1. No Domingo passado, tentei
mostrar que a realidade de um Deus de pura bondade não pode ser o responsável
da crucifixão de Jesus de Nazaré. Continuo fiel ao que, então, escrevi, mas com
muitas hesitações acerca da avaliação histórica do percurso atribuído a Jesus.
O Cristianismo é uma religião marcada pela História e que
marcou a história de muitas áreas geográficas e culturais, por isso se coloca,
depois de uma data, o a.C. ou d.C. É normal que se procure saber
em que época, e até o dia, em que Jesus nasceu e morreu. Dois mil anos de
história, em tantos contextos, tornam difícil uma resposta única. No entanto, não
é uma mera curiosidade das ciências humanas. Surge do afecto, da relação vital
com alguém – Jesus Cristo – que se manifestou, ou descobrimos, como sentido
salvífico para a vida e para a morte.
A figura histórica de Jesus de Nazaré está marcada pelo tempo
de Pilatos, como governador da província romana da Judeia. Calcula-se que terá
morrido entre 26 e 36 d.C.[1]
Se acrescentarmos o período mais curto ou mais longo possível da actividade de
Jesus, ao ponto mais inicial ou mais tardio possível da sua manifestação (26 ou
29), temos um lapso de tempo que vai de 27 a 34 d.C.
Outra delimitação possível resulta dos cálculos de
astronomia e calendário, embora estes não possam dar uma certeza última. A
pergunta que se impõe é esta: quando é que o dia 14 ou 15 de Nissan (primeiro
mês de 30 dias do calendário judaico religioso) foi numa sexta-feira, dia da
morte de Jesus?
Nos anos 27 e 34 d.C., o dia 15 de Nissan foi uma
sexta-feira, de modo que esses anos estariam de acordo com a cronologia
sinóptica. O mesmo se aplica para o ano 31, embora com menor probabilidade.
As circunstâncias, nos anos 30 e 33, encaixam-se na
cronologia joanina, em que o dia 14 de Nissan, o dia de preparação para a
Páscoa, foi uma sexta-feira. Assim, o ano 30 d.C. tem a maior probabilidade de
ser o ano em que Jesus foi morto, o que não exclui absolutamente outras datas.
Jesus nasceu entre os anos 6 e 4 a.C., provavelmente
antes da morte de Herodes I. A sua aparição pública durou apenas um breve
período no início do tempo de governo de Pôncio Pilatos (26-36 d.C.). Jesus foi
provavelmente executado na festa da Páscoa judaica do ano 30 d.C.
Foi falsamente julgado e condenado à pior das mortes, mas
nenhum dos seus juízes poderia sonhar que, um dia, o próprio tempo seria
contado com base n’Ele. Essa contagem (cronologicamente imprecisa) traz em si a
mensagem de que, com Jesus, se deu uma reviravolta na História. Ela é
independente da pergunta se Jesus nasceu em 4 ou 6 a.C.; além disso, também é
independente da interpretação dos que, durante a vida de Jesus, esperaram tudo
dessa figura. A mensagem de Jesus e as esperanças dos seus contemporâneos
estavam marcadas pelo que julgavam o fim dos tempos. Se o cálculo
cristão do tempo, situa Jesus antes do fim dos tempos, então, isso altera
o significado que o próprio Jesus deu à sua actividade.
Possivelmente, essa nova interpretação começou logo no
chamado Cristianismo primitivo. O evangelista Lucas fez um relato da história
da Igreja primitiva (Actos dos Apóstolos), depois de ter escrito o seu Evangelho.
Como resultado, Jesus aparece como uma realidade da História humana, mas que a
excede. No entanto, a interpretação original continua preservada quando se
percebe algo, em Jesus, que atravessa qualquer tempo e lugar.
Na discussão sobre o dia da morte de Jesus, oscila-se
entre a cronologia joanina (Jesus foi morto no dia da preparação da festa
pascal) e a cronologia sinóptica (Jesus foi morto no primeiro dia da festa
pascal). Pode-se, contudo, pensar que nem João nem os sinópticos ofereçam a
cronologia exacta[2].
Poderá sempre ser revista e é importante que o possa ser, segundo o
desenvolvimento das ciências humanas. No entanto, não é nenhuma data nem
nenhuma cronologia que nos pode salvar. O que nos salva é a energia divina
que percorre toda a História humana, mediante o acolhimento fervoroso dessa
acção divina.
2. Ninguém nega a importância
dos primeiros e últimos tempos da vida de Jesus, mas por vezes esquecemos a
história da Igreja, a história de fidelidade e infidelidade ao Espírito no
tempo, desde o Pentecostes até aos nossos dias.
Não se devia reservar esse estudo para as Faculdades de
Teologia ou para os Institutos de Investigação Histórica. Pelo contrário, se é
fundamental estar sempre pronto a dar razão da nossa esperança, a história da
Igreja faz parte dessa teologia narrativa. Como escreveu Hugo Santos, precisava
uma palavra que contasse // a estranha solidez da esperança[3].
As Igrejas Cristãs definem-se pela sua relação viva com
Jesus Cristo, em qualquer época do ano. Para os cristãos mais fervorosos, Jesus
de Nazaré nunca se eclipsa. É realidade quotidiana, mas com acentuações
diversas: o Natal, o Pentecostes e a Páscoa.
Nos últimos tempos, têm sido imensos os estudos dos
começos do Cristianismo, assim como, os do processo da Paixão e Morte de Jesus
de Nazaré. Por que é que todos os anos levantamos estas questões, nunca
resolvidas? Talvez porque, como diz S. Pedro, Ele [Jesus] é a pedra que os
construtores desprezaram e que se transformou em pedra angular,
pois não há debaixo do céu outro nome que nos possa salvar[4].
3. No processo de Jesus, parece que as mulheres não
tiveram nenhum papel relevante. São referidas apenas duas, uma de acusação – a
criada do Sumo Sacerdote – e outra de defesa – a mulher de Pilatos[5].
Puro
engano. No caminho para o Calvário, elas não se escondem. Pelo contrário,
mostram a sua presença activa, marcadamente simbólica.
No
Evangelho de S. João, a mãe de Jesus aparece nas Bodas de Caná e volta ao
silêncio. Rompe apenas com esse silêncio, quando o seu filho já está abandonado
na Cruz: Junto à cruz de Jesus
estavam, de pé, sua mãe e a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas, e Maria
Madalena. Então, Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o
discípulo que Ele amava, disse à mãe: Mulher, eis o teu filho! Depois, disse ao discípulo: Eis a tua mãe! E, desde aquela
hora, o discípulo acolheu-a em sua casa[6].
Chegados a
este ponto, temos de reler toda a vida de Jesus, dos seus discípulos, dos seus
adversários e familiares, para captar o significado da manhã da Ressurreição, assunto
de mulheres. Será esse tema que me desafia para a próxima crónica.
[1]
Cf. Antiguidades Judaicas 18, 35.89
[2]
Cf. Gerd Theissen e Annette Merz, O Jesus Histórico. Um Manual, Edições
Loyola, 2004, pp. 179-181
[3] Hugo
Santos, Nona Carta para um Deus ausente, in Urbano Tavares Rodrigues, os
poemas da minha vida, Público, 2005, p. 93
[4] Cf. Act
4, 11-12
[5] Cf. Mc 14,
66-72 e Mt 27, 19
[6] Jo 19,
25-27
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