Saúde, medicina, salvação
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
13 abril 2024
Os doentes estiveram entre as preocupações e cuidados maiores de Jesus. A saúde é, de
facto, um bem precioso, mas só damos por isso, quando a perdemos.
A saúde tem um carácter pluridimensional. No sentido autenticamente humano inclui
vários níveis:
a) a saúde somática: o bom estado físico, portanto, um organismo capaz de
desempenhar normalmente as suas funções;
b) a saúde psíquica: autonomia mental para enfrentar as dificuldades do meio e
capacidade para estabelecer relações gratificantes interpessoais e com o ambiente;
c) a saúde social: se não cuida do meio ambiente, da habitação, da alimentação, da
harmonia social, da saúde pública, como salvaguardarão as pessoas a sua saúde?
d) a saúde ecológica: se o homem é solidário da biosfera em geral, a sua saúde
dependerá da saúde ambiental: ar puro e não-contaminado, água limpa, ambiente belo,
sem poluição sonora;
e) a saúde espiritual e religiosa: a dimensão de transcendência do ser humano tem de
ser salvaguardada, num duplo sentido: a interioridade e a transcendência são
elementos constituintes da saúde plenamente humana, mas será necessário prevenir
contra crenças e ideias neuróticas, que prejudicam o ser humano.
Depois da Segunda Guerra Mundial, divulgou-se a definição de saúde da Organização
Mundial de Saúde, que a considera “um estado de completo bem-estar físico, mental e
social”. Mas ela foi acusada de dar uma concepção estática de saúde. Haveria também o
perigo de esquecer a capacidade de integração do sofrimento e da própria morte.
Impõe-se, por outro lado, acentuar a importância da relação com o ambiente material e
humano, em constante transformação. Assim, Francisco J. Alarcos, depois de
considerar todos estes níveis e dimensões, esboçou a seguinte tentativa de definição: “A
saúde é a capacidade de realizar eficazmente as funções requeridas num dado meio, e
como este meio não deixa de evoluir, a saúde é um processo de adaptação contínua a
múltiplos micróbios, contaminações, tensões e problemas que o Homem diariamente
tem de enfrentar. Mas o sujeito humano está também em constante evolução. A saúde é
a capacidade de adaptar-se a um meio ambiente que muda; capacidade de crescer, de
envelhecer, de sarar, por vezes com sofrimentos inevitáveis, e finalmente de esperar a
morte em paz.”
A saúde comporta viver com sentido e, portanto, estar a salvo de tudo o que desumaniza
e impede a realização adequada e plenamente humana. Por exemplo, saudar
Padre e professor de Filosofia
13 abril 2024
Os doentes estiveram entre as preocupações e cuidados maiores de Jesus. A saúde é, de
facto, um bem precioso, mas só damos por isso, quando a perdemos.
A saúde tem um carácter pluridimensional. No sentido autenticamente humano inclui
vários níveis:
a) a saúde somática: o bom estado físico, portanto, um organismo capaz de
desempenhar normalmente as suas funções;
b) a saúde psíquica: autonomia mental para enfrentar as dificuldades do meio e
capacidade para estabelecer relações gratificantes interpessoais e com o ambiente;
c) a saúde social: se não cuida do meio ambiente, da habitação, da alimentação, da
harmonia social, da saúde pública, como salvaguardarão as pessoas a sua saúde?
d) a saúde ecológica: se o homem é solidário da biosfera em geral, a sua saúde
dependerá da saúde ambiental: ar puro e não-contaminado, água limpa, ambiente belo,
sem poluição sonora;
e) a saúde espiritual e religiosa: a dimensão de transcendência do ser humano tem de
ser salvaguardada, num duplo sentido: a interioridade e a transcendência são
elementos constituintes da saúde plenamente humana, mas será necessário prevenir
contra crenças e ideias neuróticas, que prejudicam o ser humano.
Depois da Segunda Guerra Mundial, divulgou-se a definição de saúde da Organização
Mundial de Saúde, que a considera “um estado de completo bem-estar físico, mental e
social”. Mas ela foi acusada de dar uma concepção estática de saúde. Haveria também o
perigo de esquecer a capacidade de integração do sofrimento e da própria morte.
