segunda-feira, 20 de maio de 2024

VIGÍLIAS Frei Bento Domingues, O.P. 19 Maio 2024

 

VIGÍLIAS

Frei Bento Domingues, O.P.

19 Maio 2024

 

1. Estou a começar a escrever este texto no dia 13 de Maio. A beleza deste dia começa na sua vigília, um mar de luz em movimento, a procissão das velas. É a vigília mais escura e luminosa em que já participei.

A verdade é que Fátima não se recomendava pela beleza das suas construções. A fealdade e o comércio dos objectos religiosos inundavam e comandavam tudo. Em várias intervenções, para que fui convidado, atrevi-me a dizer que o único remédio para Fátima seria um buldózer. Mas, quando via chegar os peregrinos cada um com o seu mistério e, depois, as multidões a despedir-se de lenço branco, parecia-me que estava no cais das lágrimas de Portugal. Não vou ter o mau gosto de me repetir nem de reproduzir o que outros já escreveram sobre as páginas da Religião dos Portugueses[1], mas como vivi vários anos, na Cova da Iria, em épocas diferentes, assisti às suas transformações.

Muita coisa mudou. Fátima encontrou o caminho da beleza, mas nunca se devia esquecer que o fascínio de Fátima era, e é, de outra ordem. Consolida-se, cada vez mais, como um constante apelo da paz no meio das guerras. O que parecia um nacionalismo pretensioso – Altar do Mundo – tem-se revelado um verdadeiro encontro de povos.

Este ano, quem veio ajudar-nos a retomar o sentido universal deste Santuário foi o cardeal Juan José Omella, de Barcelona: «Rezemos pela paz no mundo: na Ucrânia, Rússia, na Terra Santa, na África, na América, na Ásia, quantos países precisam e reclamam a paz».

O bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, voltou-se para a Ucrânia e para a Terra de Jesus: é inconcebível o que se passa na Faixa de Gaza.

O pior de tudo, o que não se pode permitir, é proibir que chegue a ajuda alimentar necessária para mais de um milhão de pessoas que estão a morrer de fome. Daqui, da Cova da Iria, apelamos à paz. É inconcebível para o coração de Deus, mas é também inconcebível para um coração humano que isto esteja a acontecer[2].

2. Temos, de facto, de acolher o vendaval de Deus, o Pentecostes: Quando chegou este dia – contam os Actos dos Apóstolos –, os discípulos encontravam-se reunidos no mesmo lugar. De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde eles se encontravam. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem. Ora, residiam em Jerusalém judeus piedosos provenientes de todas as nações que há debaixo do céu.

Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua. Atónitos e maravilhados, diziam: Mas esses que estão a falar não são todos galileus?

Que se passa, então, para que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus![3].

D. Rui Valério, Patriarca de Lisboa, convocou os jovens e adolescentes para entrarem nesse vendaval, para serem contagiados pelo Espírito de missão, nos seus diversos mundos que devem transformar numa festa.

Tanto a preparação como a celebração do Pentecostes não devem ser entendidas como um momento evanescente. Todas as realidades, na Igreja, são para contagiar, difundir e ampliar a sua missão.

Não é apenas dos jovens, mas dos que se deixam rejuvenescer mediante um diálogo novo.

É porque acreditam no poder do diálogo que Graça Machel, François Hollande, o Patriarca Bartolomeu I, assim como líderes políticos e religiosos, representantes de organizações internacionais e figuras-chave da sociedade civil, se encontraram, em Lisboa, de 14 a 16 deste mês, no 1º Fórum Global do KAICIID – Centro Internacional de Diálogo.

Sentaram-se à mesa para procurarem construir confiança, expandir visões e criar oportunidades para que seja possível sair do plano das intenções e avançar para uma acção concreta e concertada, através do desenvolvimento de iniciativas multilaterais para a construção de coesão social e resolução de conflitos.

Com o mundo a atravessar «um momento particularmente difícil» e a humanidade a enfrentar «enormes desafios – com guerras, conflitos e profundas clivagens sociais a abrirem espaço para o medo, a desconfiança e os discursos de ódio e de intolerância», o Fórum «ganha ainda mais sentido»[4].

3. O relacionamento entre Ocidente e Oriente é uma necessidade mútua indiscutível – diz o Papa Francisco –, que não pode ser substituída nem descuidada, para que ambos se possam enriquecer mutuamente com a civilização do outro, através da troca e do diálogo das culturas, o que exige uma vigilância constante.

O Ocidente poderia encontrar, na civilização do Oriente, remédios para algumas das suas doenças espirituais e religiosas causadas pelo domínio do materialismo. E o Oriente poderia encontrar na civilização do Ocidente tantos elementos que o podem ajudar a salvar-se da fragilidade, da divisão, do conflito e do declínio científico, técnico e cultural. É importante prestar atenção às diferenças religiosas, culturais e históricas que são uma componente essencial na formação da personalidade, da cultura e da civilização oriental. É importante consolidar os direitos humanos gerais e comuns, para ajudar a garantir uma vida digna para todos os seres humanos, no Oriente e no Ocidente, evitando o uso da política de duas medidas[5].

O mundo está a sofrer ameaças e guerras em cadeia. O apelo ao diálogo parece uma ingenuidade. A verdade é outra: fora do diálogo não há salvação. Vigiai!

 

 



[1] Frei Bento Domingues, O.P., A religião dos portugueses. Testemunhos do tempo presente, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2018; Cf. 7Margens, 12.05.2024, António Marujo, Fátima foi também um “lugar de resistência silenciosa” contra a guerra.

[2] Cf. Daqui, da Cova da Iria, apelamos à paz!, 7Margens, 13.05.2024

[3] Cf. todo o texto dos Actos dos Apóstolos, 2, 1-36

[4] Cf. Clara Raimundo, 7Margens, 08.05.2024

[5] Fratelli Tutti, 136

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