A festa do banquete
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
01 Junho 2024
É surpreendente que o austero Immanuel Kant, um dos pensadores maiores de todos os
tempos, autor da moral do imperativo categórico, tenha deixado na sua Antropologia um
belo texto sobre as regras de uma refeição agradável em boa companhia. Não é saudável,
mesmo para o filósofo e sobretudo para o filósofo, escreve ele, comer sozinho. É que o
objectivo da celebração de uma refeição não deve ser tanto a satisfação corporal (portanto,
comer em ordem à sobrevivência física) - isso podia fazê-lo cada um por si mesmo - quanto
o prazer de estar juntos. Daí que sublinhe permanentemente o imperativo do respeito
mútuo. “De facto, escreve, mesmo sem prévio pacto expresso, todo o banquete tem uma
certa sacralidade.” A conversa deve ser mantida em bom ritmo, de tal modo que a refeição
termine, “como num concerto, no meio da alegria geral e, assim, seja tanto mais salutar;
como naquele banquete de Platão, do qual o convidado dizia: ‘As tuas refeições não
agradam só enquanto se saboreiam, mas também sempre que se pensa nelas’.” E os amigos,
sempre que se reencontram, avisam: “Havemos de repetir.”
Não é verdade que uma das alegrias grandes que podemos conceder-nos é oferecer um
almoço ou um jantar, pelo simples prazer de estarmos juntos? Será possível imaginar uma
festa - um casamento, um aniversário, um reencontro - sem um banquete, por mais simples
que seja?
Por surpreendente que pareça, há um feriado nacional em Portugal que tem a ver com um
banquete, a Última Ceia de Jesus Cristo. Jesus - que escandalizou os contemporâneos, pois
comia com mulheres consideradas pouco recomendáveis e os pecadores públicos -, antes de
ser condenado à morte, ofereceu uma refeição de despedida. E os cristãos, ao longo dos
tempos, deviam reunir-se, lembrando-se dele e da sua causa, que é a causa dos seres
humanos, isto é, a liberdade, a dignidade, a igualdade, a felicidade, a alegria, a fraternidade
entre todos os homens e mulheres.
Quando os cristãos se reúnem para a celebração da Missa ou da Ceia do Senhor, partilham o
pão e o vinho. Na nossa cultura mediterrânica, o pão e o vinho são dois símbolos
fundamentais. O pão quer dizer força, vida, o vinho simboliza festa e alegria. Quem convida
para essa festa é o próprio Jesus Cristo. Ele oferece pão e vinho. E, segundo a mentalidade
oriental, quem oferece uma refeição oferece sobretudo a sua presença. Assim, os cristãos,
quando se reúnem para lembrar a Última Ceia de Jesus, acreditam que Ele está presente.
Mas discutir o modo dessa presença só pode levar a becos sem saída, como é sabido pela
História. O decisivo é reunir-se, ouvindo e cumprindo o único mandamento de Cristo: sede
bons uns para os outros, amai-vos uns aos outros como eu vos amei. O amor vence a morte.
Lembrar. Se, neste instante, perdesse a memória, não perdia apenas o passado. De facto,
uma vez que já não saberia quem sou, ao perder a memória, perdia não só o passado, mas
também o presente e o futuro. O animal vive da imediatidade do presente. O ser humano,
esse, conjuga os verbos no passado, no presente e no futuro. Pela memória, sabemos que
Padre e professor de Filosofia
01 Junho 2024
É surpreendente que o austero Immanuel Kant, um dos pensadores maiores de todos os
tempos, autor da moral do imperativo categórico, tenha deixado na sua Antropologia um
belo texto sobre as regras de uma refeição agradável em boa companhia. Não é saudável,
mesmo para o filósofo e sobretudo para o filósofo, escreve ele, comer sozinho. É que o
objectivo da celebração de uma refeição não deve ser tanto a satisfação corporal (portanto,
comer em ordem à sobrevivência física) - isso podia fazê-lo cada um por si mesmo - quanto
o prazer de estar juntos. Daí que sublinhe permanentemente o imperativo do respeito
mútuo. “De facto, escreve, mesmo sem prévio pacto expresso, todo o banquete tem uma
certa sacralidade.” A conversa deve ser mantida em bom ritmo, de tal modo que a refeição
termine, “como num concerto, no meio da alegria geral e, assim, seja tanto mais salutar;
como naquele banquete de Platão, do qual o convidado dizia: ‘As tuas refeições não
agradam só enquanto se saboreiam, mas também sempre que se pensa nelas’.” E os amigos,
sempre que se reencontram, avisam: “Havemos de repetir.”
