A questão do Homem: a questão de Deus
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
04 Maio 2024
Ainda ecoa aquela proclamação que Nietzsche em A Gaia Ciência (1882) colocou na boca de
um louco: “Deus morreu! Deus está morto!” Desde então o mundo não é o mesmo. É certo
que para Nietzsche Deus tinha de morrer, pois o que a religião proclamava é contra a vida,
de tal modo que, com a proclamação da morte de Deus, é o mar infindo das novas
possibilidades do sim à vida que se abre. No entanto, à morte de Deus não se seguiria a
morte do Homem e do sentido último de toda a realidade?
Segundo as análises de Gilles Lipovetsky, “Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-
se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido, as derrocadas dos ideais
não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais
pessimismo”: isto escreveu ele em A era do vazio - presentemente, parece que já não pensa
exactamente da mesma maneira.
De qualquer forma, os espíritos mais atentos julgam que é necessário dar antes razão a L.
Kolakowski, o filósofo polaco agnóstico, já falecido, quando afirmou que, desde a
proclamação da morte de Deus por Nietzsche, nunca mais houve ateus serenos: “Com a
segurança da fé desfez-se também a segurança da incredulidade. Ao contrário de um mundo
familiar, protegido por uma natureza benéfica e benigna, como era proposto pelo ateísmo
iluminista, o mundo sem Deus dos nossos dias é sentido como um caos opressor, eterno. É
um mundo privado de todo o sentido, de qualquer orientação, sinal de direcção, estrutura. A
ausência de Deus tornou-se a ferida sempre aberta do espírito europeu, por maior que
tenha sido o esforço feito para esquecê-la, recorrendo a toda a espécie de narcóticos.”
De que falamos, quando falamos da morte de Deus? De facto, como escreveu o filósofo
Eusebi Colomer, a própria expressão “morte de Deus” não é unívoca, pois pode ter, e tem,
múltiplos sentidos. Pode significar que Deus realmente nunca existiu, embora só
recentemente tenhamos feito essa descoberta. Pode querer dizer que talvez Deus exista,
mas os homens, que outrora se lhe dirigiram pela fé e pela invocação, hoje já não acreditam
nele. Talvez queiramos apenas exprimir a experiência de ausência e aparente silêncio de
Deus, própria do nosso tempo. Talvez estejamos a referir-nos à necessidade de transcender
constantemente as nossas ideias acerca de Deus, e, neste sentido, a “morte de Deus”
significa a morte dos ídolos fabricados por nós.
Padre e professor de Filosofia
04 Maio 2024
Ainda ecoa aquela proclamação que Nietzsche em A Gaia Ciência (1882) colocou na boca de
um louco: “Deus morreu! Deus está morto!” Desde então o mundo não é o mesmo. É certo
que para Nietzsche Deus tinha de morrer, pois o que a religião proclamava é contra a vida,
de tal modo que, com a proclamação da morte de Deus, é o mar infindo das novas
possibilidades do sim à vida que se abre. No entanto, à morte de Deus não se seguiria a
morte do Homem e do sentido último de toda a realidade?
Segundo as análises de Gilles Lipovetsky, “Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-
se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido, as derrocadas dos ideais
não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais
pessimismo”: isto escreveu ele em A era do vazio - presentemente, parece que já não pensa
exactamente da mesma maneira.
De qualquer forma, os espíritos mais atentos julgam que é necessário dar antes razão a L.
Kolakowski, o filósofo polaco agnóstico, já falecido, quando afirmou que, desde a
proclamação da morte de Deus por Nietzsche, nunca mais houve ateus serenos: “Com a
segurança da fé desfez-se também a segurança da incredulidade. Ao contrário de um mundo
familiar, protegido por uma natureza benéfica e benigna, como era proposto pelo ateísmo
iluminista, o mundo sem Deus dos nossos dias é sentido como um caos opressor, eterno. É
um mundo privado de todo o sentido, de qualquer orientação, sinal de direcção, estrutura. A
ausência de Deus tornou-se a ferida sempre aberta do espírito europeu, por maior que
tenha sido o esforço feito para esquecê-la, recorrendo a toda a espécie de narcóticos.”
