Sábado Santo, Páscoa
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
30 março 2024
Deus é radicalmente questionado quando se é confrontado com a realidade brutal dos
holocaustos da História e concretamente com a tortura e a morte dos inocentes.
Neste domínio, é sempre incontornável a passagem célebre de Os Irmãos Karamázov, de
Dostoiévski, em que Ivan Karamázov refere precisamente a crueldade exercida sobre as
criança inocentes. “A ciência toda não vale as lágrimas das crianças”, proclama. O que
faremos com o sofrimento dos inocentes? Como se pode alguma vez justificar o
injustificável? É tal a revolta de Ivan Karamázov que ele devolve respeitosamente a Deus o
bilhete de entrada na harmonia final da História do Mundo.Playvolume00:00/01:
Em última análise, é o sofrimento e a morte que nos obrigam a pensar. Mas precisamente o
sofrimento e a morte são o que a razão nunca entenderá, concretamente quando se trata do
sofrimento e da morte das vítimas inocentes. É por isso que Miguel de Unamuno escreveu:
“O mais santo de um templo é que é o lugar onde se vai chorar em comum.” E acrescentava
de modo dramático: “Um Miserere cantado em comum por uma multidão, açoitada pelo
destino, vale tanto como uma filosofia.”
O paradoxo é este: face ao calvário do mundo, Deus comparece perante o tribunal da razão.
Por outro lado, para haver salvação, também e sobretudo para as vítimas inocentes, ela só
pode vir de Deus. Deus tem de justificar-se, e, ao mesmo tempo, só ele pode justificar, isto é,
salvar.
Sexta-Feira Santa é o dia da celebração da Cruz de Cristo, o justo inocente, vítima do poder
religioso e político. Na sua obra A figura histórica de Jesus, E. P. Sanders, da Universidade de
Oxford, que quer dar uma visão convincente do conjunto da vida do Jesus real, portanto,
apenas a partir da História, independentemente da fé, conclui que é possível saber o que é
que Jesus fez, que o centro do seu anúncio foi o Reino de Deus, que entrou em conflito com o
Templo, que compareceu perante Pilatos e que foi executado. Mas também sabemos que,
“depois da sua morte, os seus seguidores experienciaram o que descreveram como a
‘ressurreição’”: aquele que tinha morrido apareceu como “pessoa viva, mas transformada”.
“Acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso.” Deste modo, criaram um movimento,
que cresceu e se estendeu e mudou a história: o cristianismo.
No período pascal, os cristãos ouvem falar muitas vezes da Sexta-Feira Santa, o mesmo
acontecendo com o Domingo de Páscoa. Mas raramente ou talvez nunca se fale do Sábado
Santo. É em Sábado Santo, no entanto, que nos encontramos.
Padre e professor de Filosofia
30 março 2024
Deus é radicalmente questionado quando se é confrontado com a realidade brutal dos
holocaustos da História e concretamente com a tortura e a morte dos inocentes.
Neste domínio, é sempre incontornável a passagem célebre de Os Irmãos Karamázov, de
Dostoiévski, em que Ivan Karamázov refere precisamente a crueldade exercida sobre as
criança inocentes. “A ciência toda não vale as lágrimas das crianças”, proclama. O que
faremos com o sofrimento dos inocentes? Como se pode alguma vez justificar o
injustificável? É tal a revolta de Ivan Karamázov que ele devolve respeitosamente a Deus o
bilhete de entrada na harmonia final da História do Mundo.Playvolume00:00/01:
Em última análise, é o sofrimento e a morte que nos obrigam a pensar. Mas precisamente o
sofrimento e a morte são o que a razão nunca entenderá, concretamente quando se trata do
sofrimento e da morte das vítimas inocentes. É por isso que Miguel de Unamuno escreveu:
“O mais santo de um templo é que é o lugar onde se vai chorar em comum.” E acrescentava
de modo dramático: “Um Miserere cantado em comum por uma multidão, açoitada pelo
destino, vale tanto como uma filosofia.”
O paradoxo é este: face ao calvário do mundo, Deus comparece perante o tribunal da razão.
Por outro lado, para haver salvação, também e sobretudo para as vítimas inocentes, ela só
pode vir de Deus. Deus tem de justificar-se, e, ao mesmo tempo, só ele pode justificar, isto é,
salvar.
Sexta-Feira Santa é o dia da celebração da Cruz de Cristo, o justo inocente, vítima do poder
religioso e político. Na sua obra A figura histórica de Jesus, E. P. Sanders, da Universidade de
Oxford, que quer dar uma visão convincente do conjunto da vida do Jesus real, portanto,
apenas a partir da História, independentemente da fé, conclui que é possível saber o que é
que Jesus fez, que o centro do seu anúncio foi o Reino de Deus, que entrou em conflito com o
Templo, que compareceu perante Pilatos e que foi executado. Mas também sabemos que,
“depois da sua morte, os seus seguidores experienciaram o que descreveram como a
‘ressurreição’”: aquele que tinha morrido apareceu como “pessoa viva, mas transformada”.
“Acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso.” Deste modo, criaram um movimento,
que cresceu e se estendeu e mudou a história: o cristianismo.
