domingo, 24 de março de 2024

PARA MEDITAR Frei Bento Domingues, O.P. 24 Março 2024

 

 

1. No Domingo passado, tentei mostrar que a realidade de um Deus de pura bondade não pode ser o responsável da crucifixão de Jesus de Nazaré. Continuo fiel ao que, então, escrevi, mas com muitas hesitações acerca da avaliação histórica do percurso atribuído a Jesus.

O Cristianismo é uma religião marcada pela História e que marcou a história de muitas áreas geográficas e culturais, por isso se coloca, depois de uma data, o a.C. ou d.C. É normal que se procure saber em que época, e até o dia, em que Jesus nasceu e morreu. Dois mil anos de história, em tantos contextos, tornam difícil uma resposta única. No entanto, não é uma mera curiosidade das ciências humanas. Surge do afecto, da relação vital com alguém – Jesus Cristo – que se manifestou, ou descobrimos, como sentido salvífico para a vida e para a morte.

A figura histórica de Jesus de Nazaré está marcada pelo tempo de Pilatos, como governador da província romana da Judeia. Calcula-se que terá morrido entre 26 e 36 d.C.[1] Se acrescentarmos o período mais curto ou mais longo possível da actividade de Jesus, ao ponto mais inicial ou mais tardio possível da sua manifestação (26 ou 29), temos um lapso de tempo que vai de 27 a 34 d.C.

Outra delimitação possível resulta dos cálculos de astronomia e calendário, embora estes não possam dar uma certeza última. A pergunta que se impõe é esta: quando é que o dia 14 ou 15 de Nissan (primeiro mês de 30 dias do calendário judaico religioso) foi numa sexta-feira, dia da morte de Jesus?

Nos anos 27 e 34 d.C., o dia 15 de Nissan foi uma sexta-feira, de modo que esses anos estariam de acordo com a cronologia sinóptica. O mesmo se aplica para o ano 31, embora com menor probabilidade.

As circunstâncias, nos anos 30 e 33, encaixam-se na cronologia joanina, em que o dia 14 de Nissan, o dia de preparação para a Páscoa, foi uma sexta-feira. Assim, o ano 30 d.C. tem a maior probabilidade de ser o ano em que Jesus foi morto, o que não exclui absolutamente outras datas.

Jesus nasceu entre os anos 6 e 4 a.C., provavelmente antes da morte de Herodes I. A sua aparição pública durou apenas um breve período no início do tempo de governo de Pôncio Pilatos (26-36 d.C.). Jesus foi provavelmente executado na festa da Páscoa judaica do ano 30 d.C.

Foi falsamente julgado e condenado à pior das mortes, mas nenhum dos seus juízes poderia sonhar que, um dia, o próprio tempo seria contado com base n’Ele. Essa contagem (cronologicamente imprecisa) traz em si a mensagem de que, com Jesus, se deu uma reviravolta na História. Ela é independente da pergunta se Jesus nasceu em 4 ou 6 a.C.; além disso, também é independente da interpretação dos que, durante a vida de Jesus, esperaram tudo dessa figura. A mensagem de Jesus e as esperanças dos seus contemporâneos estavam marcadas pelo que julgavam o fim dos tempos. Se o cálculo cristão do tempo, situa Jesus antes do fim dos tempos, então, isso altera o significado que o próprio Jesus deu à sua actividade.

Possivelmente, essa nova interpretação começou logo no chamado Cristianismo primitivo. O evangelista Lucas fez um relato da história da Igreja primitiva (Actos dos Apóstolos), depois de ter escrito o seu Evangelho. Como resultado, Jesus aparece como uma realidade da História humana, mas que a excede. No entanto, a interpretação original continua preservada quando se percebe algo, em Jesus, que atravessa qualquer tempo e lugar.

Na discussão sobre o dia da morte de Jesus, oscila-se entre a cronologia joanina (Jesus foi morto no dia da preparação da festa pascal) e a cronologia sinóptica (Jesus foi morto no primeiro dia da festa pascal). Pode-se, contudo, pensar que nem João nem os sinópticos ofereçam a cronologia exacta[2]. Poderá sempre ser revista e é importante que o possa ser, segundo o desenvolvimento das ciências humanas. No entanto, não é nenhuma data nem nenhuma cronologia que nos pode salvar. O que nos salva é a energia divina que percorre toda a História humana, mediante o acolhimento fervoroso dessa acção divina.

2. Ninguém nega a importância dos primeiros e últimos tempos da vida de Jesus, mas por vezes esquecemos a história da Igreja, a história de fidelidade e infidelidade ao Espírito no tempo, desde o Pentecostes até aos nossos dias.

Não se devia reservar esse estudo para as Faculdades de Teologia ou para os Institutos de Investigação Histórica. Pelo contrário, se é fundamental estar sempre pronto a dar razão da nossa esperança, a história da Igreja faz parte dessa teologia narrativa. Como escreveu Hugo Santos, precisava uma palavra que contasse // a estranha solidez da esperança[3].

As Igrejas Cristãs definem-se pela sua relação viva com Jesus Cristo, em qualquer época do ano. Para os cristãos mais fervorosos, Jesus de Nazaré nunca se eclipsa. É realidade quotidiana, mas com acentuações diversas: o Natal, o Pentecostes e a Páscoa.

Nos últimos tempos, têm sido imensos os estudos dos começos do Cristianismo, assim como, os do processo da Paixão e Morte de Jesus de Nazaré. Por que é que todos os anos levantamos estas questões, nunca resolvidas? Talvez porque, como diz S. Pedro, Ele [Jesus] é a pedra que os construtores desprezaram e que se transformou em pedra angular, pois não há debaixo do céu outro nome que nos possa salvar[4].

3. No processo de Jesus, parece que as mulheres não tiveram nenhum papel relevante. São referidas apenas duas, uma de acusação – a criada do Sumo Sacerdote – e outra de defesa – a mulher de Pilatos[5].

Puro engano. No caminho para o Calvário, elas não se escondem. Pelo contrário, mostram a sua presença activa, marcadamente simbólica.

No Evangelho de S. João, a mãe de Jesus aparece nas Bodas de Caná e volta ao silêncio. Rompe apenas com esse silêncio, quando o seu filho já está abandonado na Cruz:  Junto à cruz de Jesus estavam, de pé, sua mãe e a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas, e Maria Madalena. Então, Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que Ele amava, disse à mãe: Mulher, eis o teu filhoDepois, disse ao discípulo: Eis a tua mãe! E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a em sua casa[6].

Chegados a este ponto, temos de reler toda a vida de Jesus, dos seus discípulos, dos seus adversários e familiares, para captar o significado da manhã da Ressurreição, assunto de mulheres. Será esse tema que me desafia para a próxima crónica.

 

 



[1] Cf. Antiguidades Judaicas 18, 35.89

[2] Cf. Gerd Theissen e Annette Merz, O Jesus Histórico. Um Manual, Edições Loyola, 2004, pp. 179-181

[3] Hugo Santos, Nona Carta para um Deus ausente, in Urbano Tavares Rodrigues, os poemas da minha vida, Público, 2005, p. 93

[4] Cf. Act 4, 11-12

[5] Cf. Mc 14, 66-72 e Mt 27, 19

[6] Jo 19, 25-27

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