Não é verdade que uma das alegrias grandes que podemos conceder-nos é oferecer um
almoço ou um jantar, pelo simples prazer de estarmos juntos? Será possível imaginar uma
festa - um casamento, um aniversário, um reencontro - sem um banquete, por mais simples
que seja?
Por surpreendente que pareça, há um feriado nacional em Portugal que tem a ver com um
banquete, a Última Ceia de Jesus Cristo. Jesus - que escandalizou os contemporâneos, pois
comia com mulheres consideradas pouco recomendáveis e os pecadores públicos -, antes de
ser condenado à morte, ofereceu uma refeição de despedida. E os cristãos, ao longo dos
tempos, deviam reunir-se, lembrando-se dele e da sua causa, que é a causa dos seres
humanos, isto é, a liberdade, a dignidade, a igualdade, a felicidade, a alegria, a fraternidade
entre todos os homens e mulheres.
Quando os cristãos se reúnem para a celebração da Missa ou da Ceia do Senhor, partilham o
pão e o vinho. Na nossa cultura mediterrânica, o pão e o vinho são dois símbolos
fundamentais. O pão quer dizer força, vida, o vinho simboliza festa e alegria. Quem convida
para essa festa é o próprio Jesus Cristo. Ele oferece pão e vinho. E, segundo a mentalidade
oriental, quem oferece uma refeição oferece sobretudo a sua presença. Assim, os cristãos,
quando se reúnem para lembrar a Última Ceia de Jesus, acreditam que Ele está presente.
Mas discutir o modo dessa presença só pode levar a becos sem saída, como é sabido pela
História. O decisivo é reunir-se, ouvindo e cumprindo o único mandamento de Cristo: sede
bons uns para os outros, amai-vos uns aos outros como eu vos amei. O amor vence a morte.
Lembrar. Se, neste instante, perdesse a memória, não perdia apenas o passado. De facto,
uma vez que já não saberia quem sou, ao perder a memória, perdia não só o passado, mas
também o presente e o futuro. O animal vive da imediatidade do presente. O ser humano,
esse, conjuga os verbos no passado, no presente e no futuro. Pela memória, sabemos que
vimos de um passado, pela atenção, damos por nós no presente, pela expectativa, pela
esperança, projectamo-nos no futuro. E é integrando o passado, o presente e o futuro, que
nos vamos erguendo, na procura de uma identidade sempre a caminho. Por estranho que pareça, isto tudo vem, mais uma vez, a propósito da festa que a Igreja
Católica celebra: a festa do Corpo de Deus, festa que nos remete para a Eucaristia e, em
linguagem mais comum, para a Missa. Aos Domingos, muitos cristãos continuam a ir à
Missa. O que é que lá se vai fazer? Diria que fundamentalmente lembrar, recordar.
Na Última Ceia, Jesus, abençoando o pão e o vinho, que significam a sua entrega por amor a
todos, disse: “Fazei isto em memória de mim.” Na Eucaristia, os cristãos recordam-se do que
Jesus é e fez. Assim, lembram-se também do que eles próprios são e devem ser e fazer. E
anunciam, desde já, o futuro: celebram a esperança do que há-de vir: a vida eterna. Deste
modo, não é totalmente destituído de sentido que muitos, que nem eram praticantes
habituais, quando morrem, queiram uma Missa: porque nela se celebra a memória do
futuro..., a esperança da salvação. Um funeral de alguém, no contexto cristão, é a celebração
da sua morte e ressurreição.
A festa do Corpo de Deus. É impressionante: festa do Corpo de Deus. Quem imaginaria? A
pergunta então é: celebra-se o Corpo de Deus, e depois despreza-se o corpo? A festa do
Corpo de Deus tem de ser também a festa do corpo humano, que é corpo vivo, que sente,
corpo que deseja, que pensa, que quer, que ama, corpo que diz eu, que é esperante, até
espera para lá da morte...
Na festa do Corpo de Deus, há quem pergunte se os católicos acreditam na presença real de
Cristo na Eucaristia. A resposta é sim. Mas é preciso distinguir entre a presença física e
coisista e a presença real pessoal. Por exemplo, um homem e uma mulher, pela relação
sexual, estão fisicamente presentes, mas, se não houver amor, estão realmente ausentes
enquanto pessoas. Porém, até pode acontecer que, por qualquer motivo, tenham de estar
fisicamente ausentes, mas se há amor, continua a presença real entre eles. Os católicos não
crêem na presença físico-coisista de Cristo, mas na sua presença espiritual, dando o seu
Espírito de Vida, de Amor, de Paz: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei.” Isso tem de
ter consequências na vida.
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