Impõe-se, por outro lado, acentuar a importância da relação com o ambiente material e
humano, em constante transformação. Assim, Francisco J. Alarcos, depois de
considerar todos estes níveis e dimensões, esboçou a seguinte tentativa de definição: “A
saúde é a capacidade de realizar eficazmente as funções requeridas num dado meio, e
como este meio não deixa de evoluir, a saúde é um processo de adaptação contínua a
múltiplos micróbios, contaminações, tensões e problemas que o Homem diariamente
tem de enfrentar. Mas o sujeito humano está também em constante evolução. A saúde é
a capacidade de adaptar-se a um meio ambiente que muda; capacidade de crescer, de
envelhecer, de sarar, por vezes com sofrimentos inevitáveis, e finalmente de esperar a
morte em paz.”
A saúde comporta viver com sentido e, portanto, estar a salvo de tudo o que desumaniza
e impede a realização adequada e plenamente humana. Por exemplo, saudar
(de salutem dare) significa que estar são inclui “dar saúde” a quantos nos rodeiam, viver
em solidariedade com todos, na alegria e na dor. No sentido íntegro da palavra, saúde é
sinónimo de viver humana e harmoniosamente, com inclusão da esperança e da
abertura à transcendência. Há hoje imensos estudos científicos que mostram a relação
positiva entre uma prática sadia da religião e a saúde e até maior longevidade.
Mas acontece que ficamos doentes. Então socorremo-nos dos médicos. Também aqui a
etimologia das palavras é iluminante. Significativamente, o radical med., donde deriva
em latim mederi, com o sentido de ponderar, curar, cuidar de, restabelecer o equilíbrio,
está na base de moderação, medicina e meditação. Aí está, pois, a saúde com o sentido
holístico de harmonia, e o médico e o doente não se encontram como um técnico e uma
máquina (o corpo) desarranjada, mas como dois seres humanos em diálogo,
estabelecendo um pacto: o doente entrega-se à solicitude de outro ser humano, que,
afectado por um pedido, escuta compassivamente e põe a sua arte ao serviço de uma
existência ameaçada.
Isso acontece, em princípio, numa clínica, num hospital. Veja-se, mais uma vez, a
etimologia. Clínica provém do grego klínein, inclinar-se. Hospital relaciona-se com
hóspede. Um hospital deveria ser, portanto, sempre o lugar da hospedagem acolhedora
e amiga. Mas é-o realmente? Veja-se a conexão entre as palavras
latinas hospes e hostis (hóspede e inimigo, respectivamente), como pode ver-se, por
exemplo, hoje na palavra hostel, como se o hóspede, enquanto estranho, fosse ou
pudesse tornar-se alguém hostil. Nos hospitais, hoje, para lá da efectividade, torna-se,
pois, urgente recuperar a afectividade da hospedagem, para que o doente e o moribundo
possam ser reconhecidos na sua dignidade e não como alguém estranho e hostil.
É bom saber do sentido holístico de saúde - sem esquecer Kant dizendo que O Céu, para
aliviar as muitas dificuldades, nos deixou três coisas: “A esperança, dormir bem, rir
com alegria” -, que implica também, no meio da agitação constante, capacidade para
parar e não esquecer o melhor e poder pensar e meditar e ouvir música e contemplar a
beleza de uma simples folha de erva, de um pôr-do-sol e do céu estrelado na sua
quietude exaltante. Outra vez a etimologia: pensar vem do latim pensare, pesar razões,
mas de pensare provém também o penso sanitário: pensar cura. Aí está, pois, a ameaça
hoje das redes sociais e do “dedar” constante e absorto nos ecrãs e as nefastas
consequências desse brutal consumo para o cérebro ao nível da saúde mental e da
capacidade para ler, reflectir, estudar...
A saúde está intrinsecamente vinculada ao cuidado. Viver é cuidar. Cuidar de nós,
cuidar dos outros - a solidão mata -, cuidar da natureza, dos amigos - a vida sem amigos
não presta -, cuidar do Sagrado, da Transcendência, do sentido, Sentido último. Salus,
salutis dá origem a saúde e a salvação.
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