1. É costume dividir, de forma
muito simples (talvez de forma simplória), a história da Igreja em três
momentos fundamentais: a Igreja dos primeiros séculos, a Igreja da Idade Média e
a Igreja da Idade Moderna. O grande inconveniente desta apresentação é
continuar a fazer da Igreja o seu centro, algo que o Papa Francisco, com razão,
tem rejeitado.
A Igreja, em todas as suas épocas, não pode ser o centro
de si mesma. Ela deve remeter continuamente para a prática de Jesus Cristo,
testemunhada no Novo Testamento. É Ele o verdadeiro centro insubstituível da
Igreja e da humanidade. E porquê? Porque foi Ele que fez da sua vida uma
entrega a Deus e a todos os povos, de todos os tempos e lugares. Na sua
actividade, num tempo e num lugar históricos e precisos, pela sua união a Deus,
attingit omnia tempora et loca[1].
Na
sua célebre Exortação Apostólica programática, Evangelii Gaudium,
o Papa Francisco, convoca a Igreja a realizar a sua transformação missionária,
isto é, a ser uma Igreja «em saída». Não se trata apenas de uma belíssima
declaração, mas de tornar toda a Igreja agente de comunhão, participação e
missão.
Encontrou,
na redescoberta da dimensão sinodal, um caminho para vencer a tentação da
Igreja se julgar o centro de si mesma.
A
Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários que «primeireiam»,
que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam –
desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa! A comunidade missionária [a
verdadeira Igreja] experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no
amor (cf. 1 Jo 4, 10) e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe
tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às
encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo
inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia
infinita do Pai e a sua força difusiva.
Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa!
Como consequência, a Igreja, em conversão, sabe «envolver-se». Jesus lavou os
pés aos seus discípulos. O Senhor envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de
joelhos diante dos outros para os lavar; mas, logo a seguir, diz aos
discípulos: «Sereis felizes se puserdes isto em prática» (Jo 13,
17). Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos
outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação
e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Os
evangelizadores contraem assim o «cheiro das ovelhas», e estas escutam a sua
voz.
Em
seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar». Deve acompanhar
a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam.
Conhece as longas esperas e o seu fundamento apostólico. A evangelização exige
muita paciência e evita deter-se a considerar as limitações.
Fiel
ao dom do Senhor, sabe também «frutificar». A comunidade evangelizadora
mantém-se atenta aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e
não perde a paz por causa do joio. O semeador, quando vê surgir o joio no meio
do trigo, não tem reacções lastimosas ou alarmistas. Encontra o modo para fazer
com que a Palavra se incarne numa situação concreta e dê frutos de vida nova,
apesar de serem aparentemente imperfeitos ou defeituosos.
O
verdadeiro discípulo sabe oferecer a vida inteira e gastá-la até ao martírio
como testemunho de Jesus Cristo, mas o seu sonho não é estar cheio de inimigos,
mas antes, que a Palavra seja acolhida e manifeste a sua força libertadora e
renovadora.
Por
fim, a comunidade evangelizadora jubilosa sabe sempre «festejar»: celebra e
festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na evangelização. No meio
desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa
torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e evangeliza-se com a beleza
da liturgia, que é também celebração da actividade evangelizadora e fonte de um
renovado impulso para se dar[2].
2. Nada disto é possível se não fizermos
da pastoral um processo de conversão contínuo. É o próprio Papa que nos lembra algo
que nunca deve ser esquecido. Ele sabe que, hoje, os documentos não suscitam o
mesmo interesse que noutras épocas, acabando rapidamente esquecidos.
Apesar
disso, sublinha que, aquilo que pretende deixar expresso nesta Exortação,
possui um significado programático e tem consequências importantes.
«Espero
que todas as comunidades se esforcem por actuar os meios necessários para
avançar no caminho duma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar
as coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma «simples
administração». Constituamo-nos em «estado permanente de missão», em
todas as regiões da terra»[3].
Já
o Papa Paulo VI tinha convidado a alargar o apelo à renovação de modo que
ressaltasse, com força, que ela não se dirige apenas aos indivíduos, mas à
Igreja inteira.
Lembremos,
diz Bergoglio, este texto memorável, que não perdeu a sua força interpeladora:
«A Igreja deve aprofundar a consciência de si mesma, meditar sobre o seu
próprio mistério (...). Desta consciência esclarecida e operante deriva
espontaneamente um desejo de comparar a imagem ideal da Igreja, tal como Cristo
a viu, quis e amou, ou seja, como sua Esposa santa e imaculada (Ef 5,
27), com o rosto real que a Igreja apresenta hoje. (…) Em consequência disso,
surge uma necessidade generosa e quase impaciente de renovação, isto é, de
emenda dos defeitos, que aquela consciência denuncia e rejeita, como se fosse
um exame interior ao espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si mesmo».
3. Tornou-se um lugar comum dizer que a
Igreja não é o centro do Cristianismo. Ao repetir esta evidência teológica e
pastoral, temos de ter cuidado para não dar a ideia de que a Igreja, não sendo
o centro, seria insignificante para a fé cristã. Se isso fosse verdade, também seria
inútil a reforma das próprias expressões da Igreja. E, no entanto, é ela o
verdadeiro e primordial sacramento – sinal e instrumento – de Jesus Cristo na
complexidade deste mundo. De facto, quando se fala de reforma da Igreja, não se
pode esquecer a observação do grande teólogo, Yve Congar, O.P., ao sustentar
que existem verdadeiras e falsas reformas.
«Hoje,
torna-se cada vez mais evidente que é necessária uma verdadeira hermenêutica
evangélica para compreender melhor a vida, o mundo, os seres humanos; não de
uma síntese, mas de uma atmosfera espiritual de investigação e certeza
fundamentada nas verdades da razão e da fé», como diz Bergoglio, na Veritatis
Gaudium, nº3 (2017).
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