De que falamos, quando falamos da morte de Deus? De facto, como escreveu o filósofo
Eusebi Colomer, a própria expressão “morte de Deus” não é unívoca, pois pode ter, e tem,
múltiplos sentidos. Pode significar que Deus realmente nunca existiu, embora só
recentemente tenhamos feito essa descoberta. Pode querer dizer que talvez Deus exista,
mas os homens, que outrora se lhe dirigiram pela fé e pela invocação, hoje já não acreditam
nele. Talvez queiramos apenas exprimir a experiência de ausência e aparente silêncio de
Deus, própria do nosso tempo. Talvez estejamos a referir-nos à necessidade de transcender
constantemente as nossas ideias acerca de Deus, e, neste sentido, a “morte de Deus”
significa a morte dos ídolos fabricados por nós.
Afinal, que Deus era esse que morreu? Se o Deus verdadeiro é o Deus sempre maior, que
transcende sempre tudo quanto possamos pensar ou afirmar dele, então os deuses
enquanto ídolos têm de morrer, para ser possível a fé no Deus verdadeiro...
Neste domínio, a pergunta essencial consiste em saber se é possível ser Homem sem colocar
a questão de Deus. É que ser Homem é a abertura ao Infinito, e, assim, a questão do Homem
é a questão de Deus precisamente enquanto questão. Será que, neste sentido, o Homem é
por natureza religioso?
Evidentemente, responder a esta questão é extremamente complexo, pois, à partida, seria
necessário perguntar pela natureza do Homem, que não é algo de estável e fixo: a natureza
do Homem é histórica. De qualquer modo, embora seja histórico, o Homem possui umas
constantes, enquanto capacidades a desenvolver, que permitem não só distingui-lo dos
outros animais como constituem também uma realidade transcultural, que faz com que
todos os seres humanos, independentemente da cultura e do tempo histórico que lhes é
dado viver, formem uma só Humanidade. Pergunta-se então se a religião é uma dessas
constantes, ao menos enquanto questão.
Podem ser apresentados alguns sinaAssim, quando se considera a história da evolução, parece haver consenso no que se refere
à apresentação da sepultura como sinal distintivo decisivo na passagem do animal ao
Homem. O Homem é animal sepultante. Ora, não há dúvida de que os rituais funerários
sempre estiveram ligados à religião. Depois, quando se pensa concretamente nas culturas
antigas, a antropologia não deixa de sublinhar o vínculo entre o culto e a cultura no seu
todo.
Mas sobretudo não se poderá ignorar que o Homem é um ser que espera. O bebé que vem
ao mundo está animado por aquilo que Erik Erikson chamou basic trust, confiança de base,
confiança radical, originária, que começa por concentrar-se na mãe, mas que se dirige ao
mundo. Se essa confiança for substancialmente frustrada, os estragos no seu
desenvolvimento enquanto processo de se ir aos poucos erguendo até poder dizer “eu” de
modo expansivo e integrado podem ser irreparáveis. Por outro lado, como observava o
teólogo W. Pannenberg, nem a mãe nem o mundo podem corresponder adequadamente a
essa confiança radical ilimitada, que, por isso mesmo, só em Deus, portanto, para lá da
família, da sociedade e do mundo, poderá encontrar o seu apoio e segurança.
Neste contexto, afirmar Deus não é então também um modo de expressar a confiança no
Sentido último, como sugeriu o filósofo Ludwig Wittgenstein? Seja como for, o Homem é o
ser da pergunta e, por isso, de pergunta em pergunta, desembocará inevitavelmente na
pergunta ao infinito pelo Infinito, por Deus, pelo Fundamento último, pelo sentido de todos
os sentidos, o Sentido último.
O que aí fica não prova, evidentemente, a existência de Deus. Significa apenas que a
pergunta por Deus é constitutiva do Homem enquanto tal.is que apontam no sentido de um vínculo entre ser ser
humano e a religião.
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