segunda-feira, 11 de março de 2024

MISTÉRIOS DA PÁSCOA, MISTÉRIOS DO MUNDO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. A Igreja Católica tem de se manifestar como proposta e propostas da arte de viver e de ajudar a viver em alegria. Precisamos, por isso, de descobrir e criar zonas libertadas ao serviço das várias dimensões da libertação. Daí, a importância da Páscoa. A morte não pode ser nem o nosso horizonte nem o nosso tempo de vida. Não há alternativa à Ressurreição. Sem essa convicção e sem a divulgar, andaremos sempre às escuras.

O cristianismo, em todas as suas manifestações, é o fruto das transformações da existência humana, como processo nunca acabado. Como interrogava Hans Küng[1] – Por que motivo o cristianismo sobreviveu sempre a todos os desenvolvimentos não cristãos que a sua história conheceu? Semelhante a um grande rio, cuja nascente é das mais modestas e que abriu caminho por entre paisagens mudáveis, esta religião soube sempre fecundar novas paisagens culturais.

O que é extraordinário é que o espírito do Nazareno conseguiu sempre romper, apesar das falhas das pessoas, das instituições e das constituições, desde que os fiéis já não se contentavam com palavras e se punham a segui-lo de uma maneira muito prática. A verdade do cristianismo não é apenas verdade para conhecer, mas verdade que faz viver.

Essas pessoas fiéis são os inumeráveis desconhecidos cujos nomes não figuram em nenhuma história da Igreja e que mesmo assim dão testemunho da força escondida do cristianismo, ou seja, aquilo que constitui a sua verdadeira história espiritual! Esse movimento da fé de incontáveis desconhecidos através dos séculos, que nortearam as suas vidas à luz dos valores, dos critérios e das atitudes do homem de Nazaré, que aprenderam com ele que eram bem-aventurados os pobres à face de Deus, os que não recorrem a nenhuma violência, os que têm fome e sede de justiça, que são misericordiosos, fazedores de paz e perseguidos pela justiça; os que aprenderam com ele o respeito e a partilha, o perdão e o arrependimento, a indulgência e a benevolência. Ainda hoje mostram que, a partir do momento em que o cristianismo se inspira realmente no seu Cristo e bebe nele a sua força, pode oferecer uma pátria espiritual onde os crentes se sentem em casa, uma morada da esperança e do amor. Não cessam de mostrar, no quotidiano das suas vidas no mundo, que é possível viver valores superiores, normas incondicionais, motivações profundas e ideais preeminentes. Mostram que a profundidade da sua fé em Cristo lhes permite igualmente superar o sofrimento e a culpabilidade, o desespero e a angústia. Não, a fé em Cristo não se reduz à promessa consoladora de um além; ela conduz também a protestar e a opor-se às condições injustas aqui e agora, nutrida e encorajada como é por uma nostalgia indissipável do «absolutamente outro».

2. Qual é então este espírito, qual é então esta força que está assim em acção por toda a parte? Depende tudo do puro acaso, da pura sorte? Tratar-se-á apenas de uma constelação estrutural? Não, para o cristão crente há indubitavelmente mais. Para ele, é claro que o poderoso espírito de Jesus Cristo não é o simples espírito humano, tratando-se antes do Espírito Santo, do Espírito, da Força e do Poder de Deus: presença do Espírito de Deus no coração dos crentes e, logo também, na comunidade dos crentes. Este Espírito vela por que não nos limitemos a falar do cristianismo, a fazer pesquisas, a informar e a ensinar, mas efectuemos a experiência dele com o coração, o vivamos e o realizemos na vida quotidiana – no bem e no mal, como sucede em todas as coisas humanas, e cheios de confiança neste Espírito de Deus. Eis porque os cristãos podem contar muito confiadamente com um futuro do cristianismo no terceiro milénio; eles podem contar com uma espécie de «infabilidade» dessa comunidade de fé no Espírito; o que não implica que uma determinada autoridade não possa perpetrar faltas ou erros numa certa situação, mas significa que, apesar de todas as faltas e erros, de todos os pecados e de todos os vícios, o Espírito mantém a comunidade dos crentes na verdade de Jesus Cristo[2].

3. Segundo S. Tomás de Aquino, a Lei Nova é a lei do amor e da liberdade. A Lei Antiga foi dada por meio de Moisés; a graça, a verdade e a liberdade vieram por Jesus Cristo, é a graça do Espírito Santo. Foi para a liberdade que Cristo nos libertou[3].

O Padre Chenu, que nos deixou a 11 de Fevereiro de 1990 com 95 anos, viveu segundo esta Lei Nova. Foi um grande dominicano que fecundou a cena católica francesa durante quase 70 anos. Na sua morte, foram muitos os testemunhos de afectuosa gratidão pela sua surpreendente presença na Igreja, na sua ordem e no seu século. Marie-Dominique Chenu participou nos trabalhos do Vaticano II, mas entrou pela porta dos fundos como teólogo de um bispo de Madagáscar. Ele não foi totalmente reabilitado como os que se tornaram especialistas oficiais do Concílio, Yves Congar e Karl Rahner. Embora fosse muito activo em numerosos grupos, embora tivesse sido o iniciador e o primeiro redactor da Mensagem do Concílio ao Mundo em 1962, ele ainda permanecia suspeito aos olhos de muitos.

No entanto, essa colecção de homenagens permanece hoje em dia extremamente actual e, ao mesmo tempo que testemunha as múltiplas facetas do Padre Chenu, reflete a infinita diversidade do povo cristão que são os frades dominicanos, os sindicalistas cristãos, os líderes empresariais, académicos, as grandes inspirações dos movimentos missionários do século XX, os Padres do Concílio. Com base em testemunhos muito concretos, ajuda-nos a compreender melhor como o “mito Chenu” nasceu pouco a pouco ao longo dos anos, tanto no seio da sua família religiosa como na Igreja universal, segundo Claude Geffré[4].

Invoquei esta presença porque ela realizou a novidade contínua do Espírito, no tecido humano, ligando diferentes épocas e respirando um espírito de incansável criatividade. Quando parecia que todos os caminhos de inovação estavam definitivamente bloqueados, ele nunca se rendeu aos movimentos integristas que desejavam um cristianismo só voltado para o passado.

Como nos revelou, emocionado, o grande medievalista, Jacques Le Goff, no funeral deste grande dominicano, o Padre Chenu ensinou-me, como talvez muitos historiadores quiseram fazer sem serem capazes, a esclarecer o desenvolvimento e a actividade da teologia e do pensamento religioso na história, situando-os no centro da história universal, onde, sem depender dele, podem colocar-se entre a história económica e a história social, a história das ideias e a história eclesiástica em todas as suas dimensões materiais e espirituais, como já tinha referido.

S. Paulo descobriu, na morte de Cristo, a vitória da esperança universal[5]. Cristo não é um derrotado, é um filho da Páscoa.

 

 

 

 



[1] Hans Küng, O Cristianismo. Essência e História, Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2012

[2]  Cf. pp. 731-734

[3] Cf. Jo 1, 1-17; Gal 5, 1

[4] Cf. L’hommage différé au Père Chenu, Cerf 1990

[5] 1 Cor 15, 54-58

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