1. É uma alegria poder
continuar a viver o começo de uma nova Quaresma com o Papa Francisco, fora da
cadeia, em liberdade para todos.
Em vez de uma indiferença globalizada, ele representa
o acordar contínuo para novas realidades, semeando uma nova esperança.
Geralmente, a
Quaresma apresenta-se como a face triste da vida humana e da vida cristã. Este
ano, o Papa sublinha que devemos abandonar as coisas que nos escravizam, nos
amarram, que não nos deixam ser cristãos para a aventura de um mundo que ainda
não sabemos como será o seu novo rosto.
E lembra-nos o que Jesus disse aos
seus discípulos: «Não mostreis um ar sombrio, como os hipócritas, que
desfiguram o rosto para que os outros vejam que eles jejuam».
Pelo
contrário, veja-se a alegria nos rostos, sinta-se o perfume da liberdade,
irradie aquele amor que faz novas todas as coisas, a começar das mais pequenas
e próximas. Isto pode acontecer em toda a comunidade cristã.
O êxodo da escravidão para a
liberdade não é um caminho abstrato. Exige e provoca um novo olhar para a
realidade que nos cerca. E qual é essa realidade? O Papa aponta-a com um
paradoxo: Tendo nós chegado ao limiar da fraternidade universal e a níveis de
progresso científico, técnico, cultural e jurídico capazes de garantir a todos
a dignidade, como é que tateamos, ainda, na escuridão das desigualdades e dos
conflitos?
Para superar este paradoxo, devemos
rever os nossos critérios de vida: o que é que conta mais para escolher e
realizar?
Isto comporta uma luta:
assim no-lo dizem claramente o livro do Êxodo e as tentações de Jesus no
deserto. Com efeito, à voz de Deus, que diz «Tu és o meu Filho amado» e «não
haverá para ti outros deuses na minha presença», contrapõem-se as mentiras do
inimigo. Mais temíveis que o Faraó são os ídolos. Poderíamos considerá-los como
a voz do inimigo dentro de nós. Poder tudo, ser louvado por todos, levar a
melhor sobre todos: todo o ser humano sente dentro de si a sedução desta
mentira.
Existe uma
nova humanidade, o povo dos pequeninos e humildes que não cedeu ao fascínio da
mentira. Enquanto os ídolos tornam mudos, cegos, surdos, imóveis aqueles que os
servem, os pobres em espírito estão imediatamente disponíveis e prontos: uma
força silenciosa de bem que cuida e sustenta o mundo.
2. É tempo de agir e, na Quaresma, agir
é também parar: parar em oração, para acolher a Palavra de
Deus, e parar como o Samaritano em presença do irmão ferido. O amor
de Deus e o do próximo formam um único amor. Não ter outros deuses é parar na
presença de Deus, junto da carne do próximo.
Nessa
presença, tornamo-nos irmãs e irmãos, sentimos os outros com nova intensidade. Em
vez de ameaças e de inimigos encontramos companheiras e companheiros de viagem.
Tal é o sonho de Deus, a terra prometida para a qual tendemos, quando saímos da
escravidão.
A forma sinodal da Igreja, que
estamos a redescobrir e cultivar nestes anos, sugere que a Quaresma seja
também tempo de decisões comunitárias, de pequenas e grandes opções
contracorrente, capazes de modificar a vida quotidiana das pessoas e a vida de
toda uma coletividade: os hábitos nas compras, o cuidado com a criação, a
inclusão de quem não é visto ou é desprezado. Convido toda a comunidade cristã
a fazer isto: oferecer aos seus fiéis momentos para repensarem os estilos de
vida; reservar um tempo para verificarem a sua presença no território e o
contributo que oferecem para o tornar melhor.
Na medida em
que esta Quaresma for de conversão, a humanidade extraviada sentirá um abalo de
criatividade, o lampejar de uma nova esperança. Quero dizer-vos,
como aos jovens que encontrei em Lisboa no verão passado: «Procurai e arriscai;
sim, procurai e arriscai. Neste momento histórico, os desafios são enormes, os
gemidos dolorosos: estamos a viver uma terceira guerra mundial feita aos
pedaços. Mas abracemos o risco de pensar que não estamos numa agonia, mas num
parto; não no fim, mas no início dum grande espetáculo. E é preciso coragem
para pensar assim». É a coragem da conversão, da saída da escravidão. A fé e a
caridade guiam pela mão esta esperança menina. Ensinam-na a caminhar e, ao
mesmo tempo, ela puxa-as para a frente[1].
3. A minha passada presença em Moçambique
não me autoriza a fazer uma leitura crítica do livro, Moçambique, da
Colonização à Guerra Colonial. A Intervenção da Igreja Católica, escrito
por Amadeu Araújo e Manuel Vilas Boas[2], que
recebi, precisamente, no primeiro dia desta Quaresma.
Existem vários
estudos e reportagens sobre Moçambique. Não é um mundo totalmente desconhecido,
mas dir-se-á que ainda não está suficientemente estudado para se poder avaliar
o trabalho destes dois autores.
Neste novo
livro, os autores falam, com ênfase, da primeira potência colonial a chegar a
África e a última a sair – Portugal. Razões de natureza política, económica e
histórica explicarão este desalinhamento com os demais Estados europeus. O modo
atribulado como a colonização se processou, ajudará a compreender a conturbada
descolonização. O caso de Moçambique parece paradigmático.
Não parece
correcto afirmar que os interesses que moveram as caravelas portuguesas até ao
Oriente eram diferentes dos que levaram as naus dos demais povos europeus para
as mesmas paragens. A sede do lucro era, certamente, tão forte como o vento que
soprava nas velas de uns e outros. Cremos, porém, que os marinheiros, criadores
e corajosos que, pela primeira vez na história da Humanidade, dobraram o Cabo a
sul do Continente africano, e que contribuíram decisivamente para o avanço da
ciência, eram movidos por outras preocupações, além da mera ganância
mercantilista. Aos historiadores pertence a investigação destes assuntos.
Eu só posso declarar
a alegria que a sua leitura me proporcionou e o desejo de ver esta obra em
muitas mãos. Sobretudo, que ela alimente a preocupação por um Cabo Delgado
verdadeiramente independente. A Igreja deve continuar a ser a voz dos sem voz,
do povo explorado, em nome da religião.
No meu
entender, é fundamental não deixar adormecer a consciência dos portugueses em
relação a esta tragédia.
A pergunta que
devemos fazer no começo e no fim desta Quaresma é a seguinte: como estão os
nossos irmãos em Cabo Delgado? Qual o nosso contributo para que eles saiam da escravidão
em que se encontram?
18
Fevereiro 2024
[1] Cf.
Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma 2024, www.vatican.va
[2] Amadeu
Araújo e Manuel Vilas Boas, Paulinas, 2024
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