sábado, 9 de março de 2024

Experiências negativas de contraste, ética e religião - Pe. Anselmo Borges, PHD

 Experiências negativas de contraste, ética e religião

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

09 março 2024

Numa história de mistura enigmática de bem e de mal, de alegria e de desgraça, de beleza e

de terror, de sentido e de absurdo, o ser humano é convocado para o espanto, positivo e

negativo. O ponto de arranque para a reflexão será sempre o assombro, positivo e negativo,

sendo este provocado concretamente pela massa incrível do sofrimento humano, e, mais

imediatamente, pela memória irrecusável da dor infinda das vítimas inocentes. O Homem

quer ser feliz e é infeliz. No meio do horror, habita-o a esperança, que não morre, de uma

Humanidade boa, solidária e verdadeira. Toda a filosofia e teologia que recusem reduzir-se

a um mero exercício académico, repetitivo e inútil, hão-de referir-se sempre à reflexão

crítica sobre as condições de possibilidade, objectivas e subjectivas, dessa esperança do

advento de uma Humanidade finalmente reconciliada e livre.

Perante um mundo onde 1200 milhões de pessoas sobrevivem com 1 dólar por dia, outras

925 milhões passam fome, 114 milhões de crianças em idade escolar não têm escola (63

milhões são meninas), onde anualmente perdem a vida 11 milhões de menores de 5 anos

com doenças tratáveis, onde milhões de pessoas têm de deixar a sua terra e deslocar-se por

causa das alterações climáticas (secas e inundações catastróficas) e os horrores de guerras

em curso, onde o fosso entre os escandalosamente ricos e os pobres é cavado cada vez mais

fundo, onde o aquecimento global e o armamento nuclear põem em perigo a própria

sobrevivência da Humanidade, onde a cultura tecnocrática reduz o Homem à

unidimensionalidade, onde continua a discriminação da mulher e das minorias, onde cresce

a experiência do niilismo, a consciência ergue-se indignada: o mundo não está em ordem e

não pode continuar tal como está! 

É concretamente nas experiências negativas de contraste que se aprende a distinção entre

bem e mal e o que significa dignidade humana. Como escreveu o célebre teólogo Edward

Schillebeeckx, “o que experienciamos como realidade, o que diariamente, através da

televisão e outros meios de comunicação social, vemos e ouvimos acerca desta realidade

não está de modo nenhum ‘em ordem’; há algo que está radicalmente mal. Por isso, a

experiência humana de sofrimento, maldade e infelicidade é fundamento e fonte de um

‘Não’ fundamental, que as pessoas pronunciam sobre a facticidade do seu ser-no-mundo.”

Nesta experiência radical, acessível a todos os homens e mulheres, encontra-se um duplo

elemento: por um lado, a indignação e revolta inamovíveis; por outro, “uma abertura para

uma outra situação, que constitui apelo radical ao nosso ‘Sim’. Podemos designá-lo como

um consentimento ‘no desconhecido’, no que nem sequer é determinável com conteúdo

positivo: um outro mundo melhor, que ainda não existe em parte alguma. Por outras

palavras: na pura aceitação da possibilidade de melhorar o nosso mundo; abertura ao

desconhecido e melhor.” Por um lado, um “Não” indestrutível, um veto radical ao mal; por

outro, um “Sim” aberto a um mundo digno do Homem, um “Sim” que é mais forte do que o

“Não”, pois é a condição de possibilidade da revolta e indignação contra a indignidade.

Estas experiências negativas de contraste constituem o núcleo da experiência ética, comum

a crentes e não-crentes, e base para um esforço solidário na luta contra a injustiça e na

construção de um mundo com rosto humano. Mas “aqueles que acreditam em Deus

preenchem religiosamente esta experiência fundamental, que é una, embora com dupla

face. Então, o ‘Sim aberto’ recebe mais orientação e perfil. O fundamento disso não é tanto,

pelo menos não imediatamente, a Transcendência do ‘divino’ (que é inexprimível, por assim

dizer, anónimo, não-articulável) como (pelo menos para os cristãos) o rosto humano

reconhecível dessa Transcendência, manifestada entre nós no homem Jesus, confessado

como Cristo e Filho de Deus. Deste modo, para os cristãos, o lamento radical da

Humanidade transforma-se numa esperança fundada. No núcleo mais íntimo da realidade,

está presente um suspiro da compaixão, da misericórdia; os crentes vêem aí o nome de

Deus. É assim a história dos cristãos.”

No mundo, não há provas constringentes da existência de Deus. Aliás, um deus

demonstrável não seria Deus, mas pura criação da razão. Mas a finitude é ineliminável, e

precisamente devido à finitude insuperável, a religiosidade surgirá sempre de novo na

história. Outra vez E. Schillebeeckx: “Para a fé, a finitude não-divina é precisamente o lugar

em que o finito e o Infinito se tocam no mais fundo e é neste contacto profundo que se

acende toda a religiosidade.” Por outro lado, o compromisso com o ser humano, na vivência

mundana, é, concretamente na tradição cristã, não apenas ético, pois tem uma dimensão

teológica. O cristianismo vê na luta pela humanidade do Homem uma profunda dimensão

religiosa latente, “que tem essencialmente a ver com a compreensão de fé de que a finitude

não é abandonada à sua solidão, mas transportada pela presença absoluta e salvífica do

Deus vivo.” O cristianismo contém em si um potencial inesgotável de libertação. Se

historicamente também foi causa de opressão e alienação, isso deveu-se a uma traição a si

mesmo.

No confronto entre a ética e a esperança, pensando nas vítimas inocentes, Deus virá sempre

à ideia, como viu a Escola Crítica de Frankfurt. Onde está a ética? Onde está Deus?, gritam as

vítimas.

Sem comentários:

Enviar um comentário