1. Tenho muitas saudades da Páscoa que vivi, em
criança, numa aldeia isolada do Alto Minho. Não era só um povo em festa. Era
uma celebração cósmica. Não se sabia se era a natureza que se associava às
populações ou as populações à natureza. E a Cruz de Cristo, enfeitada e
iluminada, percorria todos os caminhos e entrava em todas as casas. Beijar a
Cruz vitoriosa era uma alegria da alma!
Eu não sabia nada das
festas dos povos do Próximo Oriente Antigo nem da evolução da festa da Páscoa
no interior do judaísmo. Não conhecia nem a história nem os calendários das
celebrações cristãs da Páscoa ao longo dos séculos. Mas acreditava que a morte
não era invencível.
A Páscoa inculturada é,
ainda, a dos restos desgarrados que subsistem na religiosidade popular. A outra
desenvolve-se dentro das paredes dos templos para minorias fervorosas. A nova
reforma não parece marcar, cultural e espiritualmente, as gerações mais
recentes. A Páscoa, hoje, para muita gente, está reduzida às férias da Páscoa.
Em
2007, tive a graça de participar na Semana Santa que culminou na espantosa
Vigília Pascal, na nova e belíssima Igreja de S. Domingos, no Alto dos
Moinhos. Começou no meio da natureza com
o fogo novo, um fogo divino e humano, Alfa e Ómega do universo, luz do mundo,
Cristo cósmico. Ao entrar no templo, a liturgia irrompeu com um poema cantado
para que a noite da nossa alma brilhasse como o dia e a sua escuridão fosse
clara como a luz. A sequência das leituras, do Antigo e Novo Testamento,
ritmada pelo canto, abriu com um poema da Bíblia dedicado à Criação, o grande
livro da sabedoria de Deus anterior a todos os livros.
É
um belo poema bíblico, não é uma explicação científica sobre a evolução. São
linguagens diferentes para dizerem diferentes dimensões da realidade. Segundo a
revelação, não há rivalidade entre Deus e as energias da natureza. O
reconhecimento da absoluta transcendência da acção de Deus no mundo funda a
autonomia das criaturas, o jogo das leis da natureza e deixa tudo livre para a
investigação das ciências, para as iniciativas humanas que integrem a estética,
a ética e a mística. Já não há natureza sem a marca da história humana, para o
melhor e para o pior.
Não
é por acaso que esta Vigília, ao despertar-nos para o essencial, evoque um
imenso jardim, semeado de todas as espécies vegetais e animais, entregue ao
cuidado da liberdade do ser humano.
2. O Novo Testamento é feito de narrativas e textos
para dizer que Jesus Cristo e a sua causa não são um assunto arrumado na cruz e
no túmulo. Continuam vivos e actuantes.
Cristo não deixou nada
escrito e nenhuma obra de arte lhe foi atribuída, mas os Actos dos Apóstolos
atrevem-se a dizer que ele é o "Autor da vida" (Act 3, 15) e que
trocou as voltas à morte. Ela não O conseguiu reter em seu poder (Act 2, 24).
É evidente que se trata
de experiências e convicções da fé que alimentam a lógica interna do Novo
Testamento. Da realidade evocada pela ressurreição não há reportagens nem
fotografias porque não é um dado empírico nos limites da nossa história. Todas
as narrativas e todos os comentários do Novo Testamento não a pretendem nem
descrever nem explicar e, quando S. Paulo o tentou, ficou completamente sem saber
o que dizer (1Cor 15). A preocupação dos textos é outra: procuram mostrar que
há formas de viver, neste mundo, que nenhuma morte pode vencer. Tudo isto
parece misterioso e biologicamente absurdo.
S. João escreveu uma
carta com um teste para avaliar as consequências das celebrações da Páscoa na
vida dos cristãos e não só: "Sabemos que passamos da morte à vida porque
amamos os irmãos. Aquele que não ama permanece na morte... Nisto conhecemos o
Amor: ele [Jesus] deu a sua vida por nós. E nós também devemos dar as nossas
vidas pelos irmãos. Se alguém, possuindo os bens deste mundo, vê o seu irmão em
necessidade e lhe fecha o coração, como permanecerá nele o amor de Deus?
Filhinhos, não amemos de palavras nem de língua, mas por acções e em
verdade" (1Jo 3, 14-19).
Sem o que este teste,
elaborado há dois mil anos, procura avaliar, não tem sentido celebrar os ritos
da Páscoa, sejam eles litúrgicos ou populares. Mas esta avaliação deve ser
retomada por cada um e por cada grupo, na mudança dos tempos e lugares, na variedade
dos povos, culturas e religiões.
3. Diz-se e com toda a razão – embora, por vezes, só
de forma retórica – que, se os recursos científicos e técnicos, económicos e
financeiros fossem colocados ao serviço de todos, este mundo entrava, de facto,
em processo de ressurreição, abria as portas do paraíso, donde nos expulsamos
todos os dias de mil maneiras, gastando ciência, técnica e recursos de toda a
ordem para o terror e para a guerra que só aumentam a miséria.
Mas esta não é a verdade
toda. Os nossos olhos, reforçados pelos grandes meios de comunicação, estão
voltados, especialmente, para tudo o que nos envergonha. Com essa habituação
perdemos o apetite e o gosto para ver o que há de magnífico neste mundo e o que
é feito em todos os países para ressuscitar a esperança, numa vida mais humana,
isto é, mais justa e fraterna.
O movimento cristão terá
sempre de se confrontar com as tentativas de salvação à custa da negação do
mundo, da existência carnal, como se esta fosse a nossa desgraça e não a nossa
condição natural e divina, o lugar da esperança e da traição? Não se salva o
mundo fugindo do mundo, como pensam os gnósticos de todos os tempos, mas
lutando contra aquilo que o estraga ou impede a sua transfiguração. A proposta
cristã não é uma recusa da nossa condição carnal, mas a sua ressurreição no
quotidiano, a recriação da esperança. Os discípulos de Jesus, perante o
fracasso dos sonhos messiânicos que os moviam, ficaram mais mortos do que o
Mestre crucificado. O mais difícil de aceitar não é a ressurreição de Cristo,
mas a ressurreição da esperança dos discípulos e o seu poder de contágio até
aos dias de hoje.
Não devemos avaliar a saúde da
Igreja a partir dos seus triunfos ou dos seus fracassos. Como nos ensina a
história de dois mil anos, muitas vezes, os êxitos têm dentro um veneno mortal
e os fracassos obrigam a perguntar: não teremos cedido, como os primeiros
discípulos de Jesus, às ambições do poder económico, político e religioso?
Para cantar a Páscoa
recorro à poesia e à música de José Augusto Mourão, O.P. (1947-2011): Ó Páscoa de Deus, que desces do Céu à Terra / E
que da Terra retornas ao Céu / Em Ti a criação inteira / Se reúne e se alegra.
Aleluia!
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