter autoridade tem, portanto, a ver com fazer crescer,
aumentar no ser. Cá está: servir. O poder legitima-se enquanto serviço de fazer crescer na
liberdade e na dignidade... Presidentes, ministros, bispos, jornalistas, pais, professores,
padres, polícias... exercem legitimamente o poder enquanto autoridade, quando ele faz
crescer...

Assim, não são apenas os súbditos que devem obedecer. A palavra obediência também tem
a sua origem no latim: obaudire, que significa ouvir. Então, os que têm poder são os
primeiros a ter de obedecer, isto é, a ter de ouvir aqueles que precisam que lhes seja feita
justiça, ouvir a própria consciência, ouvir o apelo de todos aqueles que clamam por mais
liberdade e dignidade... Não há superiores e inferiores. Há apenas homens e mulheres iguais
em dignidade. E alguns estão constituídos em poder, que devem exercer como serviço a
essa dignidade inviolável.
"Jes
us renunciou ao poder enquanto domínio, mas é referido frequentemente no
Evangelho que ensinava com autoridade." Foto: D.R. / Freepik
É curioso: quando se fala em tentações, o que vem normalmente à ideia é a tentação da
carne, isto é, a tentação do sexo... Ora, sintomaticamente, Jesus também foi tentado, mas
nenhuma das tentações se refere ao sexo; as tentações estão todas em conexão com o poder,
com o domínio. Neste contexto, tenha-se presente o velho debate entre Freud e Adler:
enquanto, segundo Freud, a pulsão humana fundamental está referida à libido e
essencialmente ao prazer sexual, para Adler, essa pulsão tem a ver essencialmente com a
auto-afirmação, com a vontade de poder. Ora, neste diferendo, é bem possível que seja
Adler quem tem mais razão. Afinal, pensando bem, a própria sexualidade só constitui desvio
quando alguém é utilizado como meio de prazer, quando a pessoa é instrumentalizada e
coisificada.
Não; a grande tentação da Igreja, ao longo da sua história, foi e é o poder. Talvez isso
explique até porque é que, no catálogo dos pecados, o sexo teve não só o predomínio, mas
parecia, inclusivamente, deter a exclusividade do pecaminoso: no fundo, aninhava-se aí o
medo de que o prazer subvertesse o poder... A tentação do poder nas Igrejas é tanto mais
perigosa e deletéria quanto pretendam controlar, aprisionar o Sagrado e o Divino.
Escreveu, com razão, Miguel Baptista Pereira: “Perdido o sentido do Mistério, instala-se a
‘indoutrinação’ e a administração definitiva do Absoluto e consagra-se a intangibilidade dos
seus burocratas, não fosse dilema humano o serviço do Mistério ou a vontade ilimitada de
poder.”

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