domingo, 21 de abril de 2024

Declaração sobre a dignidade humana. 1 Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 20 abril 2024

 Declaração sobre a dignidade humana. 1

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

20 abril 2024

No passado dia 8, o Vaticano publicou, com a aprovação do Papa Francisco, a Declaração
Dignitas infinita (Dignidade infinita), um documento elaborado ao longo de 8 anos pelo
Dicastério da Doutrina da Fé, presidido desde 2023 pelo teólogo argentino cardeal Victor
Manuel Fernández. Nela, que lembra que este ano se celebram os 75 anos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, onde a palavra dignidade aparece cinco vezes e é declarada
como “intrínseca a todos os membros da família humana” e que “todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, tudo gira, como diz o título - Dignidade
infinita - à volta da dignidade humana, “uma questão central no pensamento cristão”, como
sublinhou o prefeito do Dicastério. De facto, o que é o Evangelho senão uma notícia boa e
felicitante: Deus é bom, Pai e Mãe, tendo todos os homens e mulheres a dignidade soberana
de filhos de Deus?

Esta dignidade é “ontológica”, portanto, inerente ao ser humano de modo intrínseco e
inalienável em qualquer circunstância, pertence-lhe pelo simples facto de existir. É
concedida por Deus que, como diz o livro do Génesis, “criou o Homem à sua imagem e
semelhança”, imagem indelével. “A Igreja, à luz da Revelação, reafirma e confirma
absolutamente a dignidade ontológica da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de
Deus e salva em Jesus Cristo”, “dignidade inalienável que corresponde à natureza humana,
para lá de qualquer mudança cultural”, “um dom recebido”, presente “numa criança não-
nascida, numa pessoa inconsciente, num ancião em agonia”. “A Igreja proclama a igual
dignidade de todos os seres humanos, independentemente da sua condição de vida ou das
suas qualidades.” Jesus identificou-se com os últimos e ao ressuscitar revelou-nos que “o
aspecto mais sublime da dignidade do Homem consiste na sua vocação à comunhão com
Deus.”

Também pela razão o ser humano conclui pela sua dignidade inviolável: quando, por
exemplo, reflecte sobre a liberdade - auto-possui-se, é senhor de si, um animal que tem
linguagem (zôon lógon échon) e, por isso, animal político (zôon politikón), como bem viu
Aristóteles: capaz de distinguir o bem e o mal, o conveniente e o inconveniente, o justo e o
injusto, - e sobre si mesmo: auto-consciente, consciente de que é consciente, afirmando-se
como um eu único e perguntando ao infinito pelo Infinito, Deus...

Mas, na Declaração insiste-se na fundamentação na fé. E só posso estar de acordo com o
teólogo José L. González Faus, quando escreve que, embora melhorável - ao longo da
exposição também levantarei interrogações a confirmá-lo -, o documento “constitui uma
fundamentação de e um apelo a essa tarefa hoje tão urgente e comum a crentes e não-
crentes: a fé na absoluta dignidade do ser humano e o imperativo categórico de trabalhar
pelo respeito dessa dignidade como a tarefa mais importante no mundo de hoje”,
contribuindo, assim, para “um mundo menos cruel e menos triste”.

Desgraçadamente, como sublinhou o cardeal prefeito do Dicastério, “a dignidade humana
não é algo que a Igreja tenha reconhecido sempre com a mesma clareza: houve um
crescimento na compreensão. Acrescenta-se, aprofunda-se a compreensão, notamos que no
interior da própria Bíblia há uma explicação crescente.” E lembrou, como exemplo, que, se
em 1452 o Papa Nicolau V numa carta aos reis de Portugal tinha justificado e até ordenado a
escravatura - cito parte da Bula, que constitui, no meu entender, uma das maiores
vergonhas da Igreja: “Nós... concedemos faculdade plena e livre para invadir, conquistar,
combater, vencer e submeter quaisquer sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, em
qualquer parte que estiverem, e os reinos, ducados principados, domínios, possessões... e
reduzir a escravidão perpétua as pessoas dos mesmos...” -, Paulo III, em 1537, lançou a
excomunhão sobre quem a defendia, pois tratava-se “de humanos.
 Para sublinhar que nunca se perde a dignidade intrínseca, o documento apresenta a
dignidade segundo quatro dimensões: precisamente a dignidade ontológica; a dignidade
moral, que se refere à liberdade e ao seu exercício; a dignidade social, que se refere às
condições de vida; a dignidade existencial, em conexão com o modo como nos apercebemos
da própria dignidade: “Hoje fala-se cada vez mais de uma vida ‘digna’ e de uma vida
‘indigna’; referimo-nos a situações propriamente existenciais, por exemplo, o caso de uma
pessoa que, embora nada de essencial para viver lhe falte, tem, por diversas razões,
dificuldades para viver na paz, na alegria e na esperança.”
Referindo-se a esta “distinção entre a dignidade ontológica que nunca se perde e outra
social, moral e existencial que podem crescer ou diminuir com as circunstâncias da vida”, o
cardeal esclarece: “Posso ter uma vida indigna, mas nunca perco a inalienável dignidade
humana. Os outros podem fazer com que eu leve uma vida indigna, mas nunca me tiram a
dignidade por ser humano: a dignidade é a mesma para alguém nascido na Itália ou na
Etiópia, em Israel ou em Gaza. É exactamente a dignidade inalienável. Não há nenhuma
circunstância que faça com que uma pessoa tenha menos valor, a sua dignidade permanece
inviolável em qualquer contexto, situação, cultura.”
Este esclarecimento é importante, para não dizer decisivo, pois chave essencial de leitura
da Declaração é ver a dignidade, sempre, “para lá de toda a circunstância”. Continuaremos.

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