domingo, 18 de fevereiro de 2024

O MESMO POR CAUSA DO DIFERENTE Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. É uma alegria poder continuar a viver o começo de uma nova Quaresma com o Papa Francisco, fora da cadeia, em liberdade para todos.

Em vez de uma indiferença globalizada, ele representa o acordar contínuo para novas realidades, semeando uma nova esperança.

Geralmente, a Quaresma apresenta-se como a face triste da vida humana e da vida cristã. Este ano, o Papa sublinha que devemos abandonar as coisas que nos escravizam, nos amarram, que não nos deixam ser cristãos para a aventura de um mundo que ainda não sabemos como será o seu novo rosto.

E lembra-nos o que Jesus disse aos seus discípulos: «Não mostreis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto para que os outros vejam que eles jejuam».

Pelo contrário, veja-se a alegria nos rostos, sinta-se o perfume da liberdade, irradie aquele amor que faz novas todas as coisas, a começar das mais pequenas e próximas. Isto pode acontecer em toda a comunidade cristã.

O êxodo da escravidão para a liberdade não é um caminho abstrato. Exige e provoca um novo olhar para a realidade que nos cerca. E qual é essa realidade? O Papa aponta-a com um paradoxo: Tendo nós chegado ao limiar da fraternidade universal e a níveis de progresso científico, técnico, cultural e jurídico capazes de garantir a todos a dignidade, como é que tateamos, ainda, na escuridão das desigualdades e dos conflitos?

Para superar este paradoxo, devemos rever os nossos critérios de vida: o que é que conta mais para escolher e realizar?

Isto comporta uma luta: assim no-lo dizem claramente o livro do Êxodo e as tentações de Jesus no deserto. Com efeito, à voz de Deus, que diz «Tu és o meu Filho amado» e «não haverá para ti outros deuses na minha presença», contrapõem-se as mentiras do inimigo. Mais temíveis que o Faraó são os ídolos. Poderíamos considerá-los como a voz do inimigo dentro de nós. Poder tudo, ser louvado por todos, levar a melhor sobre todos: todo o ser humano sente dentro de si a sedução desta mentira.

Existe uma nova humanidade, o povo dos pequeninos e humildes que não cedeu ao fascínio da mentira. Enquanto os ídolos tornam mudos, cegos, surdos, imóveis aqueles que os servem, os pobres em espírito estão imediatamente disponíveis e prontos: uma força silenciosa de bem que cuida e sustenta o mundo.

2. É tempo de agir e, na Quaresma, agir é também parar: parar em oração, para acolher a Palavra de Deus, e parar como o Samaritano em presença do irmão ferido. O amor de Deus e o do próximo formam um único amor. Não ter outros deuses é parar na presença de Deus, junto da carne do próximo.

Nessa presença, tornamo-nos irmãs e irmãos, sentimos os outros com nova intensidade. Em vez de ameaças e de inimigos encontramos companheiras e companheiros de viagem. Tal é o sonho de Deus, a terra prometida para a qual tendemos, quando saímos da escravidão.

A forma sinodal da Igreja, que estamos a redescobrir e cultivar nestes anos, sugere que a Quaresma seja também tempo de decisões comunitárias, de pequenas e grandes opções contracorrente, capazes de modificar a vida quotidiana das pessoas e a vida de toda uma coletividade: os hábitos nas compras, o cuidado com a criação, a inclusão de quem não é visto ou é desprezado. Convido toda a comunidade cristã a fazer isto: oferecer aos seus fiéis momentos para repensarem os estilos de vida; reservar um tempo para verificarem a sua presença no território e o contributo que oferecem para o tornar melhor.

Na medida em que esta Quaresma for de conversão, a humanidade extraviada sentirá um abalo de criatividade, o lampejar de uma nova esperança. Quero dizer-vos, como aos jovens que encontrei em Lisboa no verão passado: «Procurai e arriscai; sim, procurai e arriscai. Neste momento histórico, os desafios são enormes, os gemidos dolorosos: estamos a viver uma terceira guerra mundial feita aos pedaços. Mas abracemos o risco de pensar que não estamos numa agonia, mas num parto; não no fim, mas no início dum grande espetáculo. E é preciso coragem para pensar assim». É a coragem da conversão, da saída da escravidão. A fé e a caridade guiam pela mão esta esperança menina. Ensinam-na a caminhar e, ao mesmo tempo, ela puxa-as para a frente[1].

3. A minha passada presença em Moçambique não me autoriza a fazer uma leitura crítica do livro, Moçambique, da Colonização à Guerra Colonial. A Intervenção da Igreja Católica, escrito por Amadeu Araújo e Manuel Vilas Boas[2], que recebi, precisamente, no primeiro dia desta Quaresma.

Existem vários estudos e reportagens sobre Moçambique. Não é um mundo totalmente desconhecido, mas dir-se-á que ainda não está suficientemente estudado para se poder avaliar o trabalho destes dois autores.

Neste novo livro, os autores falam, com ênfase, da primeira potência colonial a chegar a África e a última a sair – Portugal. Razões de natureza política, económica e histórica explicarão este desalinhamento com os demais Estados europeus. O modo atribulado como a colonização se processou, ajudará a compreender a conturbada descolonização. O caso de Moçambique parece paradigmático.

Não parece correcto afirmar que os interesses que moveram as caravelas portuguesas até ao Oriente eram diferentes dos que levaram as naus dos demais povos europeus para as mesmas paragens. A sede do lucro era, certamente, tão forte como o vento que soprava nas velas de uns e outros. Cremos, porém, que os marinheiros, criadores e corajosos que, pela primeira vez na história da Humanidade, dobraram o Cabo a sul do Continente africano, e que contribuíram decisivamente para o avanço da ciência, eram movidos por outras preocupações, além da mera ganância mercantilista. Aos historiadores pertence a investigação destes assuntos.

Eu só posso declarar a alegria que a sua leitura me proporcionou e o desejo de ver esta obra em muitas mãos. Sobretudo, que ela alimente a preocupação por um Cabo Delgado verdadeiramente independente. A Igreja deve continuar a ser a voz dos sem voz, do povo explorado, em nome da religião.

No meu entender, é fundamental não deixar adormecer a consciência dos portugueses em relação a esta tragédia.

A pergunta que devemos fazer no começo e no fim desta Quaresma é a seguinte: como estão os nossos irmãos em Cabo Delgado? Qual o nosso contributo para que eles saiam da escravidão em que se encontram?

 

        18 Fevereiro 2024



[1] Cf. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma 2024, www.vatican.va

[2] Amadeu Araújo e Manuel Vilas Boas, Paulinas, 2024

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