No período pascal, os cristãos ouvem falar muitas vezes da Sexta-Feira Santa, o mesmo
acontecendo com o Domingo de Páscoa. Mas raramente ou talvez nunca se fale do Sábado
Santo. É em Sábado Santo, no entanto, que nos encontramos.
Na medida em que é possível reconstituir o que se passou historicamente com Jesus, foi
assim: Pouco antes do ano 30 da nossa era, Jesus, que vivera uma vida normal em Nazaré,
acorreu também ele ao baptismo de João. Foi aí que ouviu o apelo divino para o anúncio do
Reino de Deus. “Mudai de mentalidade, convertei-vos, acreditai no Evangelho.” Agora,
quando irromper o Reino de Deus, Deus mesmo vai reinar sobre o seu povo. Deus vai
transformar radicalmente a História, levando à consumação plena e final a sua obra da
criação. Acabarão os sofrimentos, as doenças, a morte. Nenhum homem há-de explorar
outro homem. Reinará a justiça, a paz, o amor, cumprir-se-ão as promessas, ficarão
satisfeitas todas as esperanças.
Como sinal dessa chegada, Jesus curou doentes, comeu com pecadores, transgrediu normas
também de tipo religioso que, em vez de trazerem libertação, oprimiam homens e mulheres.
Esta actividade pública de Jesus foi curta: um ano, talvez dois, três no máximo. Pelo ano 30,
por motivo da Páscoa, foi a Jerusalém com os discípulos. Houve quem o aclamasse Messias
libertador. Enfrentou concretamente o sacerdócio judaico - parece que havia uns 20 000
sacerdotes e levitas -, declarando que Deus estava farto de sacrifícios. Flávio Josefo refere
que numa páscoa degolaram 255 600 cordeiros. Mas, segundo Jesus, é preciso aprender que
o que Deus quer é justiça e misericórdia.
Vendo privilégios abalados por causa do seu anúncio de um Deus solidário com os pobres,
oprimidos , explorados, e com medo de uma sublevação popular que levasse à intervenção
das tropas romanas, as autoridades judaicas, nomeadamente o sumo sacerdote, detiveram
Jesus e interrogaram-no. E enviaram-no a Pilatos, governador-representante da Roma
imperial, que, após julgamento expedito, o mandou executar na cruz, suplício próprio de
assim: Pouco antes do ano 30 da nossa era, Jesus, que vivera uma vida normal em Nazaré,
acorreu também ele ao baptismo de João. Foi aí que ouviu o apelo divino para o anúncio do
Reino de Deus. “Mudai de mentalidade, convertei-vos, acreditai no Evangelho.” Agora,
quando irromper o Reino de Deus, Deus mesmo vai reinar sobre o seu povo. Deus vai
transformar radicalmente a História, levando à consumação plena e final a sua obra da
criação. Acabarão os sofrimentos, as doenças, a morte. Nenhum homem há-de explorar
outro homem. Reinará a justiça, a paz, o amor, cumprir-se-ão as promessas, ficarão
satisfeitas todas as esperanças.
Como sinal dessa chegada, Jesus curou doentes, comeu com pecadores, transgrediu normas
também de tipo religioso que, em vez de trazerem libertação, oprimiam homens e mulheres.
Esta actividade pública de Jesus foi curta: um ano, talvez dois, três no máximo. Pelo ano 30,
por motivo da Páscoa, foi a Jerusalém com os discípulos. Houve quem o aclamasse Messias
libertador. Enfrentou concretamente o sacerdócio judaico - parece que havia uns 20 000
sacerdotes e levitas -, declarando que Deus estava farto de sacrifícios. Flávio Josefo refere
que numa páscoa degolaram 255 600 cordeiros. Mas, segundo Jesus, é preciso aprender que
o que Deus quer é justiça e misericórdia.
Vendo privilégios abalados por causa do seu anúncio de um Deus solidário com os pobres,
oprimidos , explorados, e com medo de uma sublevação popular que levasse à intervenção
das tropas romanas, as autoridades judaicas, nomeadamente o sumo sacerdote, detiveram
Jesus e interrogaram-no. E enviaram-no a Pilatos, governador-representante da Roma
imperial, que, após julgamento expedito, o mandou executar na cruz, suplício próprio de
escravos. O que se passou com Jesus no seu íntimo na cruz não sabemos. Mas há aquela
palavra-oração que atravessa os séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me
abandonaste?” Os discípulos desiludidos fugiram, voltaram às suas tarefas normais, pois
aparentemente tudo tinha acabado.
O enigma do cristianismo, mesmo de um ponto de vista histórico, é este: pouco depois
começaram a anunciar que o tinham visto, que Ele está vivo. E por isso deram a vida,
mártires. Se tudo tivesse terminado na morte, o destino de Jesus teria sido o esquecimento.
Os discípulos foram-se reunindo outra vez e formaram comunidades congregadas pela fé
em que esse Jesus, o Messias de Deus, voltaria para instaurar o Reino de Deus.
É em Sábado Santo que nos encontramos: entre a Sexta-Feira Santa e o Calvário da História,
por um lado, e, por outro, o Domingo de Páscoa, isto é, a profecia, a promessa, a expectativa,
a esperança, que não morre, do Reino de Deus, do amor, da fraternidade, da justiça plena, da
alegria toda, da ressurreição dos mortos, da filadélfia, do banquete universal com Deus e
todos os homens
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